Em 27 de dezembro de 1990, o então presidente Fernando Collor sancionou a Lei 8.137, a qual reformulou as disposições acerca dos crimes tributários (até então tratados na Lei de 4.729/65, que definia o crime de sonegação fiscal).
Dando um tratamento mais amplo à matéria, a Lei 8.137/90 distinguiu com mais detalhes tipos penais atinentes aos delitos de natureza fiscal, os quais passaram a ser legislativamente denominados "crimes contra a ordem tributária", criando ainda figuras que não existiam na normatividade penal até então em vigor.
Uma das novas figuras penais introduzidas pela novel legislação foi a do crime de omissão de recolhimento de tributo descontado ou cobrado de terceiros, consoante expresso no inciso II do artigo 2º da indigitada Lei 8.137/90, com a seguinte redação:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
(...)
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Pois bem.
A partir de uma leitura apressada do dispositivo legal, um sem número de denúncias criminais foram deflagradas, desde o advento da Lei 8.137/90, pretendendo enquadrar, como praticantes do crime previsto no referido inciso II do artigo 2º, os contribuintes que deixam de recolher o ICMS - Imposto de Circulação de Mercadorias, devido por operações próprias, ainda que a empresa tenha efetuado os devidos registros contábeis e apresentando regularmente as declarações pertinentes para a fiscalização (Guia de Informação e Apuração, Declaração de Movimento Econômico etc).
E o que é pior: Tais denúncias têm sido recebidas, processadas e, salvo raríssimos casos, resultam em condenação penal em desfavor do administrador da empresa, refutando-se argumentos defensivos quanto à necessidade de se provar a existência de fraude na escrita fiscal e/ou dolo na conduta do empresário, bem como não se aceitando provas da existência de justa causa para o não recolhimento, como por exemplo, sérias dificuldades financeiras da empresa etc.
Ou seja, um sem número de empreendedores, muitos dos quais, abandonando confortáveis empregos, investiram todo seu patrimônio particular na arriscada iniciativa econômica, e que sempre pautaram sua vida pessoal pelo respeito às leis, estão sendo levados ao banco dos réus e sofrendo condenações criminais, ao lado de fraudadores, estelionatários, sequestradores, ladrões, estupradores, assassinos e demais criminosos de toda sorte, somente pelo fato que, num determinado momento de sua empreitada privada, quedaram-se inadimplentes no pagamento do tributo relativo à sua atividade.
Já de início se ressalta que não está aqui a se tratar do sonegador fiscal, assim caracterizado por aquele indivíduo que busca suprimir ou reduzir tributos simulando, falseando ou ocultando operações; fraudando livros, notas fiscais ou documentos.
O exame que se faz está circunscrito aos casos de tributos não pagos, mas que foram devidamente registrados e informados ao fisco.
Constata-se que as ações penais deflagradas e as condenações proferidas, com suposto arrimo no artigo 2º, II, da Lei 8.137/90, partem da suposição que a omissão no recolhimento de ICMS, mesmo que devidamente escriturado e declarado, por si só configuraria o crime tipificado no dispositivo, porquanto a conduta delituosa seria crime de mera conduta.
E aí estaria o ponto nodal: o ICMS seria um tributo cobrado de terceiro quando da emissão da nota fiscal de saída da mercadoria. De tal modo, o seu "não repasse" ao Fisco se assemelharia a uma "apropriação indébita". Vale dizer, o valor correspondente ao ICMS destacado na nota fiscal seria de propriedade do Fisco e não poderia ser "apropriado" pelo contribuinte que praticou a operação tributável.
E ainda, argumenta-se, com a indigitada "apropriação", o contribuinte estaria se servindo de recursos "do Estado" para alavancar suas atividades privadas ou socorrer outras prioridades particulares, as quais não poderiam se sobrepor "aos interesses da coletividade" somente atendíveis com a receita tributária (e dá-lhe discorrer sobre as mazelas dos hospitais, estradas, educação etc).
No presente artigo nem se adentrará na manifesta inconstitucionalidade da pretensão penal em foco, visto que o artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal proíbe expressamente a prisão civil por dívidas. E para aqueles que insistem em dizer que a vedação constitucional não alcançaria a privação de liberdade decorrente de "condenação criminal", respondemos que o Brasil é signatário do Tratado Interamericano de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), devidamente ratificado pelo Congresso Nacional, cujo artigo 7º, expressamente, veda a "prisão por dívidas", em redação que não dá margem a qualquer silogismo semântico.
A abordagem que, sucintamente, aqui se faz é em torno da própria atipicidade da conduta, diante dos fenômenos econômicos e jurídico-tributários que cercam a exação em questão, bem como a respeito da falácia das justificativas que tentam dar algum conforto de consciência para condenações que não encontram alicerces no mundo das coisas reais, como são os argumentos de supremacia do interesse coletivo, necessidade de recursos para consecução das obrigações estatais etc.
Prossigamos, pois.
Em primeiro lugar, quem conhece bem a economia e a complexa legislação tributária que vige em nosso país, com inúmeras obrigações acessórias a serem cumpridas pelas empresas, traduzidas em emissão de notas fiscais, apresentação de declarações mensais, anuais, atualmente a maioria por meio de sistemas informatizados, o que possibilita o cruzamento on line de informações entre os fiscos, bem como o acompanhamento em tempo real das atividades dos contribuintes, sabe que nenhuma empresa consegue desenvolver suas atividades se estiver inadimplente com os tributos.
A inadimplência no pagamento de tributos, em especial aqueles de trato sucessivo, como é o caso do ICMS (bem como do IPI, PIS e COFINS) expõe o contribuinte a toda uma sorte de sanções, dentre as quais, instauração de fiscalizações, autuações, notificações, imposição de regimes especiais de recolhimento antecipado, execuções fiscais, penhoras de bens, leilões, tudo a, em curto espaço de tempo, inviabilizar a operação industrial e comercial.
Ou seja, ninguém, em sã consciência, no meio empresarial, adotará como livre opção o não recolhimento de tributos, como alternativa para enriquecimento indevido, ou mesmo para manter a empresa em funcionamento, em caso de dificuldades financeiras.
Quase sempre a inadimplência tributária decorre de estado de necessidade, bem como não surge da vontade livre e consciente de sonegar, o que bastaria para afastar qualquer criminalização na conduta daquele que, há que se admitir, busca lucro, mas também coloca o seu patrimônio privado a serviço do coletivo, cumprindo os desígnios estampados no art. 170 da Carta, embora, ao final, não foi agraciado pelo sucesso.
O que se tem visto, no entanto, nos últimos anos, é uma total insensibilidade do Estado Fisco - cada vez mais voraz, mas cada vez menos devolvendo benefícios para sociedade -, o qual tem se servido do Direito Penal para uma verdadeira cobrança coativa de tributos, colocando no banco dos réus aqueles que não lograram êxito em sua atividade produtiva, retrocedendo nossa sociedade aos tempos da Derrama.
Em segundo lugar, a conduta omissiva em discussão (não recolhimento de ICMS, devido por operações próprias, devidamente escriturado e declarado ao Fisco) não se reveste de qualquer tipicidade penal.
Não há sequer se falar que tal conduta se enquadra na fatispécie do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, o qual define como crime “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”, porquanto, como enganadamente se sustenta, se trataria de tributo "descontado ou cobrado" de terceiro.
Com efeito.
Muito embora o emitente da nota fiscal de saída de mercadorias (como é o caso) seja o sujeito passivo da obrigação tributária, o fato é que o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços não é “descontado” nem tampouco “cobrado” por quem realiza a operação de saídas.
O que gera a obrigação de se pagar o ICMS é a ocorrência do fato gerador, que se verifica na saída da mercadoria do estabelecimento. Ou seja, quando o contribuinte dá saída na mercadoria em seu estabelecimento nasce a obrigação de recolher o imposto incidente sobre a operação.
É totalmente equivocado se dizer, no sentido jurídico-tributário, que o emitente da Nota Fiscal “cobra ICMS” do adquirente.
Ora, na prática, é óbvio que o ICMS integra o valor cobrado, uma vez que se constitui um dos elementos do custo da mercadoria vendida. Mas é de se observar que não só ICMS integra o custo, uma vez que este, como não poderia ser diferente, incluirá todos os demais encargos e gastos necessários à realização da operação final (venda da mercadoria), dentre os quais os insumos, a energia elétrica, os salários, taxas, e ainda outros tributos como o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, Contribuição Social sobre o Lucro, PIS, Cofins, as Contribuições Previdenciárias, etc. Todos estes elementos, como já se disse, na prática são “cobrados” do adquirente.
No entanto, em se falando dos tributos que integram o preço (não só o ICMS como todos os demais, como apontado), não se pode dizer, em termos jurídicos, que está se “cobrando tributo” do adquirente. O que se cobra é o preço da mercadoria.
E aqui é que reside o cerne da questão em foco. A relação que se estabelece entre quando o vendedor realiza uma saída de mercadoria com destino ao adquirente é uma operação meramente comercial e nunca de cunho jurídico tributário.
E o que dizer do ICMS que vai “lançado” na Nota Fiscal, perguntam alguns?
Ora, como a própria legislação do ICMS assenta, o “destaque” do ICMS em local própria da Nota Fiscal é “mera indicação de controle”, como consta em todos os regulamentos de ICMS estaduais. Vale dizer, serve para fins de escrituração, controle e fiscalização do débito pelo emitente da nota fiscal, e correspondente crédito pelo adquirente da mercadoria, se for o caso.
O fato de se “destacar” o ICMS no retângulo próprio da Nota Fiscal não significa que, em termos jurídicos tributários, está se “cobrando” o imposto, como já se afirmou. Contrario sensu, quando o adquirente paga a Nota Fiscal não está “pagando” ICMS ao emitente.
Portanto, é totalmente equivocado se falar em “contribuinte de direito” e “contribuinte de fato” nas condições aqui tratadas. Contribuinte, no caso do ICMS de operações próprias é um só: o que emite a Nota Fiscal.
Tal é a verdade dessa afirmação que se o chamado “contribuinte de fato” não efetuar o pagamento da fatura correspondente à Nota Fiscal emitida, nem por isso ficará o “contribuinte de direito” desobrigado de recolher o ICMS destacado!
Se alguém duvidar disso, pergunte a um agente do fisco estadual se a Fazenda dispensaria o “contribuinte de direito” de recolher o ICMS diante da inadimplência do adquirente da mercadoria.
O uso desvirtuado do direito penal para cobrança de dívidas fiscais, destituindo a norma do pretendido status de tipo penal para mero instrumento de “execução civil”, fica mais evidenciado diante da constatação que o Estado Legislador oferece aos contribuintes a “suspensão do processo penal”, com “extinção da punibilidade” no caso de pagamento integral, conforme se vê das Leis Federais de Refis nºs 11.382/2011, 10.684/2003, 9249/95 etc.
Não desconhece o articulista da existência de precedentes jurisprudenciais contrários, bem como opiniões doutrinárias divergentes ao que aqui se sustenta.
E é certo que a necessidade de se proporcionar segurança jurídica nas relações recomenda a estabilização e uniformização do entendimento jurisprudencial acerca das normas.
No entanto, por outro lado, não se pode olvidar que o Direito está em constante processo de mutação, buscando acompanhar os passos evolutivos da sociedade. A orientação jurisprudencial não pode ficar alheia a tal movimento, o que resulta, não raro, na necessidade de se revisitar a jurisprudência, modificando ou adaptando os entendimentos a novos standards ou valores e sociais (fenômeno do overruling).
Por fim, reitera-se que as digressões aqui feitas não têm por objetivo estimular ou justificar a inadimplência tributária. É indiscutível que os tributos representam um dos meios essenciais para que o Estado atinja os objetivos traçados pela mesma sociedade de quem se cobra.
No entanto, de outro lado, tanto a instituição dos tributos, como sua cobrança e a punição da inadimplência devem se feitas dentro dos estritos limites da Constituição.
E isso, com a devida vênia, ao menos no caso aqui tratado, não é o que se tem verificado.