AS PROVAS NO PROCESSO PENAL
Uma parte considerável da doutrina afirma que as provas seriam uma forma de atingir a verdade no processo penal. Mas seria tal verdade alcançável? Seria essa a finalidade maior da produção das provas?
A verdade existe e diz respeito aos fatos, mas é inatingível pelo processo. As provas possuem tão somente o poder de conduzir o magistrado para uma versão mais próxima dos fatos, fazendo com que ele possa decidir de acordo com o direito.
A Verdade, em geral, é a conformidade da noção ideológica com a realidade; a crença na percepção desta conformidade é a certeza. Ela é, portanto, um estado subjetivo da alma, podendo não corresponder à verdade objetiva. Certeza e verdade nem sempre coincidem: por vezes, tem-se certeza do que objetivamente é falso; por vezes, duvida-se do que objetivamente é verdadeiro. E a mesma verdade que aparece certa a uns, a outros parece duvidosa, e, por vezes, até mesmo falsa a outros. (1)
Natalie Ribeiro Pletsch aduz que “não há por que manter o julgador atrelado à busca da verdade, como faz o Código de Processo Penal brasileiro na sua exposição de motivos”. (2)
Também afirma que “a decisão judicial é apenas uma narrativa, dentre várias possíveis”. (3) E, por esse motivo, “não há como se justificar que as garantias processuais continuem sendo preteridas ao ideal de verdade”. (4) Ou seja, o processo e a sentença devem possuir como base a observância das garantias e dos princípios processuais, e não o utópico alcance da verdade.
Gustavo Noronha de Ávila aduz que provar é uma tentativa de aproximação das verdades, e não da verdade, pois a verdade, no singular, será sempre incompleta, necessariamente contingente e dependente de referenciais (tempo, espaço e lugar). (5)
Salah Khaled Jr. também entende que o objetivo do processo penal não é a obtenção da verdade, mas a correta aplicação dos princípios constitucionais e processuais penais, em especial do devido processo legal:
Não é somente a exigência de contenção do poder punitivo que impõe o abandono de uma concepção de processo orientada pela busca da verdade, mas que é a própria impossibilidade de ser atingida uma verdade correspondente – mesmo relativa ou aproximada – o maior argumento para que as regras do jogo tenham primazia sobre qualquer ambição de verdade, pois no final restará apenas representância. Com isso, estamos sustentando que a verdade será na melhor das hipóteses contingencial e que a sentença condenatória somente pode ser legitimada caso as regras do devido processo legal sejam estritamente respeitadas, o que permite maximizar as possibilidades de redução de danos decorrentes de condenações equivocadas. (6)
O magistrado deve realizar a análise das provas lícitas trazidas ao processo, convencendo-se, pelos elementos apresentados por uma ou outra parte, para que possa compreender melhor os fatos e julgar o processo de acordo com as regras processuais.
São as provas que irão demonstrar parcialmente os fatos diante do juiz de forma a convencê-lo pelo caminho da condenação, ou pelo caminho da absolvição, de acordo com o Direito.
Khaled Jr. entende que as provas não devem ser vistas como demonstrativas da verdade nem de mera fixação formal dos fatos ou retórica argumentativa, mas concebida como atividade demonstrativa que introduz evidências, objetivando o convencimento do juiz. (7)
No processo penal, cada parte apresenta os elementos que conduzam o julgador no sentido da sua versão dos fatos, fazendo com que a decisão ocorra de acordo com o contexto das provas apresentadas pelos envolvidos na ação, com base nos fatos ocorridos no passado.
Devemos, portanto, deixar de entender o direito processual penal e as suas formas de produção de provas como ferramentas de obtenção da verdade, restando como base a observação dos princípios que lhe são inerentes.
Carnelutti, na obra Misérias do Processo Penal, afirma que “também ele, o juiz, é um homem e, se é um homem, é também uma parte. Esta, de ser ao mesmo tempo parte e não parte, é a contradição na qual o conceito do juiz se agita”. (8)
É evidente que os argumentos formulados pelas partes devem ser levados em consideração no momento da decisão, fundamentando-se as pretensões de validade, mas não se pode negar que o julgador esteja informado por fatores externos, condicionantes ideológicos, criminológicos, midiáticos, inconscientes, enfim, subjetivos que sempre são coprodutores da decisão, mesmo que obliterados retoricamente. (9)
OS MEIOS DE PROVA UTILIZADOS NO PROCESSO PENAL
As provas podem ser classificadas de variadas formas, entretanto a divisão clássica compreende três tipos básicos: documental, pericial e testemunhal.
O primeiro tipo, documental, possui uma grande força de convencimento e registra materialmente algum fato. Este meio de prova está previsto no Art. 232 do Código de Processo Penal Brasileiro. (10)
Para Malatesta (11), o documento é a afirmação pessoal consciente, escrita e irreprodutível oralmente, destinada a fazer fé sobre os fatos afirmados. Já Nicolitt conceitua a prova documental de uma forma mais ampla. Para ele, trata-se de “qualquer coisa que possa representar um fato”. (12) Além disso, afirma que “muitos associam o documento com as formas de expressar o pensamento ou de retratar um fato. Em regra, pensa-se em prova documental com uma visão muito estreita, relacionando-a a papéis escritos, públicos ou particulares”. (13)
É importante salientar que no processo penal não é tão comum existir um documento que prove autoria e/ou materialidade de determinado delito como na esfera cível, por exemplo, onde é comum ser apresentado um contrato escrito.
O segundo tipo refere-se à prova pericial, que deverá ser realizada por meio de métodos científicos e que, normalmente, também representa um “grande peso” na convicção do magistrado.
O Art. 275 do Código de Processo Penal prevê que “o perito, ainda quando não oficial, estará sujeito à disciplina judiciária”. (14) Aranha afirma que a prova é composta de vários elementos, sendo que um deles refere-se à pessoalidade do perito. Comenta, ainda, que o perito emite um juízo de valor, em que apura o fato colocando-o em conjunturas entre suas experiências e os princípios técnicos científicos para o fornecimento de diagnóstico ou prognóstico. (15)
Não podemos, no entanto, supervalorizar a prova pericial, como se bastasse ao Direito como única fonte. Primeiramente, nem sempre é possível obter resultados úteis ao caso concreto, pois os recursos envolvidos na investigação são limitados e, em segundo plano, sabemos que a ciência está sempre em movimento e aquilo tido como verdade absoluta em um dia, no outro, pode tornar-se obsoleto.
Por último, mas não menos importante, temos a prova testemunhal que representa, muitas vezes, o único meio de prova possível de ser produzido em alguns processos. Contudo, nas ações onde existem outras formas de provas possíveis normalmente a testemunhal acaba tendo um “peso menor”, quando comparado aos demais meios, na formação da convicção do magistrado.
José de Aquino, na obra A prova testemunhal no processo penal brasileiro, afirma não restar dúvida “de que o testemunho, no processo penal, é o centro das investigações, influindo sobremaneira na opinio delicti do representante do Ministério Público e na convicção do julgador”. Também menciona que, “quanto mais consentâneo com a realidade for o testemunho, mais provável será que o agente do Poder Judiciário julgue o caso que se encontra sob sua apreciação, como se ele próprio tivesse testemunhado o fato”. (16)
Gustavo Ávila e Gabriel Gauer assim se referem acerca da importância da prova testemunhal no âmbito processual:
A prova testemunhal é notadamente das mais utilizadas no âmbito processual, em que pese as controvérsias naturais relacionadas à ela. O seu estudo encontra ponto nevrálgico no processo penal, onde a sua má-utilização pode significar a supressão de bens jurídicos supremos da ordem democrático-constitucional, como a liberdade. (17)
A utilização da prova testemunhal no processo penal parte do fundamento de que um terceiro possa ter compreendido, mesmo que parcialmente, os fatos ocorridos e tenha condições de transmitir essa compreensão ao julgador. Terceiro este que, com o mesmo ideal utópico referente aos magistrados, não teria interesses no processo, além de conduzir o juiz-estado ao correto julgamento do ocorrido.
O ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO PENAL
O Art. 156 do Código de Processo Penal dispõe que “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer [...]” (18), o que assegura a aplicabilidade do princípio actori incumbit probatio ou ônus probandi incumbit ei qui asserit, isto é, deve incumbir-se da prova o autor da tese levantada. (19)
O ônus da prova não se trata de um dever atrelado à imposição de uma pena, porque quem alegar e não comprovar a veracidade de sua alegação não será punido por essa omissão, embora corra o risco de ter de suportar o prejuízo que dela decorre. (20)
Pletsch refere que, “Por imposição constitucional, pertence ao Ministério Público a tarefa de impulsionar o jogo, desde que preenchidos os requisitos mínimos de autoria e materialidade delitiva”. (21) Alega, ainda, que “O poder de promover a ação penal se desdobra na possibilidade de ingressar em juízo postulando a condenação do denunciado, bem como no direito/dever de fornecer elementos probatórios que confortem suas alegações”. (22)
O ônus da prova, para alguns doutrinadores, pode ser dividido em subjetivo e objetivo, embora outros prefiram falar em ônus material e ônus formal. Há, ainda, aqueles que negam o ônus da prova no processo penal. Contudo, para a finalidade do presente artigo, é pertinente a seguinte definição:
Como conclusão geral, podemos afirmar que existe o ônus da prova no processo penal... Sob o enfoque subjetivo, em regra, o ônus da prova é todo do Ministério Público ou do querelante... Já o aspecto objetivo do ônus da prova, caracterizado como a regra de julgamento a ser observada no caso de dúvida do juiz sobre fato relevante, no momento de julgar o processo, é resolvido por meio da regra in dubio pro reo... Tecnicamente, contudo, não se pode admitir a existência de um ônus “objetivo”. Sendo o ônus um imperativo do próprio interesse, sua natureza é, essencialmente, subjetiva. Abstraída a questão terminológica, o importante é ressaltar que, mesmo nos sistemas em que o juiz possui poderes instrutórios, sempre haverá a necessidade de uma regra de julgamento, também chamada “ônus objetivo da prova”, válida tanto para o processo civil quanto para o processo penal. (23)
Cabe, pois, à parte acusadora provar a existência do fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza da presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, quer a parte objetcti, quer a parte subjecti, deve ficar a cargo da acusação. (24)
É importante recordarmos que, pelo princípio da comunhão ou aquisição das provas, todas as provas produzidas no processo, seja por meio testemunhal ou por outra forma, passarão a pertencer ao processo, podendo ser utilizadas por ambas as partes mesmo que venham a prejudicar quem as produziu.
Percebemos, portanto, que como regra o ônus da prova cabe à acusação e, em momentos em que é de interesse da defesa provar determinado fato, caberá a ela este encargo. Logo, caberá à acusação provar os fatos alegados na peça acusatória, através das provas por ela trazidas ao processo; por outro lado, caberá à defesa apresentar suas provas que tragam elementos que venham a embasar a sua tese defensiva.
É possível, portanto, compreendermos as provas como elementos impulsionadores do processo penal, que devem ser sempre produzidas e analisadas de acordo com os princípios constitucionais e legais que regem a teoria geral da prova, em especial do devido processo penal.
Também é importante salientarmos que inexiste hierarquia entre os diferentes meios de prova, a serem analisadas livremente pelo magistrado que poderá atribuir valores a elas de acordo com a sua convicção, sempre motivando as suas decisões, em conformidade com o princípio do livre convencimento motivado (Art. 155 do Código de Processo Penal (25) e Art. 93, Inc. IX da Constituição Federal (26)).
REFERÊNCIAS E NOTAS DE RODAPÉ:
(1) MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. 3.ed. Campinas: Bookseller, 2004. p.25.
(2) PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da prova no jogo processual penal: o atuar dos sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007. p.140.
(3) Ibidem, p.15.
(4) PLETSCH, op. cit., p.15.
(5) ÁVILA, Gustavo Noronha de. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.1.
(6) KHALED JÚNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013. p.591.
(7) Ibidem, p.593.
(8) CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Conan, 1995. p.32.
(9) ROSA, Alexandre Morais. Decisão no processo penal como bricolage de significantes. 2004. 434 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Direito, Curitiba, 2010. p.285. Disponível em: <http://tjsc25.tj.sc.gov.br/academia/arquivos/decisao_processo_ penal_alexandre_rosa.pdf>. Acesso em: 27 out. 2014.
(10) “Art. 232. Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”. BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 3 out. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 30 jul. 2014.
(11) MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. 3.ed. Campinas: Bookseller, 2004. p.543.
(12) NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p.416.
(13) Ibidem, p.416.
(14) BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro, 3 out. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/decreto-lei/ del3689.htm>. Acesso em: 30 jul. 2014.
(15) ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 4.ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1996. p.155.
(16) AQUINO, José Carlos G. Xavier de. A prova testemunhal no processo penal brasileiro. 4.ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p.15.
(17) ÁVILA, Gustavo Noronha de.; GAUER, Gabriel José Chittó. “Falsas” memórias e processo penal: (Re)discutindo o papel da testemunha. 2013. Disponível em: <http://www.uniritter.edu.br/ eventos/sepesq/vi_sepesq/arquivosPDF/27981/2405/com_identificacao/sepesq-com-identificacao. pdf>. Acesso em: 9 jul. 2014.
(18) BRASIL. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro, 3 out. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em: 25 jun. 2014.
(19) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. v.3. 26ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.237.
(20) BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.153.
(21) PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da prova no jogo processual penal: o atuar dos sujeitos e a construção da sentença. São Paulo: IBCCRIM, 2007. p.78.
(22) Ibidem, p.78-79.
(23) BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.431.
(24) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p.522.
(25) “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Ibidem.
(26) “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. Ibidem.