5. Do princípio da separação dos poderes
A Constituição Federal, com vistas a evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, repartindo entre eles as funções estatais: legislação, administração e jurisdição (CF, art. 2º).
O poder estatal, uno, indivisível e indelegável, compõe-se de várias funções, cujo exercício é incumbido a diferentes órgãos do Estado. O princípio da separação dos poderes (de órgãos e de funções), princípio estrutural da organização do poder político, no sentido horizontal, refere-se à diferenciação funcional (legislação, execução, jurisdição), à delimitação institucional de competências e às relações de controle e interdependência recíproca entre os vários órgãos de soberania.
A divisão de tarefas estatais entre distintos órgãos autônomos, com previsão de garantias e imunidades a cada Poder, bem como mecanismos de controles recíprocos de “freios e contrapesos”, configura-se um princípio estrutural conformador do domínio político (CANOTILHO, 1998, p.449) e garante o Estado Constitucional Democrático de Direito.
Impõe-se questionar se as decisões do Judiciário que suprimem do ordenamento, por reconhecer a sua inconstitucionalidade, a norma que limita o valor das despesas educacionais a ser deduzido da base de cálculo do Imposto de Renda configuram ofensa ao princípio da separação dos poderes, por atuar o julgador como legislador positivo, estabelecendo a redução ou a isenção de tributos.
A resposta que se impõe é positiva.
A questão encerra uma situação de colisão entre normas constitucionais, quais sejam, a norma que exige lei para a concessão de benefício fiscal (CF, art. 150, §6º), sendo a função legislativa atribuída exclusivamente ao Poder Legislativo conforme o princípio da separação de poderes (CF, art. 2º e 48, I) e a norma que prevê o direito social fundamental à educação (CF, art. 6º, 23, V e 205).
Pode-se dizer que a educação inclui-se no rol dos direitos sociais, de segunda geração, que sob uma dimensão subjetiva, são autênticos direitos subjetivos inerentes ao espaço existencial do cidadão. Por outro lado, sob uma dimensão objetiva, as normas constitucionais que os consagram impõem a obrigatoriedade de o legislador atuar positivamente, criando as condições materiais e institucionais para o exercício desses direitos, bem como exige o fornecimento pelo Estado de prestações aos cidadãos, densificadoras da dimensão subjetiva essencial destes direitos e executoras do cumprimento das imposições institucionais, como bem salienta Canotilho (1998, p.434).
De fato, existe o problema da efetivação do direito originário à educação, sendo certo que há uma verdadeira imposição constitucional, legitimadora de transformações econômicas e sociais na medida em que estas forem necessárias para a perfectibilização desse direito. Assim, a interpretação da norma legal, diante da norma constitucional consagradora do direito social à educação, deve ser conforme a efetiva realização deste direito.
Inegável que a possibilidade de dedução das despesas educacionais conferida pela lei, mesmo que limitada, já se trata de um instrumento de política educacional. Mas, ainda que aquém dos anseios sociais, tal fato, por si só, não enseja a intervenção do Poder Judiciário, pois não se pode perder de vista a impossibilidade de atuação do Poder Judiciário como legislador positivo para estabelecer isenções, reduções de tributos e deduções de despesas da base de cálculo do Imposto de Renda, uma vez que tais hipóteses são matéria privativa do Poder Legislativo[1].
Em atenção ao princípio da legalidade tributária, não é viável a criação, o aumento, a diminuição ou a extinção de tributo sem que exista lei para tanto. Destarte, é vedado ao Poder Judiciário substituir-se ao Poder Legislativo, a fim de deferir pleitos dessa espécie, sob pena de ferir não somente o princípio da legalidade tributária, mas também o princípio da separação de poderes e as regras constitucionais de competência tributária.
Eventual decisão judicial que suprima o limite de dedução de despesas educacionais incorre em ativismo judicial, no sentido aventado por Elival Ramos (2010, p.308) como o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento ao Poder Judiciário, ultrapassando os limites de sua atribuição em detrimento da função legislativa, “com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Poderes”.
6. Conclusão
A questão do reconhecimento pelo Poder Judiciário, em ações movidas pelos contribuintes, do direito de deduzir a totalidade das despesas educacionais da base de cálculo do Imposto de Renda, enseja um questionamento acerca da constitucionalidade da norma limitadora e outro questionamento acerca da possibilidade de o Poder Judiciário reconhecê-lo sem ofensa ao princípio constitucional da separação das funções.
Sob o prisma da análise da constitucionalidade da norma que impõe limite quantitativo à dedução das despesas educacionais da base de cálculo do Imposto de Renda (art. 8, II, “b”, da lei 9250/90), por três vertentes chegou-se à inconstitucionalidade da norma.
A primeira consiste na ofensa ao conceito constitucional de renda (CF, 153, II), na medida em que as despesas com instrução do contribuinte e de seus dependentes configura perda de disponibilidade econômica e jurídica, de forma que a norma limitativa subverteu o conceito de renda.
A segunda determina o afastamento da norma diante da ofensa ao princípio da capacidade contributiva (CF, art. 145, §1º) e ao princípio da isonomia (CF, arts. 5º, caput, e 150, II). A técnica da dedução das despesas para a aferição da base de cálculo do Imposto de Renda consiste em fórmula que respeita a possibilidade econômica de pagar tributos sob o aspecto subjetivo. Os contribuintes que gastam com educação, aquém e além do teto, pelo mesmo fundamento constitucional – concretização do direito à educação - merecem deduzir o valor integral gasto com referidas despesas, não havendo situação que justifique a diferenciação de tratamento jurídico.
A terceira resulta da análise do direito social fundamental à educação (CF, art. 6º e 205), configurando a dedução integral de despesas educacionais da base de cálculo do Imposto de Renda efetiva medida concretizadora do objetivo primordial da educação.
Entretanto, há que se ter em vista o princípio da separação dos poderes (de órgãos e de funções), princípio estrutural da organização do poder político, no sentido horizontal, referindo-se à diferenciação funcional (legislação, execução, jurisdição), à delimitação institucional de competências e às relações de controle e interdependência recíproca entre os vários órgãos de soberania.
Eventual decisão do Poder Judiciário que afaste a norma em comento ofende o princípio da separação dos poderes (CF, art. 2º), por se tratar de ilegítima intervenção judicial, na medida em que o Poder Judiciário não possui função legislativa para editar lei que estabeleça isenções, reduções de tributos e deduções da base de cálculo do Imposto de Renda.
Destarte, conclui-se não cabe ao Poder Judiciário em “ativismo judicial” reconhecer o direito à dedução integral das despesas com instrução do contribuinte e de seus dependentes, sob pena de atuação como legislador positivo, em ofensa ao princípio da separação de poderes.
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Nota
[1] v. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 724817, j. 07/02/2012, publ. DJ-e-050 em 09/03/2012; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 603060, j. 08/02/2011, publ. DJ-e -042 em 03/03/2011; Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 452930, j. 17/06/2008, publ. DJe-142 em 01/08/2008.