1. Introdução
O legislador constituinte ofereceu proteção à igualdade entre todos os seres humanos ao definir que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, inciso XLI, CF). Esse trato igualitário entre todos, base das democracias modernas, proíbe a prática de discriminações e preconceitos decorrentes de raça, cor, origem étnica, preferência religiosa e procedência nacional, o que constitui odiosa e histórica afronta ao princípio isonômico.
Mais enfática é, nossa Constituição Federal, ao estabelecer em seu artigo 5o, XLII, que: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da Lei”.
Constata-se, contudo, que mesmo após mais de cem anos da abolição da escravatura encontramos preconceitos constrangedores de um indivíduo em relação a seu semelhante, resultado de um triste legado da colonização e do imperialismo opressor, dominador e explorador.
2. Legislações “Anti-discriminação”
2.1. Lei nº 1.390/1951 – Lei Afonso Arinos
Texto legal de importantíssima relevância na História brasileira, não muito por suas penas, mas pelo simples reconhecimento da existência do racismo no Brasil, tão frequente na realidade e não tendo sido reconhecido legalmente até então. Tomou, assim, rumo completamente diferente das Leis de condutas omissas que a antecederam.
Assim, com a promulgação da referida Lei, não havia mais como negar a existência do racismo. Todavia, tal diploma legislativo sofreu inúmeras críticas, vez que caracterizava as ações preconceituosas como meras contravenções penais, puníveis com 1 ano de prisão simples e com multas entre 15 dias a 3 meses, bem como suas condutas eram pouco abrangentes, o que gerava dificuldade na aplicação da Lei[1].
Outra crítica que merece ser tecida com relação à referida Lei diz respeito à penalização apenas das condutas preconceituosas geradas por preconceito de raça ou cor, ignorando aqueles advindos de etnia, religião, procedência nacional, classe social, sexo e estado civil. Estes dois últimos foram remediados pelo legislador com a Lei nº 7.437/1985, trazendo nova redação à Lei Afonso Arinos, aumentando a gama das possíveis vítimas ao prever também como infração penal o preconceito por sexo ou estado civil.
O preconceito por raça surge em patamar constitucional somente a partir da Carta da República de 1967.
A Lei Afonso Arinos foi derrogada pela Lei 7.716/1989, podendo ainda ser aplicada apenas contra preconceitos por sexo ou estado civil.
2.2. Lei nº 7.716/1989
Considerada um expressivo avanço jurídico e político, a denominada Lei Caó (por força do parlamentar Carlos Alberto Caó, autor do projeto de Lei na Câmara dos Deputados), ou ainda Lei “Antidiscriminação” ou Lei “Anti-preconceito”, veio para suprir as falhas que foram deixadas pela Lei Afonso Arinos.
Aparece a Lei Caó no cenário jurídico por força da Constituição de 1988, que conferiu suporte constitucional ao legislador ordinário. Promulgada em 5 de janeiro de 1989, a Lei Caó inovou ao caracterizar a prática de racismo como crime, em um cenário aonde este era considerado apenas uma contravenção penal, ensejando às pessoas que cometessem atos discriminatórios os benefícios da primariedade, do simples pagamento de multas etc., sem que, de fato, fossem condenadas e cumprissem pena em estabelecimentos carcerários. Ou seja, a prática do racismo vinha sendo estimulada de forma crescente, sem que o Estado, detentor de uma máquina policial-judiciária lenta e ineficiente viesse a punir os culpados.
Nesta linha, a antiga Lei Afonso Arinos representou à sua época seu papel, que guarda extrema importância na História, porém, imperiosa era a promulgação de uma nova Lei, que representasse fielmente a realidade.
Não obstante a frequente negação – talvez por conta de uma vergonha moral – de que o Brasil represente um país de discriminadores, resta claro que estes existem e agem sorrateiramente, nos balcões de lojas, hotéis, locais públicos, ou ainda em simples gracejos cotidianos. Por esse prisma, salta aos olhos a importância jurídica da Lei 7.716/89.
2.3. Alterações legislativas da Lei 7.716/1989
A Lei 7.716/89, à sua promulgação, não trouxe condutas típicas inovadoras, reproduzindo grande parte da Lei Afonso Arinos, Lei combatente ao racismo que estava vigendo à época.
Tal fato fez com que referida Lei fosse alvo de críticas, por parte dos movimentos de grupos discriminados, bem como pela doutrina especializada[2], isso porque a Lei 7.716/89, tão importante por elevar a prática de racismo de contravenção penal a crime, continuou a penalizar apenas as condutas preconceituosas por raça ou cor (exatamente como a legislação que a precedia), relegando ao esquecimento àquelas resultantes de preconceito por etnia, religião, procedência nacional, preferência sexual ou classe social.
Assim, fizeram-se necessárias alterações legislativas nesse sentido, e isto se deu através das Leis 8.081/90, 8.882/94 e 9.459/97, sendo que esta última representou a modificação mais importante.
Esta última Lei modificadora deu nova redação ao artigo 1o da Lei Caó, passando este a ter como conduta criminosa não apenas os atos praticados por discriminação ou preconceito por raça ou cor, mas também aqueles advindos de discriminação ou preconceito por etnia, religião ou procedência nacional.
Lamentável porém foi o legislador ordinário não ter tratado, nesta última alteração legislativa, dos atos discriminatórios por sexo, estado civil ou orientação sexual. Vale lembrar que estes dois primeiros permanecem como simples contravenções penais por conta da Lei nº 7.437/1985. Já com relação ao preconceito por orientação sexual, não há lei que trate do assunto, o que gera impunidade, uma vez que os homossexuais são frequentemente vítimas de discriminação e preconceito.
Outra importante alteração trazida pela Lei nº 9.459/97 foi a introdução do artigo 20 na Lei Anti-discriminação, qual seja:
“Art. 20 - Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos e multa. § 1º - Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. § 2º - Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. § 3º - No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas. § 4º - Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.”
Este artigo aumentou consideravelmente a possibilidade da adequação típica das condutas preconceituosas, pois, tratando-se de crime de execução livre, qualquer prática, induzimento ou incitação à discriminação ou preconceito por força de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional tipifica o crime.
Esta última alteração ainda modificou o art. 140 do Código Penal, acrescentando-lhe seu parágrafo 3o, prevendo a injúria qualificada pelos elementos de raça, cor, etnia, religião e origem, dando-lhe a mesma pena do crime do artigo 20, caput, da lei especial.
O §3o do artigo 140 do Código Penal, recebeu nova alteração pela Lei nº 10.741/2003, acrescentando-lhe ainda, além da injúria qualificada dita acima, também aquela por força de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Bem como, a partir da Lei 12.033/09, passou a ser perseguido mediante ação penal pública mediante representação do ofendido (art. 145, parágrafo único, do Código Penal).
Christiano Jorge Santos comenta ainda que não obstante as três alterações providenciadas na Lei 7.716/89, não cuidou o legislador de alterar-lhe o texto do epígrafe, constando ainda que os crimes são os resultantes apenas de raça e cor.
2.4. Artigo 140, § 3o, do Código Penal
O artigo 140, § 3o do Código Penal trazido pela Lei nº 9.459/97, diz respeito à injúria preconceituosa, sendo esta, modalidade de injúria qualificada. Esta Lei acrescentou um tipo qualificado ao delito de injúria, impondo pena de reclusão, de 1 a 3 anos e multa. Tal dispositivo, que na prática, muito se assemelha ao crime de racismo disposto em Lei especial, visa à proteção da honra subjetiva da vítima, é dizer, sua dignidade ou decoro. “Na sua essência, é a injúria uma manifestação de desrespeito e desprezo, um juízo de valor depreciativo capaz de ofender a honra da vítima no seu aspecto subjetivo.”[3]
Deste modo, o valor que o agente atinge é imaterial, interior, superior à própria dor ou sofrimento físico que o agente possa sentir, é o seu valor espiritual, a própria alma, é aquilo que interiormente o motiva a continuar a aventura humana na Terra: a sua honra pessoal. O corpo, a saúde, a integridade ou incolumidade são atingidos reflexamente.[4]
Referida alteração legislativa surgiu pelo fato de que os réus acusados da prática de crime de racismo descrito na Lei Especial frequentemente alegavam ter praticado somente delito de injúria, ou seja, de menor gravidade, sendo assim, beneficiados pela desclassificação.
Diante de tal problema, o legislador trouxe a forma típica qualificada envolvendo elementos de raça, cor, etnia, religião, origem e, mais tarde, por força da Lei nº 10.741/2003, também por condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, agravando a pena.
Todavia, cumpre tecer um importante comentário. Na ânsia de punição, andou mal o legislador, pois agravou desproporcionalmente a pena, desrespeitando oprincípio da proporcionalidade, assim, igualou-se o crime de injúria preconceituosa ao crime de auto-aborto, aborto consentido, lesão corporal grave entre outros, tendo ainda, por incrível que pareça, pena maior que a da conferida ao homicídio culposo, pois, este tem punição de 1 a 3 anos de detenção, enquanto aquele tem punição de 1 a 3 anos de reclusão.
2.5. Artigo 96, Lei 10.741/2003 - Estatuto do Idoso
Consoante o artigo 96 da Lei 10.741/2003 - Estatuto do Idoso, “Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade: Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa. § 1o Na mesma pena incorre quem desdenhar, humilhar, menosprezar ou discriminar pessoa idosa, por qualquer motivo. § 2o A pena será aumentada de 1/3 (um terço) se a vítima se encontrar sob os cuidados ou responsabilidade do agente.”
Referido dispositivo cuida da discriminação contra a pessoa idosa. Seu caput trata de discriminação específica contra a pessoa idosa por motivo de idade, enquanto seu parágrafo 1o cuida da discriminação contra pessoa idosa por qualquer motivo.
Cumpre tecer comentários sobre este parágrafo. O legislador, objetivando a ampla proteção ao idoso, previu uma norma penal muito aberta, não especificando uma conduta típica, ferindo-se o princípio da legalidade.
Outra crítica que merece ser lançada diz respeito à pena cominada à discriminação contra pessoa idosa por qualquer motivo. Mais uma vez andou mal o legislador, pois no caso de discriminação por motivo de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional contra pessoa idosa, estar-se-ia caracterizado o crime incurso no art. 96, §1o do Estatuto do Idoso, sendo esta pena menor do que se fosse incurso nos crimes de preconceito previstos na Lei Caó. Ou seja, o Estatuto do Idoso, que objetiva trazer normas protetivas a pessoas nessa condição, acabou por abrandar a situação do agente que pratica discriminação por raça, cor etc. contra pessoa idosa.
3. Conclusão
Nos nossos dias, onde atos, fatos e práticas racistas se desencadeiam sutilmente, acobertadas por gracejos e negadas pelo senso comum, desvelar o racismo subjacente às práticas havidas exige prudente trabalho, contrariando o cinismo, hipocrisia, ignorância ou má-fé daqueles que juram que no Brasil predomina a “democracia racial” e que tais condutas são normais, corriqueiras, inocentes etc.
Neste diapasão, cabe ao Direito Penal buscar sancionar as condutas socialmente patológicas, como a prática do racismo, que se manifesta odiosamente das mais diversas maneiras, mascarado pelas alienadas e descomprometidas elites dominantes, exteriorizando o que a sociedade tem inserida em seu inconsciente coletivo: o espírito segregacional, tão trágico e ensejador de inúmeros conflitos.
Na nossa atual evolução, temos que toda e qualquer conduta criminosa motivada por discriminação ou preconceito racial, étnico, religioso entre outros, ofende a própria essência do ser humano, impede o progresso do ser humano, da civilização.
Caminhou gloriosamente nossa atual Constituição Federal, não admitindo que o homem do século XXI faça vistas grossas a acontecimentos horríveis que tantos maus já causaram e tanta discórdia já trouxeram.
Importante contribuição têm a dar os pensadores do Direito, para contribuir com seu raciocínio, na aplicação das leis, e em suas críticas construtivas; os legisladores, no sentido de aperfeiçoas as leis anti-discriminação; e os detentores das redes de comunicação, como rádio, televisão etc., para que a informação, arma tão preciosa contra o racismo, chegue às camadas mais desfavorecidas da sociedade, dando publicidade às leis, contribuindo com o caráter preventivo do Direito Penal.
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Notas
[1] Christiano Jorge SANTOS. Crimes de Preconceito e de Discriminação, p. 59.
[2] Eunice Aparecida de Jesus Prudente. Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil, passim.
[3] Julio Fabbrini MIRABETE. Manual de Direito Penal II – Parte especial, p. 165.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado, p. 545.