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Com leitura superficial não se faz “Direito”.

A incapacidade dos graduandos do curso de direito em ultrapassar as margens da leitura funcional e utilitarista

Leia nesta página:

Estudo interpretativo sobre a leitura entre graduandos do curso Direito em instituições privadas de ensino superior.

O analfabetismo funcional e as marcas neoliberais das instituições de ensino superior privadas.

Graduandos do curso de Direito, em princípio, subentendem-se plenamente alfabetizados? Engano! Dentro de um panorama real, vislumbra-se ser esta a situação ideal, porém, pouco provável de ser alcançada, haja vista a maioria dos graduandos ser precariamente escolarizada e pouco estimulada pelos docentes em reverter essa situação.

Segundo os dados do Indicador de Alfabetismo Funcional – Inaf (2011), divulgados pelo Instituto Paulo Montenegro e Ação Educativa, 38% dos estudantes universitários do país não dominam as habilidades básica de leitura e escrita.

Entre esses estudantes incluem-se os graduandos em direito que se mostram, na maioria das instituições particulares pesquisadas, incapazes de ler e escrever, de interpretar textos simples. Os “homens da lei” limitam-se à leitura superficial da legislação e de fragmentos fotocopiados de doutrinas e manuais jurídicos.

Somada a essa incapacidade discente, merece destaque o pouco estímulo dos docentes universitários para práticas de leitura e interpretação mais elaboradas. Entre os estudantes dos 9º e 10º períodos ouvidos na pesquisa, mais de 90% afirmam não terem tido indicações de leituras de livros ao longo dos cinco anos de curso. Neste contexto, como fazer direito?

Uma educação de boa qualidade, para todo cidadão, é objetivo de uma nação que busca ser democrática, pois como já dizia Freire (2000 p. 67) “Se a educação sozinha, não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.  

Embora os problemas seculares da educação brasileira atinjam todos os seus níveis e modalidades, espera-se que as lacunas acumuladas ao longo da educação básica sejam preenchidas no ensino superior quando os graduandos alcançariam uma formação acadêmico-profissional de boa qualidade. Mas, não é bem assim que tem acontecido....

O universitário de hoje reflete o aluno da educação básica de ontem, que, sem conhecimentos básicos e escolarização precária, não desenvolve interesse pelos estudos, buscando absorver o mínimo de informação que lhe parece pertinente e que lhe traga algum benefício imediato.

É inquestionável que o acesso ao ensino superior aumentou nas últimas décadas, entretanto, o grande número de matrículas nas Instituições de Ensino Superior – IES não corresponde ao acesso à educação de boa qualidade e aos ideais de universidade preconizados desde sua criação:

A expansão da educação superior não teve apenas um sentido de ampliação geográfica, mas também um sentido de ampliação social, movimento por meio do qual foram incorporados setores sociais, antes excluídos desse grau de formação. A classe média baixa e os trabalhadores foram atraídos, sobretudo, pelas instituições privadas que passaram a lhes oferecer cursos mais breves, mais baratos e, em tese, mais afinados com a sua destinação profissional. (INEP, 2006 p. 16)

A má formação escolar; o descrédito em relação à educação enquanto possibilidade de ascensão social; a falta de vagas na universidade pública; a ausência de políticas voltadas à permanência dos poucos alunos carentes em universidade gratuita e, como consequência dos anteriores, a expansão desenfreada das IES privadas, correspondem há alguns dos fatores responsáveis pelo novo perfil de universitário.

A IES privada é a principal porta de entrada do ensino superior, bem como o caminho mais rápido e fácil na busca pelo “diploma”. Ao pagar por sua formação, o aluno assume o também papel de consumidor, reconhecendo, já nas primeiras semanas de aula o poder de abrangência de sua mensalidade, é a instauração do “quase-mercado” educacional, como demonstra Dias Sobrinho (2003, p. 100):

No “quase-mercado” educacional, a educação e os conhecimentos tendem a ser uma “quase-mercadoria” para uso do indivíduo e dos grupos de clientes ou consumidores que a podem possuir. A formação plena do ser humano tende a se reduzir, na educação superior instrumentalizada para o mercado, ao sucesso individual, especialmente à capacitação para empregos, quer estes existam ou não.

Corroborando a ideia da explícita conformação da universidade aos ditames neoliberais, Santos (2005, p.25) afirma:

[...] com a transformação da universidade num serviço a que se tem acesso, não por via da cidadania, mas por via do consumo e, portanto, mediante pagamento, o direito à educação sofreu uma erosão radical. A eliminação da gratuidade do ensino universitário e a substituição de bolsas de estudo por empréstimos foram os instrumentos da transformação dos estudantes de cidadãos em consumidores. 

Neste novo “negócio”, a docência também sofre profundas alterações. O “professor prestador de serviço”, por vezes também originário de uma formação escolar precária que, aliada à ausência de saberes didático-metodológicos, contribui para o pensamento equivocado do aluno sobre a aquisição, a qualquer preço, do diploma universitário, ainda que este não corresponda à verdadeira formação intelectual.


Da “leitura da lei” à “leitura marginal”

Leite (2010) afirma que o curso de Direito, de forma geral, é um dos poucos cursos superiores que não acompanhou as mudanças sociais e as novas exigências do mundo do trabalho. Para o autor, os cursos continuam com a mesma estrutura há séculos, atualizando apenas a legislação e a jurisprudência.

 Tal posicionamento é corroborado por Muraro (2010 p. 2):

O curso de Direito vem se debatendo em meio a uma crise didático-pedagógica. Pode-se dizer que a maioria dos professores de Direito sempre encararam com naturalidade a evidência de que ensinam através da simples transmissão dos conteúdos que aprenderam, sem ter, de fato, uma formação específica para ensinar. A compreensão didática no ensino jurídico, em que pesem as exceções, ainda se vincula à mesma metodologia da época da criação do curso. Em boa parte, os professores não possuem nenhuma preparação didático-pedagógica e se restringem, em sala de aula, a expor o ponto do dia e a comentar os artigos dos códigos, adotando, quando muito, um ou mais livros-base, que serviriam para a elaboração de questões de prova.

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Neste cenário, a leitura vem sendo relegada a um segundo plano. Sua ausência tem contribuído para a má formação profissional, cidadã e humana dos “homens da lei”. É inegável que aqueles “que podem ler os textos, não os leem de maneira semelhante e a distância é grande entre os letrados de talento e os leitores menos hábeis” (CHARTIER, 1991 p. 5). Mas é justamente por isto que o estímulo à leitura de gêneros textuais diversificados deve ser uma constante entre os universitários. A “leitura obrigação” tem afastado o ser humano de sua sensibilidade estético-linguística, tal qual alerta Penac (1998). 

A oratória, a retórica, a hermenêutica são características indispensáveis ao operador do direito, mas como desenvolvê-las sem práticas leitoras? Como afirma Marcuschi (1996 p. 74) “a compreensão textual se dá em boa medida [...] como uma atividade de construção de sentido em que compreender é mais do que extrair informações do texto: é uma atividade de produção de sentidos”.

Como trabalhar tais aspectos em salas numerosas, com inúmeros alunos enfileirados, ávidos por uma educação fast food, caracterizada por resumos e esquemas, fotocópias de fragmentos de livros, cópias de slides de aula, dicas de concurso?  Como ultrapassar as largas margens de um rio tortuoso, de águas profundas e violentas? Aprender é um fenômeno complexo, rico e, por vezes, perturbador, assim como será o cotidiano do operador do direito.

 Enfim, em qualquer tipo de cobrança aos bacharelandos na busca pela sensibilidade e capacidade leitora de um Castro Alves, José de Alencar, Lygia Fagundes Telles, Monteiro Lobato ou de Oswald de Andrade, espera-se que este artigo possa contribuir para que, assim como esses importantes nomes da literatura brasileira de formação acadêmica jurídica, nossos futuros “homens da lei” possam ousar, possam se tornar “leitores marginais” e, com a mediação de seus professores, sejam capazes de ultrapassar as espessas margens da letra fria da lei e, quem sabe num futuro próximo, de superar a pequenez do pensamento ainda presente na sociedade brasileira de que certas profissões são melhores do que outras e de que a frieza da “palavra-lei” não pode ser acalentada com o calor da “palavra-marginal” como bem traduz o poema Classe Média, do escritor alagoano-recifense, Geraldino Brasil:

Um médico.

Ótimo na família

Um executivo.

Ótimo

Um engenheiro.

Um arquiteto.

Um magistrado.

Ótimo

Um poeta.

Melhor na família dos outros


Referências

BRASIL, G. Classe Média. In: Bem Súbido. Recife: Cia de Pernambuco, 1986.

BRASIL, Inep. Educação Superior Brasileira: 1991-2004. Brasília: Inep, 2006.

CHARTIER, R. O mundo como representação. In: Estudos Avançados. Vol. 5 n.11 São Paulo jan./abr, 1991.

DIAS SOBRINHO, J. Educação Superior: flexibilização e regulação ou avaliação e sentido público. In: DOURADO, L. Políticas de gestão da educação superior. São Paulo: Xamã, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

LEITE, L. Cursei Direito. Sou advogado? Revista Advogados. São Paulo, março de 2010.

MARCUSCHI, L. A. Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino de língua? In: Em Aberto, Brasília, ano 16, n.69, jan./mar, 1996.

MURARO, C. A formação do professor de Direito. http://www.jurisway.org.br. Acesso em 17/10/2013.

PENNAC, D. Como um romance. São Paulo: Editora Rocco, 1998.

RIBEIRO, V.; LIMA, A. Indicador de Alfabetismo Funcional – Inaf Brasil 2011. São Paulo: Ação Educativa; Instituto Paulo Montenegro, 2011.

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Sobre as autoras
Fabiana de Moura Cabral Malta

Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Advogada, Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Ciências Jurídicas - CCJUR/CESMAC, Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito - EPD-SP. É membro da Comissão Mulher Advogada - OAB/AL. É professora de Direito Empresarial da Faculdade Maurício de Nassau e da Sociedade de Ensino Universitário do Nordeste - SEUNE. Professora do Curso de Pós-graduação - MBA em Gestão Estratégica de Pessoas, da Faculdade de Tecnologia de Alagoas - FAT.

Edna Cristina do Prado

Doutora; Universidade Federal de Alagoas; Maceió, Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MALTA, Fabiana Moura Cabral ; PRADO, Edna Cristina. Com leitura superficial não se faz “Direito”.: A incapacidade dos graduandos do curso de direito em ultrapassar as margens da leitura funcional e utilitarista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4621, 25 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35482. Acesso em: 22 dez. 2024.

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