Toda resistência deve ser quebrada e reconstruída, num processo dinâmico-contínuo – filosofia do martelo de Nietzsche
Não é novidade que o processo civil é regido, para o deslinde de qualquer lide, na análise das provas produzidas ali. Tais provas são documentais, testemunhais, etc., cabendo à distribuição do ônus o seu regular sopesamento. Nesse toar, não obstante o surgimento da Nova Hermenêutica, pautando uma análise formalista-valorativa do direito, nosso sistema ainda continua a ser, essencialmente, legalista, mormente nesta seara probatória (cf. estática e dinâmica da prova processual).
Fala-se isso para citar os seguintes dispositivos legais pertinentes à análise do que se pretende neste pequeno estudo (argumentação em sentido forte, cf. Habermas):
CPC.
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
(...)
Art. 334. Não dependem de prova os fatos:
I - notórios;
II - afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária;
III - admitidos, no processo, como incontroversos;
IV - em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.
Pois bem. Suponha-se um certo caso concreto, onde se requer pagamento de seguro de um imóvel em razão de danificações em sua estrutura. Suponha-se também que o autor já tenha trazido, com a inicial, documento produzido pela parte adversa (a ré) que diz, expressamente, que “houve comprometimento da estrutura do imóvel”. Em petição, a parte adversa, por sua vez, tece comentários, obviamente, em seus interesses (argumentação em sentido fraco, portanto, cf. Habermas).
Nesse caso, a aplicação dos dispositivos legais acima citados se mostraria clara, evidente e automática? E se o juiz apresentasse argumentos no sentido de haver necessária perícia judicial, por ainda estar em dúvida acerca do dano? Pode? Não pode? Como o direito moderno responde a isso?
Vê-se que, do caso hipotético como narrado, o que se tem, inexoravelmente, é a transmudação do fato “comprometimento da estrutura do imóvel” em incontroverso, sendo, portanto, ex vi legis (cf. art. 334, II e III, CPC), independente de demais provas por força de lei. Tem-se em conta aí uma argumentação que vai em sentido forte, pois tende ao consenso jurídico, baseado em norma de direito positivado (cf. Habermas).
Portanto, na decisão judicial, deve ser dada uma carga argumentativa também em sentido forte, sob pena de subjugar o sistema legal posto. Isso porque afastar-se dos parâmetros legais demanda, à toda evidência, uma construção substancial contrária à que já foi feita – princípio da inércia de Perelman: “quem propõe uma nova solução suporta a carga da argumentação” (ALEXY, Robert. IN: Teoria da Argumentação Jurídica). Esse o chamado efeito carga e descarga de Alexy, na moderna análise do direito, longe de discricionariedade e do juiz-Hércules (cf. Lenio Streck).
Vivemos uma época em que confunde-se argumentação séria (abertura no plano da decisão, porém respeitando uma certa moldura dogmática, já nos lembrada por Kelsen) com discricionariedade e decisionismo (abertura ao alvedrio do julgador – “complexo de MacGyver”), como por exemplos os argumentos lógicos já partidos da conclusão, donde deriva toda uma construção judicial deforme (o que se passa a chamar de bug jurídico).
Esse complexo nada mais é que o desejo ou ato de vontade do órgão judicante de modificar, solipsisticamente, a realidade social circundante, como um juiz Hércules (não no sentido de Dworkin, respeitador das normas jurídicas, mas no sentido de Ost, negativo e com impertinência hermenêutica).1
Cuidemos, melhor, portanto, da teoria da decisão judicial, pelo que o sistema legal deve ser respeitado, apenas devendo haver afastamentos ocasionais pelo controle de constitucionalidade, derrotabilidade de sentido (defeseability), falseabilidade da ideia (cf. Popper) e efeito carga e descarga de Alexy, no sentido de verificarmos um argumento forte, igualmente dogmático e de aplicação contínua até modificação argumentativa substancial contrária: o chamado processo de efeito descarga .
1 Vide leitura em: https://www.conjur.com.br/2013-nov-02/diario-classe-complexo-macgyver-modelos-juiz-episodio