“Como muitas correntes e movimentos filosóficos, os juristas, absolutamente seguros de si mesmos e convencidos que sabem mais que ninguém, escrevem em um momento determinado suas teorias, uma «poética» para adultos completamente ignorante do domínio de qualquer conhecimento ou técnica científica: uma província do imaginário que lida com um continente meramente especulativo.” Atahualpa Fernandez
Nos últimos tempos, impôs-se no mundo acadêmico o «desideratum» da interdisciplinaridade, entendida em um sentido mínimo como a interação, coordenação e conexão de disciplinas distintas com o fim de melhorar as explicações fragmentárias sobre partes do mundo. Nesse sentido, a interdisciplinaridade se entende como a busca sistemática de integração das teorias, métodos, instrumentos e, em geral, fórmulas de ação científica de diferentes disciplinas, a partir de uma concepção multidimensional dos fenômenos, e do reconhecimento do caráter relativo dos enfoques científicos por separado. Que dúvida cabe que é esta uma aspiração estimável que se compadece com o bom sentido epistêmico de mitigar ou eliminar a prática da ciência em compartimentos estancos?
Nada obstante, muito do que se afirma neste campo de cooperação entre disciplinas não passa de ser “propaganda gremial disfarçada de alguma teminologia confusa ou de algum arabesco metodológico inecessário”(M. E. Salas). Dito de forma um pouco grossa: se trata mais bem de algo que todos falam e ninguém pratica, que todos elogiam, mas ninguém realiza. E não é distinto o atual discurso interdisciplinar no âmbito da filosofia e da ciência do direito: é tacanho e precário ao mesmo tempo. Um tipo interdisciplinaridade restrita (prioritariamente) ao âmbito das ciências sociais normativas que acabou transformando-se em um “mainstream” do pensamento (pseudo) jurídico-científico atual e que vem sendo posta em causa (continuamente) pelos novos descobrimentos provenientes das ciências dedicadas ao estudo científico da natureza humana e dos esforços por compreender a condição humana baseados em estudos empíricos.[1]
Por que os juristas, “cientistas” e/ou filósofos do direito continuam ilhados das demais ciências e se resistem a evolucionar ou, se o fazem, seus câmbios não provêm de nenhuma investigação científica séria? Por acaso não sabem que o isolamento disciplinar é um indicador fiável da falta de cientificidade e honradez intelectual? Quanto tempo os juristas tardarão para entender que não podem existir sorrisos (ou pensamentos) sem cabeça? Até quando seguirão banhando-se nas águas estancadas dos labirintos de uma erudição acadêmica que não conta com o certificado de legitimidade das ciências dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana?
Existe uma evidente paisagem teoricamente anfibológica, hermeticamente cerrada e cognitivamente hostil à realidade por parte da cultura jurídica em que os juristas fiéis à “pureza do direito” parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu dogmático e quase místico sistema de crenças. Uma classe de resistência construída durante anos de condicionamento e «domesticação» (essa constelação de todos os prejuízos e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência, nas palavras de Miguel Ruiz), e cujo resultado é a incapacidade de ver o que não estão acostumados a ver ou que não têm de antemão na cabeça, isto é, de recordar, insistir e atentar somente aos fatos que confirmam suas respectivas crenças e olvidar aqueles que as desafiam.
Um tipo de cultura atravessada por certezas endógenas alheias às implicações jurídicas da natureza humana e que mais se parece – para utilizar a gráfica expressão de Unamuno – a “um cemitério de ideias mortas”. Ali crescem, se reproduzem e morrem a diário distintas e muito heterogêneas concepções sobre o que “é”, sobre o que “deveria ser” e sobre “como” aplicar o direito. Cada uma das correntes, cada um dos autores, defende seu próprio conceito do jurídico, de interpretação e aplicação do direito, de argumentação jurídica, de racionalidade, de justiça... E surgem assim as “Escolas”, com seus discípulos e mestres (e não poucas vezes com seus lacaios e mentores). Não sem razão já se disse – com ironia – que a disciplina jurídica é um templo com sacerdotes e Bíblias muito distintas e com credos contraditórios: um templo donde os sacerdotes elaboram e enunciam suas teorias propondo fórmulas e técnicas, conceitos e postulados, critérios e métodos para fazer do direito uma disciplina (ou “ciência”) mais «pura e racional».
Opino que esta tendência a reduzir o estudo do direito a apenas «disciplinas formais sobre o direito» e de restringir o «método jurídico» essencialmente a uma técnica de interpretação e aplicação judiciária ou administrativa de normas (quero dizer, a um estado de espírito anti-interdisciplinar), constitui um indicador fundamental e fiável de um elemento tipicamente religioso do fenômeno jurídico: o pensamento mágico da pureza e a magia por contágio. Na religião há uma obsessão pela pureza, daí os rituais de purificação de tantas religiões (o próprio batismo é um deles). A magia por contato é a crença em que qualquer coisa em contato com outra impura se contamina dessa impureza. O impuro deve ser exterminado totalmente. (A. Carmona)
Isso explicaria todos os esforços dos juristas por apresentar-se e manter-se de modo imaculado. Pureza que implica não somente estar imersos unicamente no âmbito do “jurídico”, senão estar separados e distantes de qualquer elemento contaminado, ainda que seja minimamente, como seriam todas as demais ciências da vida, da mente e da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica, incluída a neurociência. O “prestígio” do direito está em sua novidade e caráter puro (ou imaculado): qualquier vínculo com algo externo deve ser cortado e eliminado de raiz. A pureza implica nenhuma relação com o exterior e o estranho. Não podem intentar utilizar algo de outras ciências existentes para reformar ou regenerar suas crenças e teorias; devem começar de zero, reforçar a sensação de novidade absoluta e enclausurar-se para manter a pureza ou a genuinidade: o «adamismo». Um «adamismo» e purismo demasiado peculiar dos juristas profissionais, «esos especialistas en todo y en nada que, sin dominar ninguna técnica científica, tienen la insolencia de atreverse a hablar de todo lo divino y lo humano» (Manuel Sacristán).
Trata-se, desde logo, de um posicionamento teórico-acadêmico de uma hipocrisia insofrível e cuja única vantagem consiste em que não conduz a nada, “si no es a más de lo mismo, es decir, «nada»: se aplica más cantidad de la misma «solución» y se cosecha más cantidad de la misma miseria” (P. Watzlawick). Como denuncia Daniel Kahneman, “esto no pasa de ser un mito. La ciencia es una empresa humana afectada por sombríos sesgos emocionales, cognitivos e ideológicos, incluyendo rasgos propios de mente de colmena y por el tipo de presiones sociales «conservadoras» y «progresistas» descritas por Thomas Kuhn”. E se nos aprofundamos um pouco mais nesta espécie de formalismo anti-interdisciplinar, aparece um quadro muito mais enganoso, estrafalário e tenebroso, de sinistra competência, seleção despiedada e traiçoeiras correntes jurídicas.
Desde meu ponto de vista, dado que a valoração do fenômeno jurídico está diretamente relacionada com dinâmicas profundamente enraizadas na natureza humana, minha postura é que devemos ter em conta o «é» à hora de decidir o que «deve ser», quer dizer, que temos que ter em conta a natureza humana à hora de elaborar, interpretar e aplicar o direito e que não podemos eleger de forma arbitrária qualquer «dever ser»: as normas jurídicas (e morais) evolucionaram para adaptar-se à mente humana. Esta, em minha opinião, constitui a melhor trajetória para distanciar-nos das inferências estúpidas e ajudar-nos a buscar as raízes de nossa moralidade em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, em nossa natureza, em definitiva.
Parece que entre os propósitos da atitude anti-interdisciplinar adotada pela maioria dos juristas não está a busca da verdade senão a mera persuasão ou prática retórica (“l´art du bavardage”, como diria J. Lacan): “simular chegadas, sem saídas e sem viagens”. O problema é que uma ciência que não adverte os signos de sua própria estagnação e potencial decadência, porque seu “fundamento” e ideologia é um mito continuo de justiça, “fatos” e/ou normas, se separa da realidade e se corrompe em uma ilusão. De fato, quando eliminamos a biologia da vida social, só nos resta “palavras” e qualquer ciência ou filosofia fica reduzida a um de tantos sistemas arbitrários de pensamento [nota bene: comumente gerados por indivíduos acomodados que se negam deliberadamente a fazer qualquer esforço para estudar um pouco de ciência ou simplesmente porque (talvez) lhes resulte mais fácil a prosaica tarefa de comentar textos, normas e teorias].
Nem sequer a linguagem (que, desde logo, é profundamente biológica), senão só palavras que têm um poder mágico de dominar a realidade e são capazes de inclinar nosso pensamento (R. Trivers). E uma vez que o grau de crença em algo se transforma na medida de seu valor de verdade, quando alguém vende um produto péssimo com argumentos falsos ou meramente especulativos, não quer saber nada das consequências. Assim choca a idiossincrasia com a realidade: a negação do direito (e da justiça) como «propriedade emergente» da natureza humana.
E não se trata, a interdisciplinaridade, de um problema de pouca importância ou de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos, já que todo esforço intelectual, seja autêntico ou falso, não somente possui uma filosofia subjacente, senão que a avaliação da filosofia subjacente a um campo do saber é uma reveladora maneira de efetuar distinções e julgar seu valor (M. Bunge). O que implica que a eleição da forma de abordar o direito (e sua respectiva filosofia subjacente) supõe uma diferença importante no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as estratégias que adotamos para regular nossas instituições e práticas sociais, e determina, em última instância, o repertório de ideias e teorias acerca do sentido e da finalidade do raciocínio prático ético-jurídico.
A aplicação da ciência ao direito enriquece nosso acervo de ideias, proporcionando instrumentos para averiguar quais têm maiores probabilidades de ser corretas. Também traz à baila questões fundamentais acerca do fato de que a natureza humana não somente gera e limita as condições de possibilidade de nossas sociedades senão que, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais. Ademais, uma vez que é simplesmente impossível saber o significado natural ou ideal da noção de justiça e que trata-se de algo que devemos ir construindo continuamente, o melhor que podemos fazer é ter em conta as restrições e possibilidades que nos impõe a natureza humana e suas teorias de impossibilidade.
Em resumo, o realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz e/ou de uma estupidez imperdoável e irredimível. E posto que a ciência trata todo o tempo de estender os limites do que se conhece, os juristas que se negam intolerantemente a admitir sua relevância para o âmbito do direito estão continuamente sendo empurrados contra uma barreira de ignorância.
Tudo está contaminado.
Notas
[1] Dizer que existe uma natureza humana é algo que não está admitido por todo mundo (filósofos e cientistas). Muita gente (especialmente das ciências sociais) segue pensando que o ser humano é uma «tabula rasa» na qual que se pode escrever qualquer coisa, que sua maleabilidade é infinita e que é somente produto da cultura. Já para os que não compartem dessa ideia, dizer que existe a natureza humana significa dizer que existem uma série de disposições de conduta e psicológicas que foram modeladas e refinadas pela seleção natural e que são evocadas pelo ambiente em que se vive. No tema concreto que nos ocupa agora, o comportamento moral e o sentido da justiça não são criados a partir de zero em cada indivíduo unicamente pelas forças da cultura, a educação ou as boas e más experiências vitais, senão que formam parte de nossa herança como espécie. Existe uma anatomia humana universal (com variações) e existe uma psicologia humana universal (também com variações). A sociobiologia, e posteriormente a psicologia evolucionista, por exemplo, põem a ênfase no repertório de condutas comuns a todas as culturas, no que nos une como espécie.