Sumário: I. Introdução; II. Acessibilidade aos cargos públicos; III. Requisitos para admissão dos candidatos; IV. Momento para se exigir os critérios: da inscrição no concurso ou da investidura; V. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O acesso a cargos públicos, conforme preceito impresso em nossa Carta Política (art. 37, II) se dá mediante aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, em forma prevista em lei.
O comando expressa o procedimento posto à disposição da Administração Público direta e indireta, de qualquer nível de governo, para seleção do futuro servidor melhor qualificado, necessário à execução de serviços sob a sua responsabilidade. Não é um procedimento de simples habilitação, mas sim competitivo, onde vários candidatos disputam os cargos oferecidos [1].
A investidura, portanto, dos cargos públicos oferecidos pela Administração [2], só é lícita com a realização do concurso para ingresso, sendo defeso a contratação de servidores sem obediência ao procedimento do certame, ressalvados os casos previstos no próprio texto constitucional.
Ponto controvertido, entrementes, se dá ao momento das exigências feitas pela Administração para exercício do cargo oferecido. Isso porque, ao realizar concursos para áreas específicas, exigindo-se, portanto, certos requisitos mínimos para a atividade futura, a Administração antecipa a comprovação desses requisitos de aptidão para o momento da inscrição no certame, não para o momento da posse.
Isso tem gerado discussões diversas no judiciário, não sendo consenso qualquer posicionamento adotado. De um lado temos os defensores da corrente de que a exigência, em casos quejandos, só deve se dar ao momento da posse, e não da inscrição para o concurso. Doutro lado temos aqueles que defendem a exigência prévia, porquanto, sendo o certame um procedimento para investidura no cargo público, por certo exigir, quando de sua inscrição, os requisitos inerentes a esse cargo, sem o qual seria o candidato considerado inapto para seu exercício.
O presente ensaio, conquanto simples, tem o escopo de apresentar a questão, sem esgotar o assunto, ao contrário, incentivando uma discussão mais profunda no sentido de que a atitude da administração, mesmo que plausível, de exigir os requisitos no momento da inscrição para o concurso, é inconstitucional [3], visto que estes só se concretizarão num momento ulterior, caso o administrado venha a ser aprovado no certame, momento esse que a exigência restará válida.
ACESSIBILIDADE AOS CARGOS PÚBLICOS
Com a norma constitucional supra, estabeleceu o legislador constituinte (originário e posteriormente o derivado, via emenda 19) a ampla acessibilidade aos cargos, funções e empregos públicos aos brasileiros e estrangeiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, mediante concurso público de provas ou provas e títulos.
Quis a Lei Fundamental, com os princípios da acessibilidade e do concurso público, possibilitar a todos iguais condições e oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração direta, indireta e mesmo fundacional. Da mesma forma, buscou impedir tanto o ingresso sem concurso, ressalvado os casos nela previstos, quanto obstar a que o servidor habilitado por concurso para cargo ou emprego de determinada natureza viesse a exercer funções de outra diversa da qual fora habilitado, pois esta seria uma forma de fraudar a razão de ser do concurso público [4].
Hely Lopes Meirelles, em sua imortal obra, vai mais longe, e assevera que, além de propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, o concurso seria o meio que a Administração Pública possui para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público, afastando-se os ineptos e apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantém no poder leiloando cargos e empregos públicos [5].
Assim, com o concurso público, a Administração deixa transparecer à sociedade que o acesso aos cargos por ela oferecidos se dará de forma honesta, ao mesmo tempo que seleciona, dentre uma universalidade, aqueles mais capacitados para as funções.
Outra não poderia ser o enfoque. Se a população é quem paga, indiretamente, mediante impostos, os salários do funcionalismo, nada mais justo do que oferecer a todos, de forma igualitária e justa, acessibilidade aos empregos públicos. O concurso, se não impede toda e qualquer tipo de fraude no acesso a esses empregos, ao menos dificulta sua incidência, ao mesmo tempo que ajuda o administrador na obtenção de mão-de-obra qualificada à função.
REQUISITOS PARA ADMISSÃO DOS CANDIDATOS
São duas as situações previstas pelo nosso direito constitucional quando se trata dos provimentos dos cargos públicos: a primeira, com relação aos cargos providos mediante eleição pelo voto direto popular, no qual estão explicitadas as condições de elegibilidade e inelegibilidade do pretenso candidato, que nada mais é do que o seu impedimento absoluto; a segunda, quando diz respeito aos cargos providos mediante concurso público, para o qual também é dispensado o mesmo tratamento, ou seja, distinção das condições de investidura e as vedações ao exercício destes. É uma questão que se encontra estabelecido na tradição de nosso Direito Constitucional.
Quando o concurso impõe algumas condições, está tratando de condições prévias para aferir se serão atendidas as condições da investidura aos cargos públicos. É evidente que não se admitirá, para o exercício de cargo público, pessoas desprovidas dos conhecimentos necessários ao bom desempenho da função. Dessa forma, os requisitos exigidos para os candidatos são um meio de aferir o mercado de trabalho, do que há disponível naquela sociedade para que a Administração, avaliando isso, possa recrutar.
Nada mais justo do que a Administração exigir requisitos especiais dos candidatos que almejam adentrar em funções cujas especialidades se fazem necessárias, indispensáveis.
A exigência, conforme estabelecido na Constituição, será feita mediante lei específica, cujos critérios devem ser ulteriormente seguido pelo edital do concurso, que nada mais é do que a norma deste.
Importante, contudo, que as exigências sejam compatíveis com a função a ser exigida, constituindo-se em verdadeiro abuso a exigência de critérios destoantes dos que o próprio cargo necessite.
Essa exigência é de todo louvável, desde que feito sob tino de eqüidade e bom-senso, evitando-se exigências abusivas ou direcionadas. O cerne da questão, contudo, encontra-se no momento que se deve exigir tais critérios. Esse é o ponto fundamental do presente estudo, e que analisaremos a seguir.
MOMENTO PARA SE EXIGIR OS CRITÉRIOS: DA INSCRIÇÃO NO CONCURSO OU DA INVESTIDURA
A exigência de critérios discriminatórios para acesso aos cargos públicos deve ser feita precipuamente sob o prisma da lógica, bastando verificar se a diferenciação possui justificativa racional e necessária, ou se resulta de mera discriminação fortuita. Ao exigir-se certos critérios, ou habilitações, a Administração Pública não pretende que sejam estes supridos ao momento da prova, mas para que os candidatos tenham conhecimentos necessários ao melhor exercício das atribuições do cargo, portanto, ao momento da investidura [6].
Quando se estabelece uma determinada experiência para exercício da função, é porque se acredita que aquele tempo trará maturidade ao candidato, não para fazer o concurso, mas para entrar no exercício da função do cargo. Da mesma forma, quando se exige um diploma de curso superior, não é para o candidato realizar as provas, pois pode estar concluindo o curso, mas é para que ele tenha legitimidade, tenha conhecimentos necessários para melhor exercer as atribuições do cargo.
Não é necessário muito esforço interpretativo para se chegar a essa conclusão. A melhor exegese aplicada à questão é a de que a existência da habilitação plena somente deve se dar ao momento da posse, não quando da inscrição no concurso ou no interstício temporal de sua realização. Atende-se, com isto, a finalidade da Constituição, o objetivo desta. Cumpri-la, como sabemos, não é aferrar-se servilmente à sua letra, mas realizar os objetivos desta. Ora, não tem nenhuma significação a inexistência, no ato da inscrição, do documento, da habilitação para o exercício da profissão. No momento em que esse exercício vai ocorrer é que a habilitação é necessária.
O artigo 37, I, da Constituição da República, diz que a os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei. O inciso II nos explica que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
Se a Administração Pública exigir, mediante ato administrativo (edital), os requisitos estabelecidos em lei no momento da inscrição, estará se contrapondo ao princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos. De fato, se uma pessoa interessada em realizar determinado certame, possuir, à época da investidura, ou seja, à época da nomeação e ulterior posse no cargo, todas as exigências para o correto exercício da profissão, essa pessoa encontra-se apta, a priori, ao exercício do cargo público, e tem esse direito resguardado pelo princípio supracitado.
Não importa se no momento da inscrição o candidato não irá atender aos requisitos para o exercício da função, mesmo porque, se aprovado for, não terá direito líquido e certo de tomar posse no cargo, mas sim mera expectativa desse direito. O importante é que, ao momento do exercício da função, esteja o candidato apto, comprovando-se, agora sim, mediante apresentação dos requisitos exigidos.
A finalidade última de se exigir certos requisitos para investidura no cargo público não é outra senão condicionar o exercício da função a certos profissionais habilitados para tal, nunca para a realização do concurso público, que é mero procedimento que dispõe a Administração para escolha.
Não há equidade em exigir-se dos candidatos a habilitação no momento da inscrição no concurso, quando terão totais condições de exercer o cargo no momento da investidura. Tratar o administrado dessa forma é, em última análise, uma forma de discriminação. Entenda-se: o candidato possuirá todas habilitações necessárias para o correto exercício da função pública, contudo é impedido de realizar o concurso para ingresso porquanto o administrador antecipou a demonstração dessas habilitações para o momento da inscrição no certame. Total absurdo.
Assim, a legislação pátria infra-constitucional, ao estabelecer as regras para investidura no cargo público, deve levar em conta não somente a lei expressa da Constituição, mas também seus princípios norteadores.
O princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos deve ser visto como fim último de qualquer norma que se preste a estender o comando constitucional ao caso concreto. A Constituição, como fim último, busca essa ampla acessibilidade. Não pode o legislador infra, mediante lei que exija a apresentação das habilitações para o exercício do cargo no momento da inscrição no concursos, espancar o princípio. Eivar-se-ia, tal comando normativo, de inconstitucionalidade.
Conclui-se, portanto, que a Constituição nos fornece dois nortes necessários. O primeiro, partindo-se do princípio da ampla acessibilidade aos cargos públicos, condiciona o legislador ordinário, no momento de estabelecer regras para o concurso público de acesso a determinado cargo, a afastar qualquer comando que venha a restringir o acesso dos administrados aos empregos públicos.
O segundo, partindo-se de uma interpretação teleológica do artigo 37, I e II, condiciona o administrador público a ter em mente, sempre e sempre, o fim último dos dispositivos Constitucionais quando da realização do certame, ou seja, de que a exigência dos requisitos para exercício de emprego público só deve se dar no momento da investidura no cargo, não na inscrição no certame, porquanto é naquele que tais requisitos serão necessários.
V. CONCLUSÃO
A acessibilidade aos cargos públicos é um dos princípios basilares da Administração Pública brasileira, sendo previsto em nossa Constituição. Não deve o legislador ordinário, tão pouco o administrador, estabelecer regras de investidura ao cargo público desconsiderando tal princípio condutor.
Assim, defeso a exigência de apresentação dos requisitos para exercício da função no momento da inscrição no concurso, porquanto restringe a garantia emanada pelo princípio sob foque. Da mesma forma não é este seu escopo. Para a Administração não importa se no momento da inscrição no concurso de acesso a cargo público, o candidato não possua a habilitação exigida. O que importa é se ele a terá quando da posse no cargo específico. Não há prejuízo para a Administração em exigir essas habilitações no momento da investidura.
Nosso tribunais superiores têm se manifestado nesse sentido. O STJ, inclusive, sumulou esse entendimento em recente verbete, vejamos:
Súmula 266: O diploma de habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público. (grifo nosso)
Dessarte, quando o administrado, ao intentar o acesso à determinado emprego público, mediante o obrigatório concurso, provar que no momento da investidura na função, que dar-se-á com a nomeação e ulterior posse, estará habilitado para exercício da função, é vedado à Administração indeferir sua inscrição no certame, sob risco de incorrer em ato manifestamente inconstitucional.
Espera-se, assim, que com o entendimento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça, possa-se assistir a uma mudança de atitude não só de nossos Tribunais, que, em grande parte, teimam em correr no sentido contrário, mas principalmente da Administração Pública, na figura de seus agentes públicos, evitando-se, dessas forma, qualquer possibilidade de embate judicial em torno da matéria.
Notas
1. Diogenes Gasparini, Direito Administrativo, p. 120
2. Frise-se que o concurso público só pode ser aberto quando existir cargo vago. A existência, outrossim, de candidatos de concurso anterior a serem nomeados, vincula o administrador a empossá-lo antes de qualquer outro que venha a ser aprovado no certame ulterior, desde que não ultrapassado o prazo de validade do antigo concurso. Mesmo que o candidato aprovado tenha somente expectativa de direito, não o direito à nomeação, forçoso se faz empossá-lo na ordem correta, esse sim seu direito.
3. Utilizamos também da expressão inconstitucional porque o ato estaria em contraposição à nossa Carta Magna, mas isso não quer dizer que este seria atacável via controle concentrado de constitucionalidade. "(...) o eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que se acha materialmente vinculado poderá configurar insubordinação administrativa aos comandos da lei. Mesmo que desse vício jurídico resulte, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade meramente reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada" (Citação do despacho – in fine – da ADI-1.547/SP)
4. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, pp. 256, 257.
5. Direito Administrativo Brasileiro, pp. 403, 404.
6. ROMS 9647