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A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação

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01/11/2002 às 00:00
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3. A RECEPÇÃO DA POSSE DE ESTADO DE FILHO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

Apesar da revelada importância do instituto da posse de estado de filho no que tange ao estabelecimento da paternidade extramatrimonial, referida noção exerce apenas um papel secundário, qual seja, de revelar a verdade biológica da paternidade, especialmente no direito brasileiro [99].

Tal tratamento legislativo dado ao referido instituto deixa enormes lacunas em nosso ordenamento jurídico, pois se vê que a forma de estabelecimento de paternidade em que se fundamenta nosso direito positivo, lê-se Código Civil, está muito longe de alcançar a realidade apresentada pela sociedade do final do século XX e início do século XXI, deixando de atender as verdadeiras necessidades dos indivíduos, que cada vez mais buscam relações fundadas na afectio [100].

Neste tocante, papel fundamental exerce o aplicador do direito, tendo em vista que será ele o responsável em demonstrar o caminho [101] a ser seguido pelo legislador na busca da paternidade [102].

Assim, nas palavras do professor José Bernardo Ramos Boeira: "Uma vez incorporada ao sistema, a noção de posse de estado de filho informaria positiva ou negativamente, fazendo cessar a presunção pater is est, quando a realidade sócio-afetiva estivesse determinando uma paternidade diversa daquela, inicialmente disposta pelo sistema [103]."

Conforme será analisado no próximo capítulo, verifica-se que, somente com a utilização da noção de posse de estado de filho em nosso sistema jurídico conseguiremos solucionar os conflitos de paternidade de filiação extramatrimonial, tendo em vista a realidade atual do conceito de família, fundada em laços de afetividade, a chamada "família sociológica", que leva ao reconhecimento da paternidade sócio-afetiva.

3.1. Papel da posse de estado de filho no Código Civil Brasileiro

Como analisado anteriormente, o sistema codificado, até o advento da Constituição Federal de 1988, era absolutamente patriarcal e hierarquizado, fundado exclusivamente no casamento, visto que, apesar de ter entrado em vigor em 1917, é um produto cultural e ideológico do século XIX, em razão do que, contem muitas regras desatualizadas, regras que já nasceram velhas.

Desta forma, nosso sistema de estabelecimento da filiação prioriza a verdade jurídica em detrimento da verdade biológica [104], considerando aquela mais importante e, distanciando-se, da verdade sócio-afetiva, excetuando-se o caso restrito de contestação de paternidade, privativa do marido, exercida por um lapso temporal exíguo e em hipóteses restritas, conforme preceitua o artigo 344 do Código Civil: "Cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher (art. 178, parágrafo 3º) [105]."

Como bem preceitua o professor Luiz Edson Fachin, "Em consonância com tal ordem de idéias, fora dos limites estreitos estabelecidos e se impondo diante da verdadeira filiação do ponto de vista biológico, prevalece a ‘verdade jurídica’ ainda que para abrigar uma filiação fictícia [106]."

Assim, em consonância com o Código Civil, o casamento legitima os filhos oriundos desta relação, observando-se os limites temporais estabelecidos no artigo 338 do referido diploma legal.

E é por isso mesmo que o Código Civil brasileiro não contemplou a noção de posse de estado de filho como fundamento da ação investigatória, pois como verificado no capítulo anterior, os valores que norteiam aquela noção são construídos a partir dos elementos afetivos e sociológicos da filiação, sendo que, no caso da ausência desses elementos, a paternidade jurídica estabelecida pelo Código estaria comprometida [107].

Assim, nos termos do Código Civil brasileiro, não se admite que o filho adulterino a matre investigue sua paternidade, tendo em vista que a presunção pater is est só se desfaz por iniciativa do marido.

Entretanto, cabe ressaltar que a noção de posse de estado não é estranha ao sistema codificado, nos termos do artigo 203 [108], sendo que, neste caso, a função daquele instituto é a de suprir a falta de registro, quando falecidas as pessoas que viveram na posse de estado de casadas [109].

Contudo, apesar da noção de posse de estado de filho não ter sido contemplada pelo Código Civil como fundamento da ação de investigação de paternidade, a jurisprudência confere maior valor probatório à posse de estado de filho [110], ainda que de forma acanhada, como será analisado a seguir.

3.2. O estabelecimento da filiação extramatrimonial sob a ótica dos Tribunais: há lugar para a posse de estado de filho?

Diante das análises feitas neste trabalho no tocante ao direito de família, especialmente da disciplina jurídica da filiação, vê-se que ainda existem grandes lacunas em nosso ordenamento jurídico, principalmente, diante da caducidade, por inconstitucionalidade, de várias normas legais contidas no Código Civil ainda vigente [111].

Surge, então, o papel essencial do julgador, cuja tarefa emerge da solução dos conflitos que lhe são apresentados, fundando suas decisões em princípios constitucionais do direito de família, suprindo, desta forma, vazios normativos que ainda existem em nosso direito, aqui, mais especificamente, em relação a não contemplação da noção de posse de estado de filho como elemento constitutivo da filiação, capaz, por si só, de estabelecer a paternidade sócio-afetiva.

A jurisprudência, inicialmente, não admitia que um terceiro ou mesmo o filho adulterino ajuizassem ação de investigação de paternidade, tendo em vista que o estabelecimento da filiação era feito através da presunção pater is est, sendo que, se o marido da mãe não havia contestado a paternidade, nenhum outro interessado poderia fazê-lo [112]. As decisões citadas a seguir demonstram a força da presunção pater is est, em consonância com o sistema do Código Civil de 1916, revelando a paternidade com base no liame jurídico:

Investigação de Paternidade – Presunção de legitimidade da filiação, se o autor nasceu na constância do casamento. CC, art. 340. Cabe privativamente ao marido o direito de contestar a legitimidade dos filhos nascidos de sua mulher. CC, art. 344. De acordo com o art. 343, do CC, não basta, sequer, o adultério da mulher, com quem o marido vivia sob o mesmo teto, para ilidir a presunção legal de legitimidade da prole. Não é suficiente, outrossim, a confissão materna para excluir a paternidade (CC, art. 346). Hipótese em que os pais do autor, casados, viviam sob o mesmo teto, não havendo, por parte do marido, até a morte, contestação da legitimidade do filho, que registrou, logo após o nascimento, na forma da lei. Não há como desprezar a paternidade legítima, não contestada, existente convivência conjugal e não comprovada a situação prevista no art. 340, I, do CC, para reconhecer paternidade legítima, contestada na ação pelos herdeiros do investigado, sem comprovação, também, de concubinato. Não é possível emprestar, assim, à prova produzida, na ação de investigação de paternidade, aptidão a afastar a presunção legal da paternidade legítima. Alegação improcedente de negativa de vigência do art. 1º, da L. 883/49, e do art. 363, III, do CC. O acórdão não afirmou que escrito do investigado não possa servir de base à ação investigatória de paternidade ilegítima. Ao não reconhecer a procedência da ação, o aresto não vulnerou o art. 363, III, do CC, mas teve em consideração, com preferência, as regras dos arts. 337, 340, 344 e 347, todos do CC [113]. (grifo nosso).

Na decisão acima exposta, percebe-se a força da presunção pater is est, que não cede mesmo diante de fatos como o adultério da mulher.

Em atenção à mesma orientação em prol da paternidade jurídica, segue-se decisão proferida em ação negatória de paternidade proposta pelo filho, sendo que a declaração do pai, firmada em escritura pública e o fato do filho renegar o mesmo, foram consideradas irrelevantes, do ponto de vista jurídico, para anular o seu registro de nascimento, mantendo-se a paternidade presumida:

Ação Negatória de Paternidade – Propositura pelo filho. Registro de nascimento. Escritura pública sobre sua inveracidade. Ação negatória de paternidade é personalíssima, privativa do marido, consoante a regra do art. 344 do CC, marcando, expressamente, o citado Diploma Legal, no seu art. 178, § 3º, o prazo prescricional de 2 meses para o seu exercício. Entretanto, ainda que assim não fosse, ao filho incumbiria provar, cabalmente, ao propor a ação, uma das duas únicas hipóteses que o direito pátrio entende como motivos condicionantes de repúdio à paternidade colocada no art. 340 do CC. A declaração do pai, firmada em escritura pública, de que são inverídicas as afirmações constantes do registro de nascimento de seu filho não tem força de ilidir a presunção de paternidade que poderia ocorrer nos casos e formas legais. O fato de o menor renegar o pai, a ponto de se recusar a assinar o seu nome, se é moralmente relevante, não o é do ponto de vista jurídico, pois que as questões de estado, antes de interessarem ao indivíduo, interessam primeiramente ao Estado, que tem o dever de velar pela segurança das relações delas decorrentes [114]. (grifo nosso).

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 102.732-1/GO, cujo Relator foi o Ministro Néri da Silveira, tendo sido julgado em 05/08/86, revelou em sua decisão, desconsideração dos tribunais com a noção de posse de estado de filho, o qual se transcreve a seguir:

Investigação de Paternidade – CC, art. 363. Segundo o acórdão, os fundamentos da procedência da ação foram a "posse de estado" e a "confissão não escrita", não a prova do concubinato ou de relações sexuais à época da concepção. Divergência entre as testemunhas, cujas declarações se transcrevem no acórdão, quanto ao pai da autora. Não há prova documental. Não reconhecida expressamente no acórdão a ocorrência de qualquer das hipóteses do art. 363 do CC brasileiro, deu-se pela procedência da demanda afirmando que a condição de filha ilegítima por parte da autora era de considerar-se a partir da posse de estado. Não se compreende no âmbito da Súmula 279 a discussão referente à possibilidade de tão-só com base na posse de estado julgar a procedência da ação de investigação de paternidade, à vista do art. 363 do CC brasileiro. Cuida-se, aí, de quaestio juris federal, vinculada à compreensão do art. 363 do CC brasileiro. Não é invocável a Súmula 279. Não configurando os fatos, assim como acolhidos pelo acórdão, qualquer das hipóteses do art. 363 do CC brasileiro, a procedência da ação, com base nesse dispositivo, importa aplicá-lo inadequadamente à espécie, o que constitui negativa de sua vigência. RE conhecido e provido para julgar improcedente a ação [115]. (grifo nosso)

Tratam-se, as decisões citadas, de decisões proferidas antes da Constituição Federal de 1988, revelando a prevalência da verdade jurídica sobre a verdade biológica da filiação.

Entretanto, após a promulgação da Carta Magna de 1988, diante da realidade apresentada aos nossos Tribunais e das situações jurídicas criadas pela presunção pater is est, a jurisprudência começou a atenuar sua força, para, então, aceitar que o filho adulterino tem o direito de investigar sua paternidade, através de ação investigatória. As seguintes decisões demonstram o enfraquecimento da presunção pater is est, mediante o reconhecimento da paternidade biológica, sobrepondo-se à paternidade jurídica:

Investigação de Paternidade – Prova Testemunhal Precária – Prova Genética – DNA – Natureza Da Demanda – Ação de Estado – Busca da Verdade Real – Instrução Probatória – Preclusão – Inocorrência Para o Juiz – Processo Civil Contemporâneo – Cerceamento de Defesa – Caracterização – Precedentes – Recurso Provido – I – Além das questões concernentes às condições da ação e aos pressupostos processuais, a cujo respeito há expressa previsão legal (CPC, art. 267, § 3º), a preclusão não alcança o juiz em se cuidando de instrução probatória. II – Tem o julgador iniciativa probatória quando presentes razões de ordem pública e igualitária, como, por exemplo, quando diante de causa que tenha por objeto direito indisponível (ações de estado), ou quando, em face das provas produzidas, se encontre em estado de perplexidade ou, ainda, quando haja significativa desproporção econômica ou sociocultural entre as partes. III – Diante do cada vez maior sentido publicista que se tem atribuído ao processo contemporâneo, o juiz deixou de ser mero espectador inerte da batalha judicial, passando a assumir posição ativa, que lhe permite, dentre outras prerrogativas, determinar a produção de provas, desde que o faça com imparcialidade e resguardando o princípio do contraditório. IV – Na fase atual de evolução do Direito de Família, não se justifica, sobretudo quando custeada pela parte interessada, desprezar a produção da prova genética do DNA, que a ciência tem proclamado idônea e eficaz. V – No campo probatório, a grande evolução jurídica continua sendo, em termos processuais, a busca da verdade real [116]. (grifo nosso)

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Tanto a decisão relatada, como a que se segue, revelam a prevalência da verdade biológica sobre as verdades jurídica e sociológica da filiação. Trata-se de uma ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de registro, em que foi reconhecido o direito do filho de esclarecer sua paternidade biológica, através do exame de DNA:

Investigatória de Paternidade cumulada com Anulação do Registro – Pai Registral – Necessidade de Citação – Realização de Perícia – Convênio do Tribunal de Justiça com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Exame de DNA – A citação do pai registral se faz necessário, quando existe cumulação da ação de investigação de paternidade com pedido de anulação de registro. A inexistência de citação leva a anulação do processo coma desconstituição da sentença. O direito sagrado de qualquer pessoa saber sobre sua origem biológica e genética, com a identificação de seu pai biológico, determina a realização do exame de DNA, através de convênio firmado com o Tribunal de Justiça e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialmente estando uma das partes sob o benefício da gratuidade da Justiça. A realização da perícia por conta do Estado, não acarreta custos para as partes. Para o próprio réu e interessante esclarecer a verdade natural com a geração biológica e não somente se contentar com a declaração jurídica, calcada no fato social. Processo anulado. Sentença cassada [117]. (grifo nosso).

Em muitas dessas decisões restam subsídios para estabelecimento de uma paternidade pautada em laços de afeto, como esta decisão, proferida em ação de investigação de paternidade, ao revelar os elementos constitutivos da posse de estado de filho, declarando que a filiação admite qualquer tipo de prova, mesmo a testemunhal:

Direito de Família. Filiação Adulterina. Investigação de Paternidade – Possibilidade Jurídica – 1 – A nova ordem jurídica, instituída com a Carta de 1988, recepcionou, parcialmente, o art. 363, do Código Civil, apenas no que houver compatibilidade com o art. 227, § 6º, da Lei Fundamental, derrogando qualquer expressão ou exegese discriminatória em matéria de filiação. 2 – Para os fins do art. 363, I, do Código Civil, concubinato é a união sexual estável, mais ou menos prolongada, do homem e da mulher não unidos pelo matrimônio, ainda que não haja coabitação ou convivência more uxório. " 3 – "Em matéria de concubinato, a prova é ampla. O Código Civil, à semelhança da lei francesa, não fez restrição alguma, admitiu todos os meios de prova, inclusive a testemunhal, pois dificilmente se conseguirá uma prova documental. Os mestres ensinam que a filiação, por isso que resulta de um fato oculto, por sua natureza secreto, pode ser provada por todos os meios, indícios, presunções, conjecturas próprias a convencer o julgamento, como a amizade e trato freqüente com a mãe ao tempo da concepção." (Recurso Extraordinário no 2.004, julgado pelo STF, em Sessão Plenária, e Relatado pelo Min EDMUNDO LINS. Revista de Direito, 109:165)." 4 – Se os autores provaram, satisfatoriamente, a existência de concubinato extra domus, com a prolongada união sexual dos pais e a fidelidade da mãe ao tempo da concepção, a demanda de investigação de paternidade deve julgada procedente. 5 – Se o exame hematológico é necessário para a negativa de paternidade, cumpre ao Réu o ônus de ceder o sangue exigido, sob pena de a recusa ser interpretada em seu desfavor [118]. (grifo nosso)

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, da 8ª Câmara Cível, Acórdão nº 595.163.114, cujo Relator foi o Desembargador Sérgio Gischkow Pereira, revelou, também, a prioridade da paternidade biológica à paternidade jurídica, com referência à verdade sócio-afetiva:

Ação Negatória de Paternidade – Filiação – Decadência – As regras do Código Civil precisam ser adaptadas ao novo sistema jurídico brasileiro de direito de família, implantado pela Constituição Federal de 1.988 e diplomas legais posteriores. Isto implica em revogação ou não recepção de vários dispositivos daquele Código, como, por exemplo, os arts. 340, 344 e 364, em matéria de filiação. Tornou-se ampla e irrestrita a possibilidade investigatória da verdadeira paternidade biológica, que prevalece sobre a verdade jurídica (três estágios na filiação: verdade jurídica – verdade biológica – verdade sócio-afetiva). Destarte, não há que opor obstáculos legais superados à demanda negatória de paternidade proposta pelo pai contra o filho matrimonial. Da mesma forma, não pode persistir os prazos exíguos de decadência contemplados no art. 178, §§ 3º e 4º, inc. I, do Código Civil [119]. (grifo nosso)

Na decisão que segue, fica claro que os tribunais pátrios quando utilizam a noção de posse de estado de filho, o fazem apenas como prova subsidiária para o estabelecimento da filiação, deixando de apreciá-la como prova autônoma, suficiente para determinar a paternidade:

Ação investigatória de paternidade procedente – Provado o relacionamento sexual exclusivo da mãe da investigante com o investigado durante o período da concepção, pouco importa tenha ela se relacionado com outro ou com outros homens antes ou depois daquele período. Rejeição da exceptio plurium concubentium. Influência da cor da pele na determinação da paternidade – Indícios resultantes da posse de estado e da conduta do investigado. Efeitos da coisa julgada que afastou a paternidade de terceiro sobre a investigante, em processo anterior, desconstituindo o respectivo registro. O direito aos frutos se conta a partir da intimação da sentença de procedência e não da citação – Naquela data é que termina à posse de boa-fé do herdeiro aparente – Aplicação do art. 510 do Código Civil [120]. (grifo nosso).

Do voto do Ilustre Presidente e Relator, Desembargador Galeno Lacerda, destaca-se o seguinte trecho da decisão, no qual se vê, claramente, que o Julgador destacou a presença dos dois principais elementos constitutivos da noção de posse de estado de filho [121], quais sejam, o trato e a fama:

Além da festa do casamento, o investigado, no nível fora da família e da alta sociedade, sempre atribuiu à autora status de filha: deu-lhe educação, pagou-lhe pensão para estudar, vestuário, presenteou-a com imóvel valioso, e não ocultou o fato a inúmeras pessoas, inclusive a A.M.L., Diretor do Patronato, que declara que a paternidade de X em relação à autora era fato notório (fls. 165v.). Aliás, dado que impressiona parecença entre ambos, como se evidencia da foto de fls. 29, quando a conduzia ao altar. Foi, além disto, padrinho da filha da autora, junto com Y, como verdadeiros avós, (fl. 9), e a A., na verdade, sempre o tratou como pai, tomando-lhe a benção, como depõem as testemunhas.

Entretanto, há de se destacar que, neste caso, a posse de estado de filho também foi utilizada como prova subsidiária para o estabelecimento da filiação, tendo em vista que ela serviu apenas para completar a prova do relacionamento sexual exclusivo da mãe da investigante com o investigado durante o período da concepção, nos termos do artigo 363, do Código Civil Brasileiro [122].

Na próxima decisão, da mesma forma que a anterior, a noção de posse de estado de filho também é utilizada apenas como prova subsidiária para o estabelecimento da paternidade, deixando de ser vista como prova suficiente, por si só, para o estabelecimento da filiação:

Ação investigatória de paternidade. Comprovados o namoro e o relacionamento exclusivo da mãe do investigante com o investigado, julga-se procedente a ação – Filho exposto, para evitar o escândalo a envolver família abastada. Reconhecimento posterior da maternidade por escritura pública [123].

Do voto do Desembargador Galeno Lacerda, destaca-se o seguinte trecho:

Enfim, a posse de estado se infere do comportamento de B para com o investigante, ajudando-o nos primeiros passos da vida e se empenhando, perante o primo, para livrá-lo do Serviço Militar, como se colhe do depoimento de S [124].

Da mesma forma, mesmo presentes os elementos constitutivos da posse de estado de filho, a paternidade foi estabelecida tendo em vista a prova do namoro e relacionamento exclusivo da mãe do investigante com o investigado, sendo que a posse de estado de filho serviu apenas para reafirmar a convicção do Julgador.

Assim, tendo em vista as decisões acima descritas, nota-se que a jurisprudência vem, aos poucos, adotando a noção de posse de estado de filho, muito embora, na maioria das vezes, como prova subsidiária para o estabelecimento da paternidade.

Rolf Madaleno destaca a importância da paternidade sócio-afetiva, quando diz:

A Carta Política de 1988 garante a todos os filhos o direito à paternidade, mas este é o sutil detalhe, pois que se limita ao exame processual e incondicional da verdade biológica sobre a verdade jurídica. Entretanto, adota um comportamento jurídico perigoso, uma vez que dá prevalência à pesquisa da verdade biológica, olvidando-se de ressaltar o papel fundamental da verdade sócio-afetiva, por certo, a mais importante de todas as formas jurídicas de paternidade, pois, seguem como filhos legítimos os que descendem do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição e, para esses caracteres a Constituição e a gênese do futuro Código Civil nada apontam, deixando profunda lacuna no roto discurso da igualdade, na medida em que não protegem a filiação por afeto, realmente não exercem a completa igualização [125].

Recentes decisões dos nossos tribunais, revelam um novo tratamento para a filiação, valorizando a verdade sócio-afetiva, que até mesmo prevalece sobre a verdade biológica, como na decisão a seguir citada, em que o filho ajuizou ação de anulação de registro civil, entendendo os julgadores que o pai registral (já falecido), mesmo sabendo da verdade biológica, tratou o autor como se seu filho fosse, devendo prevalecer no registro de nascimento a verdade sócio-afetiva sobre a verdade biológica:

Ação para Anular Registro de Nascimento. Legitimidade ativa. Verdade formal, verdade material e verdade sócio-Afetiva. Gratuidade judiciária e execução da sucumbência. O filho do de cujus tem legitimidade para anular registro de nascimento feito por seu pai, o qual entende falso. O de cujus teve muito tempo para renegar a sua paternidade. Tinha muitos meios de prova que não era pai. Contudo, preferiu viver como verdadeiro pai. Assumiu e se responsabilizou, sem ligar para o que a ciência genética poderia dizer. Um registro de nascimento deve atentar mais para a verdade sócio-afetiva do que para a verdade biológica. A execução da sucumbência, havendo o benefício da gratuidade judiciária, deve ficar suspensa. Rejeitadas as preliminares, deram provimento ao apelo [126]. (grifo nosso).

Em outra decisão, agora em ação negatória de paternidade proposta pelo pai, verifica-se que os julgadores entenderam que o autor é carecedor da ação, tendo em vista que o mesmo sempre soube que não era o pai biológico, porém, restou comprovada a paternidade sócio-afetiva:

Negatória de paternidade. Declaração falsa de filiação. Desconstituição do registro. Impossibilidade. Paternidade sócio-afetiva. Carência de ação. É carecedor de ação visando desconstituir o registro de nascimento, o pai que reconhece formalmente a filha, sendo sabedor da inexistência do liame biológico, mas deixando evidenciada a situação de paternidade sócio-afetiva. Vedação dos art. 104 do Código Civil e art. 1 da Lei n. 8.560/92. Embargos Infringentes acolhidos [127]. (grifo nosso).

Na próxima decisão, em ação de anulação de reconhecimento de filho extramatrimonial, os julgadores também deram prevalência à paternidade sócio-afetiva, em detrimento à paternidade biológica, como segue:

Ação de anulação de reconhecimento de filho extramatrimonial. Prevalência da paternidade sócio-afetiva. Não ofende a verdade o registro de nascimento que espelha a paternidade sócio-afetiva, mesmo que não corresponda a paternidade biológica. Acolheram os Embargos [128]. (grifo nosso).

Nesta decisão, o julgador deixou bem claro os fundamentos extraídos da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que conduzem ao reconhecimento da paternidade sócio-afetiva:

Filiação. Filho adulterino "a matre" registrado pelo marido da mãe. Possibilidade de terceiro vindicar a condição de pai. Paternidade jurídica. Paternidade Biológica. Paternidade sócio-afetiva. 1. A Lei nº 8560/92, ao remover qualquer restrição para o reconhecimento de filhos extramatrimoniais pelos respectivos pais, assegura-lhes o interesse jurídico para eventual demanda que tenha essa finalidade. Em decorrência, tanto o pai quanto a mãe tem legitimidade para postular em nome próprio, em ação que visa à vindicação de paternidade ou maternidade. 2. A despeito da ausência de regulamentação em nosso direito quanto a paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção a criança (art. 227, CF), assim como da doutrina da integral proteção consagrada na Lei nº 8069/90 (especialmente nos arts. 4º e 6º), é possível extrair os fundamentos que, em nosso direito, conduzem ao reconhecimento da paternidade sócio-afetiva, revelada pela "posse do estado de filho", como geradora de efeitos jurídicos capazes de definir a filiação. 3. Entretanto, o pedido formulado na ação não tem esse conteúdo, mas visa, modo exclusivo, desconstituir o registro de nascimento da menor, sem atribuição de paternidade ao autor/agravado. assim, dada a forma equivocada como foi posta a pretensão, não ostenta o autor legitimo interesse para a demanda. A desconstituição do registro seria mera decorrência da atribuição da paternidade ao autor/agravado. Porem, como esta não consta do pedido - e não poderia a sentença ir alem do postulado - resta o autor órfão de interesse legitimo para propor a demanda nos termos em que foi formulada, a qual, se procedente, traria como conseqüência, simplesmente, a circunstância de que a menor ficaria sem qualquer paternidade reconhecida, o que não pode ser admitido, ate em consideração aos superiores interesses da criança. Deram provimento [129]. (grifo nosso).

Dada a importância, que esta noção aos poucos, assume no tribunais, conforme será demonstrado no próximo capítulo, ela pode e deve ganhar novo status em nosso ordenamento jurídico, notadamente porque leva à abertura de um novo caminho no que tange ao Direito de Família, qual seja, a filiação sócio-afetiva.

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Sobre a autora
Elisabeth Nass Anderle

acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDERLE, Elisabeth Nass. A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3520. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

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