5. Espécies de atos normativos
5.1. Lei Complementar
A Lei complementar somente deve ser utilizada quando a Constituição ou a Lei Orgânica Municipal assim determinarem. Conforme salienta Pedro Lenza, “As hipóteses de regulamentação da Constituição através de lei complementar estão taxativamente previstas no Texto Maior. Sempre que o constituinte originário quiser que determinada matéria seja regulamentada por lei complementar, expressamente, assim o requererá”.[17]
Nos dizeres de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, a lei complementar é o “segundo veículo legislativo mais relevante”, pois “complementa a Constituição, explicitando-a”.[18] Até mesmo por isso, a aprovação dessa espécie normativa requer quórum diferenciado do ordinário, carecendo da concordância da maioria absoluta dos parlamentares. Conforme salienta Alexandre de Moraes,
[...] a razão de existência da lei complementar consubstancia-se no fato de o legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através de um processo legislativo ordinário. O legislador constituinte pretendeu resguardar determinadas matérias de caráter infraconstitucional contra alterações volúveis e constantes, sem, porém, lhes exigir a rigidez que impedisse a modificação de seu tratamento, assim que necessário.[19]
Destarte, sempre que matéria de lei complementar for editada por outro veículo normativo, destoando das regras do processo legislativo, tem-se uma inconstitucionalidade formal, por ofensa direta à Constituição.
Com efeito, também não pode a lei complementar, a pretexto de possuir um quórum mais enrijecido, tratar de assuntos reservados a outras espécies normativas, como, por exemplo, aqueles destinados à lei ordinária. É que o legislador infraconstitucional não está autorizado a conferir status complementar a matérias de perfis ordinários, engessando o processo legislativo que vise alterá-la.
Contudo, até mesmo em homenagem ao princípio da economia legislativa, a edição de lei complementar tratando de assunto reservado à lei ordinária não redunda verdadeiramente em inconstitucionalidade, mas, sim, em mera irregularidade. De acordo com Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, “O dispositivo da lei complementar, no caso, vale como lei ordinária e pode-se ver revogado por regra inserida em lei ordinária. Nesse sentido é a jurisprudência do STF”.[20] Equivale a dizer: quando a lei complementar invadir a competência legislativa da lei ordinária, poderá ser alterada posteriormente por lei ordinária, ou seja, por maioria simples da Câmara Municipal.
5.2. Lei Ordinária
Utiliza-se a lei ordinária quando não for exigida lei complementar e a matéria a ser regulada dependa de lei. É por isso que Kildare Gonçalves Carvalho diz que “O campo de abrangência da lei ordinária é o residual, vale dizer, cabe-lhe dispor sobre todas as matérias que, a juízo do legislador, devem ser normatizadas”.[21]
Com efeito, não há, na Constituição, reserva de lei ordinária a matérias específicas. Isso porque, sempre que a Carta Magna exigir lei para determinado assunto sem indicar qual veículo legislativo deve ser utilizado, deve-se pressupor que ela está a falar da lei ordinária. Assim, quando a Constituição ou a Lei Orgânica determinarem que “lei” irá tratar do assunto, ela estará se referindo à lei ordinária.
Por essas razões, é correto dizer que a regra é o tratamento dos assuntos por lei ordinária, com quórum de maioria simples, sendo excepcional a utilização de lei complementar, que requer quórum qualificado.
É importante destacar, por fim, que, embora o quórum de aprovação da lei ordinária seja menor, ela não é hierarquicamente inferior à lei complementar, pois, conforme salienta Michel Temer, “Não há hierarquia alguma entre a lei complementar e a lei ordinária. O que há são âmbitos materiais diversos atribuídos pela Constituição a cada qual destas espécies normativas”.[22]
5.3. Lei Delegada
Lei delegada é a norma confeccionada na íntegra pelo Chefe do Poder Executivo, após a expressa delegação conferida a ele pelo Poder Legislativo, sempre observando os limites expressos da delegação. Assim, pode-se dizer que a delegação abrevia o processo legislativo, ficando a cargo do Prefeito produzir a lei, sem a participação da Câmara Municipal na sua edição.
Para obter a delegação legislativa, o Chefe do Poder Executivo deverá solicitá-la ao Poder Legislativo, que poderá conceder a delegação ou não, por meio de resolução, a seu critério, pois o Prefeito não tem direito à delegação, ficando a cargo da Câmara Municipal a decisão política de anuir ou não ao pedido.[23]
Quanto ao processo de criação da lei delegada no âmbito federal, que se aplica ao âmbito municipal, Michel Temer destaca:
Dependendo do estabelecido na resolução autorizadora, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício, haverá ou não apreciação do projeto pelo Congresso Nacional. Se a resolução não determinar essa apreciação, dispensa-se a sanção, passando-se à promulgação.
Mesmo que a resolução determine a apreciação pelo Congresso Nacional, parece-nos dispensável a sanção, porque o conteúdo do projeto de lei delegada não se alterará, visto que se fará em votação única, vedada qualquer emenda (art. 68, § 3º).[24]
Importante destacar que nem todas as matérias são passíveis de delegação, não se a admitindo, por exemplo, quando o assunto a ser deliberado dependa de lei complementar ou, então, quando o assunto envolva o plano plurianual, diretrizes orçamentárias e orçamentos.
Em Santa Catarina, no âmbito municipal, a lei delegada não é muito utilizada, mas não se encontra nenhum óbice à sua utilização, dentro, lógico, dos limites estabelecidos na Constituição e na Lei Orgânica Municipal.
5.4. Medida Provisória
As medidas provisórias são atos emanados do Chefe do Poder Executivo, com prazo determinado de duração, e que devem ser apreciados pelo Poder Legislativo em curto período de tempo (até cento e vinte dias), a fim de que possa ser convertida em lei ou rejeitada, sob pena de trancamento da pauta da Câmara Municipal. Pressupõem, sempre, urgência e relevância, aptas a excepcionar o princípio da separação dos Poderes, que confere a função legislativa primordialmente ao Poder Legislativo, atribuindo tal função somente ocasionalmente a outro Poder.
No âmbito federal, há uma série de restrições quanto à edição de medidas provisórias. Além de não ser admitida a sua reedição, não pode tratar de diversos assuntos, tais como nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, direito eleitoral, direito penal, processual penal e processual civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, entre outros.
Muito provavelmente, é por causa das fortes restrições, inerentes à sua natureza, que o instituto não é muito difundido no âmbito dos Municípios.
Interessante trazer à discussão o comentário do Professor e Promotor de Justiça de São Paulo Raúl de Mello Franco Júnior:
Embora nos pareça certa a possibilidade de edição de medidas provisórias municipais, é de se reconhecer a pouca utilidade que elas poderiam ter. Isto, por certo, bem explica o grande desinteresse demonstrado pelos legisladores municipais quanto ao instituto, haja vista o diminuto número de Municípios que fizeram inserir a previsão de tal espécie normativa em suas leis orgânicas.
Algumas peculiaridades da seara municipal apresentam-se como razoáveis justificativas. Primeiramente, o rol de competências administrativas e legislativas dos Municípios não tem, nem de longe, a vastidão de hipóteses verificadas no campo de incidência da legislação federal. As situações de urgência, nos Municípios, estão quase sempre atreladas muito mais a providências administrativas, materiais, do que, propriamente, legislativas. Além disso, o procedimento legislativo sumário, contrariamente ao que se verifica no nível federal, funciona razoavelmente bem, permitindo que os projetos de iniciativa do Executivo sejam deliberados em prazos exíguos. Os regimentos internos de algumas casas prevêem, ainda, urgências especiais que permitem a deliberação em pouquíssimos dias, sobretudo quando o prefeito, como sói acontecer, conta com base parlamentar que lhe dá o necessário suporte. Fosse o contrário e, por certo, muito pouco valeria a medida provisória, que seria rejeitada pelo Legislativo Municipal com rapidez equivalente àquela com a qual foi produzida.
De qualquer modo, são observações práticas acerca da utilização da medida que, tais como as razões políticas comumente invocadas, não atingem a possibilidade jurídica do uso do instrumento.[25]
Destarte, ainda que se considere possível a instituição, em Santa Catarina, de medidas provisórias no âmbito municipal, sua utilidade prática é pouca, uma vez que os outros veículos legislativos são mais céleres e eficazes.
5.5. Decreto Legislativo
Decretos Legislativos, na dicção de Pontes de Miranda, “são as leis a que a Constituição não exige a remessa ao Presidente da República para a sanção (promulgação ou veto)”.[26] Seu escopo principal, destarte, é tratar das matérias de competência exclusiva do Poder Legislativo que produzam, em regra, efeitos externos.
No âmbito Estadual, referidas matérias são as previstas no art. 40 da Constituição, cabendo citar, a título exemplificativo, a de autorizar referendo e convocar plebiscito, mediante solicitação subscrita por no mínimo dois terços de seus membros; a de aprovar ou suspender a intervenção nos Municípios; a de sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa; e a de julgar anualmente as contas prestadas pelo Governador e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo.
Ressalte-se que o decreto legislativo passa por processo legislativo semelhante ao das leis ordinárias, mas, por dispensar a participação do Chefe do Poder Executivo, deve ser promulgado pelo Presidente da Assembleia Legislativa ou, no caso do Município, da Câmara Municipal.
Sobre a natureza dos decretos legislativos, salienta Hely Lopes Meirelles,
O decreto legislativo não é lei nem ato simplesmente administrativo; é deliberação legislativa de natureza político-administrativa de efeitos externos e impositivos para seus destinatários. Não é lei porque lhe faltam a normatividade e generalidade da deliberação do Legislativo sancionada pelo Executivo; não é ato simplesmente administrativo porque provém de uma apreciação política e soberana do plenário na aprovação da respectiva proposição. Daí por que só deve ser utilizado para consubstanciar as deliberações do plenário sobre assuntos de interesse geral do Município mas dependentes do pronunciamento político do Legislativo, ainda que sobre matéria de administração do Executivo, ou concernentes a seus dirigentes. Nessa conformidade, o decreto legislativo é próprio para a aprovação de convênios e consórcios; fixação da remuneração do prefeito; cassação de mandatos; aprovação de contas; concessão de títulos honoríficos; e demais deliberações do plenário sobre atos provindos do Executivo ou proposições de repercussão externa e de interesse geral do Município.[27]
Por fim, não se pode esquecer que o decreto legislativo também é relevante no processo de confecção das medidas provisórias, pois, sempre que ela for rejeitada pelo Poder Legislativo, perde a eficácia desde a origem, cabendo ao Congresso Nacional, à Assembleia Legislativa ou à Câmara Municipal, conforme o caso, por meio do decreto legislativo, regulamentar as relações jurídicas construídas sob a égide da medida provisória rejeitada.
Assim, caso o Município adote a possibilidade de edição de medidas provisórias, deve também reservar ao decreto legislativo a mesma função que ele possui no processo legislativo federal e estadual.
5.6. Resolução
A resolução é o ato normativo que regulamenta as matérias de competência privativa da Câmara Municipal que, via de regra, produzam efeitos internos. A exceção é a resolução que concede delegação legislativa ao Prefeito, pois esta, obviamente, produz notórios efeitos externos.
A peculiaridade da resolução, conforme elucida o doutrinador Michel Temer, é que, fora a exceção já explicitada, “O constituinte não definiu quais os atos que serão veiculados por resoluções”.[28] Hely Lopes Meirelles, entretanto, ao comentar sobre o âmbito de sua utilização prática, esclarece que a resolução se presta à aprovação do regimento interno da Câmara Municipal; à criação, transformação e extinção dos seus cargos e funções; à concessão de licença a Vereador; à organização dos serviços da Mesa; e à regência de outras atividades internas da Câmara.[29]
Por fim, ressalte-se que, a exemplo do decreto legislativo, na resolução também não há a participação do Prefeito no processo de sua edição, notadamente porque a matéria a ser veiculada por este ato normativo diz respeito exclusivamente ao Poder Legislativo.