CAPÍTULO IV:OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONTABILIDADE
4.1 A RELEVÂNCIA DA ESSÊNCIA ECONÔMICA – VERDADE MATERIAL
O estudo elaborado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (IPECAFI), emitido em 1986, ao descrever o objetivo principal da contabilidade, cita como um dos fatores de relevante importância para a consecução deste a essência econômica:
A Contabilidade possui um grande relacionamento com os aspectos jurídicos que cercam o patrimônio, mas, não raro, a forma jurídica pode deixar de retratar a essência econômica. Nessas situações, deve a Contabilidade guiar-se pelos seus objetivos de bem informar, seguindo, se for necessário para tanto, a essência ao invés da forma.
(...)
Assim, consciente do conflito essência/forma, a Contabilidade fica com a primeira (Iudícibus et al., 2000, p.44)
A Resolução do CFC nº 774, que aprovou o Apêndice à Resolução sobre os Princípios Fundamentais de Contabilidade, quando comenta acerca dos objetivos da Contabilidade, no item 1.4, diz:
...na realização do objetivo central da Contabilidade, defrontamos-nos, muitas vezes, com situações nas quais os aspectos jurídicos-formais das transações ainda não estão completa ou suficientemente dilucidados. Nesses casos, deve-se considerar o efeito mais provável das mutações sobre o patrimônio, quantitativa e qualitativamente, concedendo-se prevalência à substância das transações.
Ainda na mesma Resolução, no item 2.6.3, encontram-se alguns comentários sobre as receitas e seu reconhecimento, em especial que:
Normalmente, a transação é formalizada mediante a emissão de nota fiscal ou documento equivalente, em que consta a quantificação e a formalização do valor de venda, pressupostamente o valor de mercado da coisa ou do serviço.
Os Princípios Fundamentais da Contabilidade, aprovados pela Resolução do CFC nº 750, também corroboram este aspecto, quando no § 2º do art. 1º diz que na aplicação dos Princípios Fundamentais de Contabilidade a situações concretas, a essência das transações deve prevalecer sobre seus aspectos formais
A simples transcrição de alguns dos artigos da Resolução do CFC nº 750 contendo os citados Princípios já é suficiente para esgotar o assunto:
Art. 6º - O Princípio da OPORTUNIDADE refere-se, simultaneamente, à tempestividade e à integridade do registro do patrimônio e das suas mutações, determinando que este seja feito de imediato e com a extensão correta, independentemente das causas que as originaram.
Parágrafo Único. Como resultado da observância do Princípio da OPORTUNIDADE:
(...)
II – o registro compreende os elementos quantitativos e qualitativos, contemplando os aspectos físicos e monetários;
III – o registro deve ensejar o reconhecimento universal das variações ocorridas no patrimônio da ENTIDADE, em um período de tempo determinado, base necessária para gerar informações úteis ao processo decisório da gestão.
(...)
Art. 7º - Os componentes do patrimônio devem ser registrados pelos valores originais das transações com o mundo exterior, expressos a valor presente na moeda do País, que serão mantidos na avaliação das variações patrimoniais posteriores, inclusive quando configurarem agregações ou decomposições no interior da ENTIDADE.
Parágrafo Único. Do Princípio do REGISTRO PELO VALOR ORIGINAL resulta :
I – a avaliação dos componentes patrimoniais deve ser feita com base nos valores de entrada, considerando-se como tais os resultantes do consenso com os agentes externos;
(...)
Art. 9º - As receitas e despesas devem ser incluídas na apuração do resultado do período em que ocorrerem, sempre simultaneamente quando se correlacionarem, independentemente de recebimento ou pagamento.
(...)
§ 4º. Consideram-se incorridas as despesas :
(...)
II – pela diminuição ou extinção do valor econômico de um ativo;
É ainda a Resolução do CFC nº 774 que explica os Princípios acima citados:
O Princípio da Oportunidade exige a apreensão, o registro e o relato de todas as variações sofridas pelo patrimônio da entidade, no momento em que elas ocorrerem. Cumprindo tal preceito, chega-se ao acervo máximo de dados primários sobre o patrimônio, fonte de todos os relatos, demonstrações e análises posteriores, ou seja, o Princípio da Oportunidade é a base indispensável à fidedignidade das informações sobre o patrimônio da Entidade...
Tal princípio deverá ser observado sempre que haja uma variação patrimonial, independentemente da forma ou da documentação que acoberte a operação. O Princípio da Oportunidade diz respeito à dois aspectos:
- integridade – que diz respeito à necessidade de as variações serem reconhecidas na sua totalidade, isto é, sem falta ou excesso. As variações incluem elementos quantitativos, qualitativos e monetários;
- tempestividade – obriga a que as variações sejam registradas no momento em que ocorrerem, mesmo na hipótese de alguma incerteza...Sem o registro no momento da ocorrência, ficarão incompletos os registros sobre o patrimônio até aquele momento, e, em decorrência, insuficientes quaisquer demonstrações ou relatos, e falseadas as conclusões, diagnósticos e prognósticos.
Neste mesmo sentido, o Princípio do Registro pelo Valor Original exige que os componentes do patrimônio tenham seu registro efetuado fundamentado nos valores efetivamente ocorridos na data das transações havidas com o exterior da entidade. Ao adotar a idéia de que a avaliação deve ser realizada com fundamento no valor de entrada, o Princípio consagra o uso dos valores monetários decorrentes do consenso entre os agentes econômicos externos e a Entidade... Pressupõe-se que o valor de troca, aquele decorrente da transação, configure o valor econômico dos ativos no momento da sua ocorrência.
CAPÍTULO V: CORRELAÇÃO LÓGICA ENTRE AQUISIÇÕES DE MATÉRIAS-PRIMAS SUBFATURADAS E OMISSÃO DE RECEITAS
5.1 A OMISSÃO DE RECEITAS COMO FATO CONTÁBIL JURIDICIZADO
A existência de receitas marginais é fato que diz respeito à contabilidade da empresa. Como visto anteriormente, a escrituração mercantil deverá ser tal que represente fielmente qualquer variação patrimonial ocorrida. Neste sentido, todos os elementos relevantes para o registro das operações mercantis deverão ser escriturados de forma tempestiva e ampla, abarcando todos os aspectos quantitativos, qualitativos e monetários.
Neste sentido, as Normas Brasileiras de Contabilidade que dispõem acerca da escrituração contábil são explícitas ao tratar da documentação contábil necessária à comprovação dos atos e fatos praticados pela entidade. Assim, as normas NBC T 2 – DA ESCRITURAÇÃO CONTÁBIL, NBC T 2.1 – DAS FORMALIDADES DA ESCRITURAÇÃO e a NBC T 2.2 – DA DOCUMENTAÇÃO CONTÁBIL, cuidam de disciplinar a documentação hábil para comprovar os atos e fatos lançados nos livros mercantis.
Na ausência de documentos que comprovem a movimentação mercantil, e consequentemente a variação patrimonial dela decorrente, depara-se com situações que comumente denotam a omissão de receitas ou, dito de outra forma, a existência de receitas mantidas à margem da escrituração mercantil.
Tal fato, qual seja, a existência de receitas marginais, é meramente contábil, com repercussões no patrimônio da entidade. Entretanto, há que descobrir-se todas as suas conseqüências. Assim, algumas normas jurídicas se interessam por tais fatos, produzindo em decorrência um efeito jurídico qualquer. Logo, um fato que é meramente contábil passa a configurar um fato jurídico na medida em que tal acontecimento é juridicamente relevante.
Diversas são as normas em nosso ordenamento que consideram a existência de receitas marginais fato jurídico relevante. Neste caso, não há que se criar tantas omissões de receitas quantas sejam as normas jurídicas interessadas. Há apenas um fato contábil e diversas conseqüências jurídicas relevantes, abordadas por normas distintas. Logo, o omissão de receitas que desperta o interesse da norma jurídica que dispõe acerca do ICMS não é diferente daquela que desperta o interesse da que dispõe acerca do IPI, por exemplo. É claro que estas são distintas, assim como suas conseqüências também. Mas, o fato contábil é o mesmo. Caso contrário a contabilidade teria que se desdobrar em criar diversas espécies de receitas marginais para atender a cada uma das normas jurídicas que as tornam relevante.
Não é outro o entendimento da Receita Federal ao acatar a prova emprestada quando da ocorrência da omissão de receita, conforme ementa transcrita :
OMISSÃO DE RECEITA – PROVA EMPRESTADA – É legítimo que o Fisco Federal utilize da prova emprestada colhida na área estadual, no que pertine aos fatos que tenham relevância também para o imposto de renda, como é o caso de omissão de receitas.
Relator: Vilson Biadola
Câmara: TERCEIRA CÂMARA
Processo: 10840.001177/92-31 ~ Data da sessão: 08/07/98 ~ Tipo de recurso: VOLUNTÁRIO ~ Recurso parcilamente provido.
ACÓRDÃO Nº 103-18701. [Grifo nosso].
É verdade que os diversos fiscos não poderão se utilizar apenas da prova emprestada, sem qualquer outra prova do fato gerador do tributo, para proceder à atuação. Mas, a prova emprestada denota que o fato gerador de tributos distintos teve como fundamento um único fato contábil, qual seja, a omissão de receitas, que duas normas jurídicas distintas tornaram relevantes.
5.2 DA UNIDADE DA INFRAÇÃO TRIBUTÁRIA – IMPOSSIBILIDADE LÓGICA DE FRACIONAMENTO
É pacífica a tese de que a fatura e a nota fiscal não são títulos representativos da mercadoria, e nem poderia ser diferente, já que ambas nada mais são do que um rol, uma simples relação das mercadorias, bens, produtos ou serviços vendidos. Tanto é verdade que na prática poderá haver uma operação mercantil sem a emissão de qualquer documento que o acoberte.
Criou-se uma dicotomia entre a operação mercantil desacompanhada de qualquer documento e aquela que possui documento que acoberte apenas fração da mesma. O senso comum convencionou chamar a primeira de "operação desacompanhada de documento", e a segunda de "subfaturamento".
Ocorrendo a primeira situação, presume-se que há manutenção de receitas mantidas à margem da escrituração; entretanto, ocorrendo a segunda situação, alguns entendem que não poderá haver a mesma presunção legal.
Ora, tal entendimento quebra a unidade jurídica – contábil da relação mercantil. Assim, a verdade formal irá prevalecer em detrimento da verdade material. O que importa, para os que aceitam essa dicotomia, é a existência de um documento que acoberte a operação mercantil. Havendo este, qualquer diferença por ventura existente entre as verdades formal e material não implicará a existência de receitas marginais. Não é outro o entendimento do Conselho de Recursos Fiscais do Estado da Paraíba quando proferiu os seguintes Acórdãos :
RECEITAS MARGINAIS - A verificação de notas fiscais de aquisição não registradas, permite a conclusão de que são relativas a aquisições com recursos decorrentes de operações tributáveis postas à margem da escrituração, posto que sem emissão de documentos fiscais correspondentes.
Relator: ROBERTO FARIAS DE ARAÚJO
Processo: CRF – 478/99 ~ Data da sessão: 11/08/92 ~ Tipo de recurso: voluntário ~ Recurso ordinário desprovido por unanimidade
ACÓRDÃO Nº 5.389/99. [Grifo nosso].
SUBFATURAMENTO - Comprovado documentalmente que a nota fiscal não consigna o real valor da operação, subfaturamento, cabe o lançamento de ofício. Inconsubstanciada a acusação de saídas sem emissão de documentos.
Relatora: GIANNI CUNHA DA SILVEIRA CAVALCANTE
Processo: CRF – 044/99 ~ Data da sessão: 24/03/99 ~ Tipo de recurso: HIERÁRQUICO ~ Recurso de ofício desprovido por unanimidade
ACÓRDÃO Nº 4.967/99. [Grifo nosso].
Na prática fiscal ocorre nova divisão de unidade, desta vez da próprio ilícito tributário. Assim, permitem-se proceder a uma divisão da imputação tributária para aqueles que cometem uma mesma infração: aquele que vende mercadorias, bens, produtos ou serviços subfaturados, desde de que provada, ser-lhe-á imputado a infração de manter receitas à margem da tributação; porém, ao adquirente, uma outra infração qualquer. Tal entendimento é antes de tudo confuso, posto que comprovado o subfaturamento em operação mercantil de saída, presumida está a existência de receitas mantidas à margem da tributação. Porém, o subfaturamento em operação mercantil de entrada não é contemplada com a presunção da existência de receitas marginais.
Assim, em uma operação mercantil qualquer, obrigatoriamente, haverá a existência de uma operação de saída e outra de entrada. O subfaturamento só existe porque uma empresa vende mercadorias, bens, produtos ou serviços com preço abaixo do valor real da operação, e outra empresa adquire estes itens nas mesmas condições que saíram do primeiro estabelecimento. Logo, ambas praticaram a mesma infração tributária. Mas, como que em um passe de mágica, fraciona-se esta operação para imputar a obtenção de receitas marginais a apenas à empresa que promove a saídas subfaturadas.
Contudo, se a empresa que promoveu saídas subfaturadas obteve receitas marginais, é porque ela, a empresa, adquirente, pagou com receitas também marginais. Contabilmente não há como efetuar uma operação mercantil, onde o montante recebido pela empresa que promoveu as saídas subfaturadas seja proveniente de receitas marginais e o montante pago pela empresa adquirente seja proveniente de receitas devidamente escrituradas. Logo, a empresa que pagou por mercadorias, bens, produtos ou serviços subfaturados o fez com receitas marginais.
5.3 DAS REPERCUSSÕES DA FRAGMENTAÇÃO DA PRESUNÇÃO LEGAL DE OMISSÃO DE RECEITAS DECORRENTES DE AQUISIÇÕES SUBFATURADAS (DIREITO AO CRÉDITO DOS TRIBUTOS NÃO – CUMULATIVOS)
O acatamento do argumento da não correlação lógica entre entradas subfaturadas e omissão de receitas provocará um vácuo nas repercussões da infração cometida. Se comprovado cabalmente o subfaturamento das entradas de matérias-primas há de se reconhecer, no mínimo, o direito da Fazenda de constituir créditos tributários relativos a diferença verificada entre os valores reais da operação e os valores declarados em documentos fiscais.
Neste caso, haverá de ser reconhecido o direito de utilização como crédito fiscal dos tributos não cumulativos incidentes sobre o montante referente a diferença entre o valor real das aquisições de matéria-prima e o declarado em documento. O Estado ao cobrar o tributo incidente apenas sobre a diferença haverá de, obrigatoriamente, autorizar sua utilização como crédito fiscal, posto que entradas antes não registradas foram oficializadas pela Fazenda Pública. Logo, financeiramente, não haverá qualquer repercussão para a empresa caso venha a ser autuada pela diferença não registrada, posto que apenas antecipará um montante que imediatamente depois servirá de crédito fiscal para abatimento de seus débitos fiscais.
A empresa mesmo autuada irá gozar dos mesmos "benefícios" que o subfaturamento nas aquisições traz : o momento posterior estaria livre para operações também fraudulentas, uma vez que nenhuma repercussão seria sentida no seu custo ou no seu fluxo financeiro.
Desta forma, é inócua qualquer ação fiscal fundamentada unicamente na diferença verificada nas entradas subfaturadas, criando uma modalidade de evasão fiscal com a conivência estatal: subfaturando suas entradas, qualquer empresa que porventura venha a ser autuada, desde que recolha o montante levantado, irá ter direito ao crédito do montante pago. Porém, em nada serão perturbados seus custos, bem como seu fluxo financeiro, dando cabimento a cometimento de fraudes fiscais nas saídas tributadas, ficando o Estado sem qualquer ação diante de tais operações, uma vez que os aspectos posteriores não poderão ser atingidos.
A regularização das aquisições subfaturadas de matéria-prima, através da cobrança do tributo sobre a diferença, dará direito ao contribuinte de utilização como crédito dos tributos não cumulativos pago sobre a diferença. Para o Estado haverá apenas uma antecipação de receita, que posteriormente será revertida em crédito para o contribuinte, deixando de haver qualquer repercussão financeira para o contribuinte, pois será devedor de um tributo e ao mesmo tempo detentor do direito de crédito, no mesmo valor do tributo pago.
Ficará a Fazenda Pública em um círculo vicioso. Haverá a imputação de determinado montante de tributo, mas em contrapartida haverá a concessão do crédito. Assim, a simples cobrança do imposto sobre a diferença monetária das entradas subfaturadas ocasionará um caso esdrúxulo : ao mesmo tempo em que o Estado impõe o pagamento do tributo, reconhece o direito de crédito deste mesmo tributo.
Há a necessidade de não apenas apurar o tributo devido pelas aquisições de mercadorias, bens, produtos e serviços subfaturados, mas verificar quais as reais repercussões tributárias posteriores. Assim, as entradas subfaturadas atingem em cheio o custo dos produtos vendidos, bem como o fluxo financeiro. Aqui chegamos ao cerne da questão.
Como dito acima, as entradas subfaturadas quando atingidas pela tributação, tendo como base de cálculo a diferença entre o valor real da operação e o montante registrado, não repercutem em nada na realidade da empresa, e portanto são ineficazes. Então, obrigatoriamente, as conseqüências da infração fiscal se voltarão para as etapas posteriores. Só através da visão futura das repercussões da infração poderá chegar-se às suas reais medidas tributárias.