A "Cabeleira do Zezé" no banco dos réus

17/01/2015 às 21:28
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Crônica de um conflito que comprova as diferenças entre a civilização brasileira e a barbárie francesa.

Em breve o Brasil mergulhará no seu Carnaval, período em que até os mais desterritorializados brasileiros esquecem  Rock and Roll , Gospel e Funk para cair no samba. As marchinhas carnavalescas, algumas delas muito antigas, voltam a ser tocadas e cantadas para a felicidade geral de uma nação que esquece sua brasilidade boa parte do tempo.

Dentre as marchinhas conhecidas de cor pelos brasileiros, uma em especial pode acabar se tornando objeto de reverência especial no Carnaval de 2015. Refiro-me a Cabeleira do Zezé, de Jorge Goulart, composta em 1964: https://www.youtube.com/watch?v=YpPFBjaAzF4 .

A letra, singela e bem humorada, coloca em xeque a masculinidade do Zezé por causa do comprimento do cabelo dele. Em certo momento, as preferências sexuais do personagem são relacionadas à Bossa Nova (estilo musical nascido nos anos1950). Em outro, a letra da música rima Zezé com Maomé. Esta rima é aleatória, não havendo qualquer referência à religião do personagem.

O caráter machista e repressivo da cultura brasileira da época em que a música foi composta pode ser percebido na sugestão repetidamente feita àqueles que se sentiram ofendidos:

“Corta o cabelo dele!

Corta o cabelo dele!

Corta o cabelo dele!

Corta o cabelo dele!”

Nos salões onde é tocada, a letra é tradicionalmente complementada pelos foliões. Quando o texto pergunta "Será que ele é? Será que ele é?" o povo responde BICHA. 

Apesar de poder ser considerada “anti-gay”, Cabeleira do Zezé  não foi listada pelo movimento gay entre os produtos culturais machistas que devem ser aniquilados em nome da derrota do sexismo. Os músicos que se filiaram à Bossa Nova, cuja sexualidade também foi objeto de troça, nunca cogitaram proibir a música. O mesmo não se pode dizer de um fervoroso adepto do islamismo, que considerou ofensiva a referência a Maomé e tenta proibir a reprodução da música de Jorge Goulart http://www.conjur.com.br/2015-jan-15/fiel-isla-entra-acao-marchinha-carnaval-antiga .

A pretensão do autor da ação mencionada na matéria do Conjur pode ser criticada, ridicularizada e até considerada intolerante. Todavia, há civilidade na sua conduta. Marcelo Abbas Musauer  usou o direito de ação lhe garantido pela CF/88 para invocar a proteção do judiciário. Se os terroristas que atacaram a Charlie Hebdo tivessem feito o mesmo a direita francesa não teria tido a oportunidade de fortalecer seu discurso islamofóbico.

Qualquer que seja a decisão do Judiciário sobre Cabeleira do Zezé  o resultado será uma prova da tolerância brasileira, que de uma maneira ou de outra está presente no íntimo do autor da ação. Ao contrário do que ocorre na França, aqui os litígios são resolvidos com argumentos jurídicos e não com bombas e tiros de fuzil. 

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

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