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A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação

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01/11/2002 às 00:00
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2. A POSSE DE ESTADO DE FILHO

Após o advento da Constituição Federal de 1988, que reformou profundamente o instituto da filiação, adotando um sistema unificado e, por isso, acabando com qualquer discriminação em relação aos filhos, cabe agora ao ordenamento jurídico encontrar meios sustentáveis para reconhecer a paternidade mais condizente com a realidade daqueles que a procuram, dentre as três linhas que a compõe: a paternidade jurídica, a biológica e a sócio-afetiva [61].

Seria perfeito se a paternidade se fundasse nas três espécies, porém casos existem em que as mesmas se confrontam, criando um grande problema jurídico para se estabelecer a paternidade.

Nesta busca incessante, por encontrar subsídios probatórios suficientes para estabelecer a paternidade sócio-afetiva, é que ganha destaque [62] o instituto da posse de estado de filho, no tocante ao estabelecimento da filiação extramatrimonial, que valoriza, sobretudo, as relações de afeto, caracterizando-se não só pelo fator biológico ou por uma presunção legal e sim, por uma intensa convivência entre pai e filho.

Cumpre ressaltar, que na paternidade sócio-afetiva, pai não é apenas aquele ligado por um laço biológico e sim, aquele ligado pelos intensos e inesgotáveis laços de afeto, ou seja, pai é aquele que cuida, protege, educa, alimenta, que participa intensamente do crescimento físico, intelectual e moral da criança, dando-lhe o suporte necessário para que se desenvolva como ser humano, "eis aqui o fundamento de validade da noção de posse de estado de filho, a valorização das relações calcadas no afeto [63]."

Entretanto, o Direito Brasileiro [64] não faz referência expressa ao instituto da posse de estado de filho, diferentemente de outros países, que inseriram tal instituto em sua legislação de forma expressa.

2.1. Sentido e importância da posse de estado de filho

Como analisado no capítulo anterior, o sistema clássico de estabelecimento da paternidade era exclusivamente matrimonializado, fundado na presunção pater is est, ou seja, era pai o marido da mãe [65]. Daí decorre a verdade jurídica da filiação, nos termos do Código Civil de 1916.

Em contrapartida, a verdade biológica veio a superar o sistema clássico, donde se permite buscar a descendência genética, sendo que a certeza chega a 99% (noventa e nove por cento), colocando em cheque a verdade jurídica [66].

Dentre a paternidade jurídica e a biológica, uma realidade ficava à margem da legislação, a paternidade sócio-afetiva, ou seja, aquela que demonstra a intensa relação entre pai e filho.

Neste sentido, contrabalançando a verdade biológica e a sócio-afetiva, é que surge o instituto da posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, o caráter sociológico da filiação [67]. É na posse de estado de filho que se vê caracterizada a paternidade de afeto.

Entende-se a posse de estado de filho como sendo "uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai [68]."

A importância de tal instituto se revela quando da existência de conflitos de paternidade, especialmente quando da filiação extramatrimonial, como por exemplo, nos casos em que as relações de afeto entre pai e filho não condizem com a paternidade jurídica, ou ainda quando comprovada a paternidade biológica, mas a existência de posse de estado de filho se dá com um terceiro, que não o pai genético. Em todos esses casos, assume importância primordial a posse de estado de filho, valorizando-se a afectio, a verdade sociológica. É a verdade sócio-afetiva ganhando o abrigo do Direito.

Todavia, como será abordado no próximo capítulo do trabalho, nosso ordenamento jurídico ainda não elevou a posse de estado de filho como elemento constitutivo da filiação nos casos de estabelecimento de paternidade extramatrimonial.

2.2. Elementos constitutivos da posse de estado de filho

Os elementos que podem constituir o instituto da posse de estado de filho são determinados pela doutrina como sendo o nome ("nomem"), o trato ("tractatus") e a fama ("fama") [69]. Porém, como bem diz o professor Luiz Edson Fachin, "é sabido que estes são os principais dados formadores daquele conceito, mas nem a doutrina nem o legislador se arriscam em dar um rol completo ou definição acabada dos fatos aptos a constituí-lo [70]."

Necessário, portanto, que se faça um exame delicado destes elementos em cada caso concreto, pois, no caso do homem e a mulher casados, fácil é a exteriorização da posse de estado de filho, entretanto, no caso de filiação adulterina a matre, por exemplo, esta publicidade do filho é um processo mais complicado, porém, os mesmos podem o tratar igual ou até mais intensivamente como seu filho do que aqueles que são casados.

A doutrina, verificando estas realidades sociais, entende que o fato do filho não utilizar o nome do suposto pai, não impede que seja determinada a posse de estado de filho, colocando como principais elementos o trato e a fama, que por si só podem bastar para o estabelecimento da paternidade, dependendo do estudo individualizado de cada caso [71].

O autor José Bernardo Ramos Boeira ressalva a importância da duração, ou seja, "que o fator ‘tempo’ condiciona, ao mesmo tempo, a existência e a força da posse de estado." E vai mais longe quando afirma que: "mais que todos os outros elementos, a duração é característica da posse de estado, ou seja, a condição de existência da posse de estado [72]."

Passa-se, então a análise destes elementos, que constituem o instituto da posse de estado de filho.

2.2.1. Nome

No que diz respeito ao primeiro elemento, o nome, este se caracteriza pelo uso do nome da família do suposto pai por seu pretenso filho. Isto é, a atribuição do nome do pai ao seu filho.

Entretanto, a doutrina não dá maior importância a este elemento, dizendo não sê-lo essencial para a configuração da posse de estado de filho, visto que, muitas vezes, o filho não utiliza o nome de seu pai, porém, restam caracterizados os outros dois elementos, quais sejam, o trato e a fama, sendo que a ausência do primeiro não pode ser considerada capaz de determinar a desfiguração da posse de estado de filho [73].

2.2.2. Trato

Em relação ao trato, este resulta do tratamento dispensado à pessoa, a criação, a educação, enfim, que o presumido pai a tenha tratado como seu filho.

É considerado elemento objetivo, porque se caracteriza pelo comportamento do pretenso pai em relação ao suposto filho. Pode-se, assim, reconhecê-lo, pela assistência material e moral dada ao filho, como por exemplo, o carinho, os cuidados, o afeto, a educação, a saúde, comuns a todos os pais no tocante aos seus filhos.

Neste aspecto, podem subsistir as assistências material e moral, ou então somente a material, ou a moral. Pois, para a caracterização deste elemento deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai, quer dizer, pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou então que o filho dela não necessite. No caso da assistência moral, o pai pode ter dificuldades em expressar seus sentimentos ao filho, seja por temperamento, seja por conveniência [74].

Destarte, o uso do termo "filho" e do termo "pai", não são necessários. O que deve ser valorizado é o amor, o carinho, a educação e tudo mais que um pai dispensa a um filho.

2.2.3. Fama

A fama é a exteriorização desse estado da pessoa para o público, isto é, que a sociedade conheça a pessoa como sendo filho daquela.

Diz-se que é "o lado propriamente social da posse de estado [75]." Diante das atitudes do suposto pai em relação ao seu pretenso filho, as pessoas criaram a convicção de que se trata mesmo de pai e filho [76].

Tais pessoas, que formam o denominado "público", podem ser os vizinhos, amigos, empregados e, até mesmo, os parentes dos interessados, que mesmo podendo ser contraditados, não deixam de ter sua importância. Neste aspecto, cumpre ressaltar que o as expressões "dizem", "ouvi dizer", "parece", não bastam para restar caracterizada a fama, sendo necessário convicção destas acerca da relação paterno-filial.

2.3. As reformas da filiação no direito comparado e o papel da posse de estado de filho

O direito estrangeiro reconhece o instituto da posse de estado de filho como subsídio probatório, negando-lhe sua importância nos casos de conflitos de paternidade. Entretanto, três reformas em especial, a do Código Civil francês de 1972, a do Código Civil português de 1977 e a do Código Civil belga de 1987, vieram a valorizar tal instituto, conferindo-lhe novo enfoque jurídico.

No que tange ao Direito Francês, a reforma introduzida pela Lei nº 72-3, de 03 de janeiro de 1972, além de prestigiar a verdade biológica, que continua a ser priorizada, passou também a receber fortes influências da realidade sociológica [77], isto é, adotou a França expressamente o instituto da posse de estado de filho em sua reforma do Código Civil, conferindo-lhe dupla função: como meio de prova e como elemento constitutivo da filiação [78].

Segundo o professor Luiz Edson Fachin:

Várias foram as diretrizes que nortearam a reforma francesa, quais sejam, a idéia de igualdade entre os diversos tipos de filiação, sejam naturais ou legítimas; o abrigo da verdade biológica, sem, contudo, deixar de lado a verdade afetiva; a atenuação da presunção pater is est, tendo-se admitido a prova livre da contestação da paternidade; o fim do monopólio marital acerca da negação da paternidade e, a idéia de que o conflito entre a paternidade legítima já estabelecida e a filiação natural, resolve-se em favor desta, com a utilização da noção da posse de estado de filho [79].

A idéia de igualdade se extrai do artigo 334, do Código Civil francês, alterado pela reforma de 1972, que garante ao filho natural os mesmos direitos do filho legítimo, gerando, por conseguinte, a igualdade entre todas as espécies de filiação e o ingresso do filho natural na família [80].

No tocante a busca da verdade da filiação, o sistema francês, alterado pela reforma, possibilitou ao juiz valer-se de todos os meios de prova necessários ao deslinde do conflito de paternidade. Isto significa dizer que a legislação francesa limitou a presunção pater is est, para dar maior relevância e destaque a noção de posse de estado de filho, podendo esta ser prova e fundamento no estabelecimento da filiação.

É o que se depreende do disposto no artigo 334-9 [81], ao dispor que não é possível estabelecer a filiação natural de uma criança quando esta se beneficia de posse de estado de filho, acrescido de título de nascimento. Interpretação inversa é a de que se a filiação legítima se funda apenas no título de nascimento, entende-se ser possível estabelecer-se a filiação natural [82].

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A importância deste dispositivo, em especial, está no fato de que a posse de estado de filho ficou em um patamar mais elevado do que a paternidade jurídica e, até mesmo, da paternidade biológica [83]. A posse de estado de filho passou a se tornar "uma realidade sociológica da maior importância [84]."

No tocante à presunção pater is est, esta foi mantida pela reforma de 1972. Todavia, insurgiu-se o legislador em abrandá-la, tendo em vista as várias hipóteses em que tal presunção restava em decisões que não condiziam com a realidade, gerando, conseqüentemente, decisões injustas.

Assim, como exemplo, no caso do filho nascido no curso do procedimento do divórcio ou da separação de corpos, ou mais de 300 (trezentos) dias depois de autorizada a residência em separado dos cônjuges, ou ainda, menos de 180 (cento e oitenta) dias depois de rejeitada a demanda ou a reconciliação, nos termos do artigo 313, do Código Civil francês, alterado pela reforma de 1972, é afastada a incidência da presunção pater is est.

A reforma francesa manteve também o denominado período legal da concepção. No entanto, permitiu a lei prova em contrário, nos termos do seu artigo 311. Desta forma, ao mesmo tempo em que manteve a presunção do período legal da concepção, estabelecendo a filiação automaticamente, prestigiou também a verdade, admitindo prova em contrário [85].

Enfim, estas foram as mudanças inseridas no Código Civil francês pela reforma de 1972, podendo-se destacar dentre elas, o novo enfoque jurídico dado ao instituto da posse de estado de filho, conferindo-lhe tal reforma papel fundamental no estabelecimento da paternidade.

Verifica-se, pois, nas palavras da professora Julie Cristine Delinski, que:

A "posse de estado" exerce papel fundamental na reforma francesa, mas importa esclarecer que o sistema francês protege num primeiro momento a verdade biológica, que se refere a paternidade decorrente da procriação; contudo, ao lado dessa verdade se encontra um destaque especial ao valor das relações de afeto, buscando a coincidência da verdade biológica com a verdade sócio-afetiva [86].

Para José Bernardo Ramos Boeira, "o legislador francês, ao acolher em seu sistema jurídico a filiação fundada na verdade sócio-afetiva, alcançou a posse de estado de filho a tutela jurídica necessária para justificar uma declaração da paternidade, sustentada nessa realidade [87]."

Em relação ao Direito português, a reforma do Código Civil, através do Decreto-Lei nº 496, de 25 de novembro de 1977, também acolheu a posse de estado de filho, conferindo-lhe, assim como a Reforma Francesa de 1972, dois papéis: como prova e como fundamento no estabelecimento da paternidade.

Verifica-se a presença da noção de posse de estado de filho no disposto no artigo 1.871, alínea "a", do Código Civil português [88], in verbis: "A paternidade presume-se: a) quando o filho houver sido reputado e tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público."

Comenta a professora Julie Cristine Delinski que "a utilização da noção da posse de estado de filho pelo direito português se deu para evitar os desacertos entre a regra pater is est e a realidade biológica (como nos casos de separação de fato duradoura entre os cônjuges) [89]."

Fundou-se a reforma de 1977 na diferença entre o estabelecimento da maternidade e o estabelecimento da paternidade, sendo marcante o desejo de se respeitar primeiramente a verdade biológica [90].

Enfocou a reforma, no que tange ao estabelecimento da paternidade, a diferença entre os filhos nascidos dentro do casamento e os filhos nascidos fora do casamento. Quer dizer, para os filhos matrimonializados, incide a presunção pater is est. Entretanto, nos casos de filhos extramatrimoniais, a paternidade será resolvida por perfilhação (ato livre e pessoal pelo qual alguém reconhece outrem como filho) ou por decisão judicial [91].

Ainda, a reforma portuguesa manteve o princípio pater is est, entretanto, como aconteceu na reforma francesa, referida presunção foi cercada de várias limitações, como por exemplo, o fato do marido não deter mais o monopólio da ação de impugnação da paternidade, sendo também legitimados para propô-la a mãe, o filho e também o Ministério Público [92].

Assim, a Reforma Francesa de 1972 e a reforma portuguesa de 1977 trouxeram à tona a força criadora da posse de estado de filho [93], buscando, acima de tudo, a presunção da verdade biológica [94], como visto anteriormente. Porém, como será analisado mais adiante, as legislações modernas e a jurisprudência já vem reconhecendo desvios da prevalência da verdade biológica da filiação, procurando manter a estabilidade das famílias fundadas na afectio e não no vínculo biológico e, ainda, evitar o reconhecimento da filiação biológica contrária aos interesses do filho [95].

No que tange ao Direito Belga, pode-se dizer que os principais motivos da reforma foram a erosão do princípio da legitimidade, a descoberta de uma nova forma de igualdade diante da lei (entre homem e mulher) e o aprimoramento técnico relativo à demonstração do liame psicológico entre o filho e seus ascendentes [96].

Vale dizer, que buscou referida reforma, alterar a concepção patriarcal, buscando um novo conceito de família que vigia em seu Código Civil, datado de 1804, entrando em consonância com as várias reformas ocorridas nos ordenamentos jurídicos europeus.

Assim, quanto à filiação, adotou o princípio da igualdade entre os filhos, acabando com quaisquer termos discriminatórios, como filiação "legítima" e "ilegítima." Desta forma, a legislação belga passou a autorizar que todos os filhos tem direito ao estabelecimento de sua maternidade e paternidade.

Acerca das formas pelas quais o Direito Belga regula o estabelecimento da paternidade, verifica-se que, quando se trata de filiação advinda de casamento, o estabelecimento se dá através da presunção pater is est. Quando se trata de filiação extramatrimonial, o estabelecimento da paternidade se dá pelo reconhecimento ou então por investigação.

Quanto à presunção da paternidade, o legislador belga optou por não lhe dar caráter absoluto, admitindo, para tanto, prova em contrário, sempre que houver separação de fato mais ausência de posse de estado de filho, conjugando, desta forma, a verdade biológica com a verdade afetiva, buscando sustentação para a paternidade sócio-afetiva [97]. Comenta o professor Luiz Edson Fachin que "é interessante notar que, existindo posse de estado, não poderá o filho contestar a paternidade, salvo circunstâncias excepcionais, como consta expressamente do art. 332 do Código Civil belga. Nesse caso, a intenção do legislador foi a de impedir a contestação de paternidade de um homem que tenha tratado o filho como seu [98]."

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Sobre a autora
Elisabeth Nass Anderle

acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDERLE, Elisabeth Nass. A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3520. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

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