Aos dezessete de outubro de 2013, foi sancionado o Decreto n. 8.124, que regulamenta a Lei 11.904/2009, denominada Estatuto de Museus, e a Lei 11.906/2009, que criou o Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM. Dentre outras disposições, o novo diploma transfere para o recém-criado órgão o poder de declarar como de interesse público os bens culturais, musealizados e passíveis de musealização, cuja proteção e valorização, pesquisa e acesso à sociedade representarem valor cultural de destacada importância para o País, trazendo implicações para museus, galerias, colecionadores e artistas.
A Constituição Federal respalda a proteção dos bens de interesse cultural, impondo ao Estado o dever de garantir a todos o exercício de direitos relativos à cultura e o acesso às fontes da identidade cultural brasileira. A dicção do seu art. 215 preceitua que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”. No mesmo sentido, o § 1º do Art. 216, estatui que “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Desta forma, por logicamente se submeter à Carta Magna, a nova espécie objeto deste estudo tem como objetivo, ao declarar como de interesse público as obras que se agrupem sob sua figura, estimular a conservação e a divulgação dos bens culturais tidos como de notável importância para a identidade jurídica nacional.
O Decreto, como não poderia ser diferente, gerou celeuma entre os colecionadores particulares, uma vez que a constante vigilância do Estado na propriedade privada desencoraja os colecionadores e prejudica o mercado da arte no Brasil. Muitas vezes, a ânsia estatal de proteger o patrimônio cultural nacional acaba por trazer reflexos opostos aos desejados, como explicitado no caso da venda da Tela Abaporu, comprada por um colecionador argentino, em 1995, vez que a perspectiva de tombamento da obra pelo Estado desestimulou os colecionadores brasileiros, que não se sentiram seguros em pagar o preço do quadro ante uma perspectiva de democratização da peça.
A pesquisa, assim, parte do ponto de que a propriedade é um direito fundamental do ser humano, que deve ser salvaguardada pelo Estado – e as limitações sofridas neste tema devem ser estritamente limitadas. É neste esteio que questionaremos de que forma a função social da propriedade e as políticas intervencionistas do Estado são extensíveis, e a partir de qual momento passam a perder sua legitimidade.
PROBLEMATIZAÇÃO
Analisando a disposição constitucional que atribui ao Estado o dever de proteção em relação aos bens culturais com importância para a identidade cultural nacional, cumpre contrastá-la com o direito de propriedade do dono da peça, analisando a legitimidade do Estado em restringir e até desapropriar colecionadores particulares, e os reflexos que a promulgação do Decreto 8.124/2013 trouxe ao ambiente cultural do país.
Da leitura do Decreto depreende-se que qualquer obra poderá ser qualificada como de interesse público; limitando os direitos do seu proprietário sobre esta. A dicção do seu art. 2º, I, define: “I - bens culturais - todos os bens culturais e naturais que se transformam em testemunhos materiais e imateriais da trajetória do homem sobre o seu território;” Aparte a infeliz redação do inciso, observamos que a amplitude conceitual é tamanha que podem ser declarados como de interesse público qualquer objeto alterado por trabalho humano. Neste sentido, qualquer objeto é alvo do decreto e sobre ele paira a possibilidade de democratização do patrimônio artístico e cultural a ser realizada pelo IBRAM.
Perante esse contexto é possível identificar a seguinte problemática: Como equilibrar a função social e o direito de propriedade? É legítima a intervenção do Estado na propriedade privada nos moldes propostos pelo novo diploma legislativo? Em quais situações deverá prevalecer o interesse público sobre o privado,e em quais o privado sobre o público?
Com vistas a este enfoque, a presente pesquisa analisará as possibilidades teóricas e práticas de conjugação entre a nova política de limitação da propriedade de obras de arte pelo Estado e o direito de domínio dos colecionadores, ora substancialmente restringido por este novo regulamento.
No ordenamento jurídico pátrio, a propriedade já é objeto de variadas limitações, como o tombamento e a desapropriação, que, como toda regulação restritiva de propriedade emanada pelo Estado, acaba por majorar os custos de transação da obra, interferindo diretamente no aspecto mercadológico das artes.Entende-se que o aparato de interferência do Estado já era suficiente para acautelar, proteger e salvaguardar o patrimônio artístico e cultural do Brasil antes do advento do Decreto 8.124/2013.
O instrumento utilizado para intervir na propriedade privada é a denominada Declaração de Interesse Público, figura semelhante ao tombamento. Entretanto, o legislador preferiu inovar neste quesito, dando origem à este novo instituto em vez de preferir um instituto já existente, mas perfeitamente cabível.
Pela redação do decreto, qualquer objeto humanamente alterado poderá ser objeto da Declaração de Interesse Público, pelos servidores do IBRAM, com isto, a obra passará a ser monitorada pelo Estado – tais obras passam a ter sua exposição restringida e não poderão ser vendidas sem autorização do órgão, além de ser necessário a cessão de direito de preferência aos museus integrados ao SBM – Sistema Brasileiro de Museus.
Ainda dentre os novos deveres impostos aos museus, galeristas e colecionadores, está o de redigir documento em conste todo o acervo detalhadamente, um inventário total da coleção detalhando as peças, bem como informações sobre a estrutura física do prédio que abriga a coleção, bem como uma descrição dos arredores do prédio. A partir de agora, para se alterar a estética do prédio, deve-se pedir autorização ao IBRAM. Ocorre, entretanto, que essa prerrogativa já pertence ao IPHAN, configurando uma invasão de esfera de competência perpetrada pelo novo Decreto.