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A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação

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01/11/2002 às 00:00
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4. A POSSE DE ESTADO DE FILHO E NOVOS VALORES PARA A FAMÍLIA: DA COMUNIDADE DE SANGUE À COMUNIDADE DE AFETO

Como visto anteriormente, a posse de estado de filho não foi contemplada em nossa legislação como elemento constitutivo da filiação. Entretanto, o que se pretende demonstrar neste trabalho é que a posse de estado de filho pode ser contemplada como elemento constitutivo da paternidade responsável, fundada nos laços de afeto, dentro da noção de família sociológica.

Ressalte-se que, mais do que nunca, o afeto possui grande relevância jurídica, especialmente no que diz respeito às relações de família, sendo entendido como razão de sua própria existência, diferentemente, como já visto, das relações tradicionais, nas quais a afectio era presumida, determinada por uma situação jurídica pré-estabelecida, fazendo com que nem sempre existisse no âmbito da família [130].

O sentido da paternidade surge então em três formas: a paternidade jurídica, determinada pela presunção pater is est, a paternidade biológica, que nos tempos atuais é revelada através do exame de DNA e, a paternidade sócio-afetiva, aquela fundada nos laços de afeto, cuja construção se dá diariamente, com pequenas doses de amor, de carinho e cuidados dispensados ao filho [131].

No que tange a paternidade jurídica, estabelecida através da presunção pater is est, conforme já analisado, vimos que esta só fazia sentido em uma sociedade essencialmente patriarcal e matrimonializada, em que se exigia a fidelidade da mulher, garantidora, desta forma, da certeza e segurança quando do estabelecimento da filiação. O autor Paulo Luiz Netto Lobo explica esta situação:

A família patriarcal perpassou a história deste país e marcou, profundamente, a formação do homem brasileiro. Suas funções mais evidentes eram econômico-patrimoniais, políticas, procracionais e religiosas. A função de realização da comunidade afetiva, que passou a ser determinante ao final do Século XX, era secundária. A filiação biológica, desde que originada na família matrimonializada, era imprescindível para o cumprimento dessas funções e papéis notadamente de preservação da unidade patrimonial [132].

A respeito da paternidade biológica, esta também não é mais suficiente, pois a certeza absoluta de origem genética não pode ser vista como único valor dentro do campo do estabelecimento da paternidade, pois é certo que a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, formada pelas relações de afeto, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo [133].

E, a paternidade sócio-afetiva surge então como sendo aquela emergente da construção afetiva, através da convivência diária, do carinho e cuidados dispensados à pessoa. Surge dentro do conceito mais atual de família, ou seja, de família sociológica, unida pelo amor, onde se busca mais a felicidade de seus integrantes.

Entretanto, nem sempre é tarefa simples estabelecer a paternidade, tendo em vista que não raras vezes existirá um confronto entre as três, quais sejam, a jurídica, a biológica e a sócio-afetiva. E o que se busca com este trabalho é demonstrar a importância da noção de posse de estado de filho para a solução deste conflito, como será analisado a seguir.

4.1. O conflito das verdades biológica e sócio-afetiva na filiação

Como já visto anteriormente, no sistema codificado prevalece a presunção pater is est, ou seja, determina-se a paternidade jurídica. Entretanto, viu-se também que, além da paternidade jurídica, coexistem a paternidade biológica e a sócio-afetiva.

Desta forma, verificar-se-á que, não raras vezes, estas verdades entram em conflito, sendo que nosso ordenamento jurídico ainda contém inúmeras lacunas no que tange a solução destes problemas.

Para melhor se compreender como surgem estes conflitos de paternidade, três exemplos serão analisados, a seguir:

Primeiro exemplo: Mulher casada, separada há longos anos (de fato) do marido, vive com outro homem em relação estável e tem filho desse companheiro. Trata-se, por evidente, de filho concebido durante a separação de fato do casal, e portanto quando inexistia convivência real, efetiva, entre os cônjuges. Ora, no sistema legislado vigente, o que determina a incidência da presunção pater is est... é a existência do vínculo matrimonial formal, não sendo relevante, para a incidência da presunção, o fato de viver ou não a mulher em comunhão de vida com seu marido [134].

Neste primeiro caso, vê-se claramente que, apesar da improbabilidade do marido da mãe ser o verdadeiro pai da criança, para o sistema codificado isto não importa, prevalecendo, para tanto, a paternidade estabelecida pela presunção pater is est, ou seja, prevalecendo a paternidade jurídica [135]. Ainda, há de se ressaltar que se o marido perde o exíguo prazo estabelecido pelo Código Civil para contestar esta paternidade, ou o ajuizamento da ação não lhe interessa ou mesmo se não existe impossibilidade física ou separação legal do casal, irremediável estará a situação jurídica criada por uma presunção. A paternidade biológica e paternidade sócio-afetiva ficam escondidas, a margem da lei, impossibilitando a busca da verdadeira paternidade [136].

Mais odioso ainda seria se, neste caso, o pai biológico (concubino) tivesse também uma relação de afeto com a criança, coincidindo a paternidade biológica com a paternidade sócio-afetiva, pois, neste caso, apesar de revelada a verdadeira paternidade, conforme visto, a paternidade jurídica prepondera sobre aquelas.

Porém, cabe ressaltar que, no caso do pai jurídico possuir posse de estado de filho em relação à criança, esta paternidade prepondera sobre a verdade biológica, tornando-se inatacável, pois a presunção pater is est, neste exemplo, corrobora a verdade sócio-afetiva [137].

Veja-se outro exemplo em que há conflito de paternidade:

Segundo exemplo: Mulher casada, vivendo em companhia do marido, que concebe filho de outro homem. (O filho, portanto, foi concebido na constância do casamento, isto é, nascido depois dos 180 dias de que fala o art. 338, I, e antes dos 300 dias contados da dissolução da sociedade conjugal (art. 338, II) ou de separação de fato). A mãe passa a viver com o verdadeiro pai da criança, que o trata como filho. O marido da mãe desinteressa-se em negar a paternidade, deixando de propor a contestatória. Incide a presunção pater is est... [138]

Neste exemplo tem-se a filiação adulterina a matre. Deve-se destacar que, neste caso, a mulher já não vive mais em companhia do marido, de forma que não existe paz familiar a ser preservada [139]. Entretanto, ao pai biológico, que também é o pai sócio-afetivo, não cabe propor ação contestatória de paternidade, uma vez que incide a presunção pater is est, ou seja, a paternidade jurídica prevalece sobre a paternidade biológica e, o que é mais grave, sobre a paternidade sócio-afetiva.

Outro exemplo em que se vê configurado o conflito de paternidade:

Terceiro exemplo: Ao contrário dos exemplos anteriores, trata-se de hipótese excepcional quanto à possibilidade de ocorrência efetiva, mas retirada de exemplo judicial real: decisão da Suprema Corte da Califórnia, do ano de 1975. Mulher casada separou-se (de fato) de seu marido e passou a viver com outro homem, de quem teve um filho. Quando este tinha cinco meses de idade, deixou a companhia do pai da criança e, levando o filho consigo, voltou a viver com o marido. A criança foi registrada em nome do marido da mãe. (De resto, a rigor, em nosso Direito, do mesmo modo, incidiria a presunção pater is est...). Posteriormente, a mulher e o seu marido vieram a falecer, sendo a criança entregue à guarda de estranhos, sob a fiscalização de tutor judicialmente nomeado. Contra o teor das regras legais vigentes na Califórnia, a Corte admitiu a possibilidade jurídica de que o verdadeiro pai demonstrasse judicialmente sua paternidade [140].

Neste último caso, clara é a vontade do verdadeiro pai criar laços afetivos com a criança e de passar a ter, efetivamente, uma relação paterno-filial com a mesma [141].

Ainda, não existe paz familiar a ser preservada, tendo em vista que tanto a mãe quanto o pai estão mortos, devendo ser priorizado o interesse da criança, lhe sendo dada a possibilidade de viver em companhia do seu verdadeiro pai que, aliás, demonstra grande interesse em exercer este papel [142].

4.2. O equilíbrio das verdades: abertura para a filiação sócio-afetiva

Neste último tópico, pretende-se demonstrar que a busca pelo equilíbrio entre a valoração da verdade biológica e a necessidade de se respeitar a verdade sócio-afetiva pode se dar através da utilização da noção de posse de estado de filho, haja vista, a experiência estrangeira ter demonstrado sua valiosa contribuição quando dos conflitos de estabelecimento da paternidade [143].

Como já visto, a paternidade não é um dado, algo determinado, não se podendo estabelecer por presunção derivada da norma legal ou então somente pela descendência genética [144], pois, antes de tudo, a paternidade é algo que se constrói com o afeto que se funda esta relação, residindo antes no serviço e amor que na procriação [145]. O professor Zeno Veloso demonstra muito bem esta relação em suas palavras:

Quem acolhe, protege, educa, orienta, repreende, veste, alimenta, quem ama e cria uma criança, é pai. Pai de fato, mas, sem dúvida, pai. O "pai de criação" tem posse de estado com relação a seu "filho de criação." Há nesta relação uma realidade sociológica e afetiva que o direito tem de enxergar e socorrer. O que cria, o que fica no lugar do pai, tem direitos e deveres para com a criança, observado o que for melhor para os interesses desta [146].

Assim, a busca pelo equilíbrio das verdades biológica e sócio-afetiva deve sempre priorizar o interesse da criança, pois será ela quem sofrerá diretamente as conseqüências de uma solução que não encontra respaldo na realidade por ela vivida.

Por isso mesmo, é que mais uma vez ressalta-se que a verdade biológica deve ser vista com cautela, fugindo do euforismo dos avanços da medicina, que hoje trazem em seus exames alto grau de certeza em relação à descendência genética, pois, do contrário, estar-se-á deixando a mercê os sentimentos das pessoas envolvidas no caso concreto. Nas palavras do professor Zeno Veloso, "Não seria razoável e justo, podendo ocasionar a maior desagregação familiar, trocar, simplesmente, o pater is est quem nuptiae demonstrant por um modernoso pater is est quem sanguis demonstrat [147]."

Sobre esta questão, destaca-se o pensamento do professor Rodrigo da Cunha Pereira:

Toda a estrutura do Direito para averiguação da paternidade está assentada nos laços biológicos da paternidade. Com a evolução do conhecimento científico isto ficou facilitado, já que se pode saber quem é o genitor, pelo método do DNA.

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Por outro lado, com o avanço do conhecimento "psi" podemos verificar que a paternidade não é um fato da natureza, mas antes, um fato cultural. Em outras palavras, paternidade é uma função exercida, ou um lugar ocupado por alguém que não é necessariamente o pai biológico. Neste sentido, o lugar de pai pode ser ocupado por outra pessoa como o irmão, o avô, o namorado etc [148].

E continua:

O Direito brasileiro já deveria ter entendido que por mais que se queira atribuir uma paternidade pela via do laço biológico, ele jamais conseguirá impor que o genitor se torne o pai. O alcance desta investigação limita-se na maioria das vezes, como já estabeleceu a lei francesa, para os fins de subsídios. Com isto, podemos entender que a Constituição brasileira de 1988, ao interferir no sistema de filiação, está a um passo do entendimento da paternidade em seu sentido mais profundo e real. Ela está acima dos laços sangüíneos. Um pai, mesmo biológico, se não adotar seu filho, jamais será o pai. Por isto podemos dizer que a verdadeira paternidade é adotiva e está ligada à função, escolha, enfim, ao Desejo [149].

A paternidade biológica, em determinados casos, coincide com a paternidade sócio-afetiva. Entretanto, confrontando-se as duas, esta pode preponderar sobre aquela, tendo em vista que revela muito mais do que laços de sangue, revela laços de afeto entre pai e filho [150].

Deve-se, para tanto, dar especial importância aos princípios estampados na Constituição Federal de 1988, que prioriza, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, "que começa a conquistar importância social e a adquirir valorização jurídica à paternidade, que também passa a ser vista por sua concepção cultural, com efeito fático sustentado na afeição e não apenas na verdade biológica."

Vê-se esta transformação muito claramente nas regras que priorizam a criança, em especial no Estatuto da Criança e do Adolescente, atendendo, sempre, o seu melhor interesse. E um dos maiores interesses e direito da criança é, sem qualquer dúvida, a de ter um ‘Pai’, é a busca por uma paternidade fundada essencialmente nos laços de afeto e amor, na paternidade construída e vivida diariamente por pai e filho, consolidando, assim, uma família feliz [151].

É neste sentido que surge a importância de acolhermos em nosso ordenamento jurídico a noção de posse de estado de filho, como forma de solução para os conflitos de paternidade que batem às portas do Poder Judiciário, utilizando-a como verdadeira causa de pedir e elemento constitutivo da filiação.

Como exemplo, cita-se a presente decisão, que, embora trate da denominada "adoção a brasileira", consagra a verdade da filiação sócio-afetiva, decorrente do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana:

Negatória de paternidade. "Adoção a brasileira." Confronto entre a verdade biológica e a sócio-afetiva. Tutela da dignidade da pessoa humana. Procedência. Decisão reformada. 1. A ação negatória de paternidade é imprescritível, na esteira do entendimento consagrado na sumula 149 do STF, já que a demanda versa sobre o estado da pessoa, que é emanação do direito da personalidade. 2. No confronto entre a verdade biológica, atestada em exame de DNA, e a verdade sócio-afetiva, decorrente da denominada "adoção a brasileira" (isto é, da situação de um casal ter registrado, com outro nome, menor, como se deles filho fosse) e que perdura por quase quarenta anos, há de prevalecer a solução que melhor tutele a dignidade da pessoa humana. 3. A paternidade sócio-afetiva, estando baseada na tendência de personificação do Direito Civil, vê a família como instrumento de realização do ser humano; aniquilar a pessoa do apelante, apagando-lhe todo o histórico de vida e condição social, em razão de aspectos formais inerentes a irregular "adoção a brasileira", não tutelaria a dignidade humana, nem faria justiça ao caso concreto, mas, ao contrário, por critérios meramente formais, proteger-se-ia as artimanhas, os ilícitos e as negligências em benefício do próprio apelado. Decisão: Unânime: negar provimento aos agravos [152]. (grifo nosso).

Desta forma, precisamos adequar as normas jurídicas existentes em nosso ordenamento jurídico com a realidade vivida pela sociedade neste novo século, como bem demonstra o Professor Rodrigo da Cunha Pereira em suas palavras:

O desafio do terceiro milênio será a reaprendizagem da organização da polis, considerando que não é possível pensar o Estado sem seu núcleo básico, a família. Não é possível este núcleo básico sem o lugar Estruturante do Pai. Teremos que reaprender, então, diante das novas formas de família, e nesse novo contexto social, o que é um pai, pois já sabemos que a ausência dele pode ser desestruturante para o sujeito [153].

Assim, na busca do equilíbrio destas verdades para o estabelecimento da paternidade, deve-se ter como base fundamental os novos valores inerentes ao conceito de família trazidos pela Constituição Federal de 1988, como também pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais apontam para a valorização da paternidade sócio-afetiva.

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Sobre a autora
Elisabeth Nass Anderle

acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDERLE, Elisabeth Nass. A posse de estado de filho e a busca pelo equilíbrio das verdades da filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3520. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

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