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Cabe ADIN contra plano de Governo:

O Supremo Tribunal Federal não pode ser um tribunal político

01/01/2003 às 00:00
Leia nesta página:

            O presente trabalho expressa um ponto de vista, dentro da liberdade de expressão, sobre as discussões técnico-jurídicas em torno do cabimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra planos de Governo ou contra as denominadas políticas governamentais.

            Tais políticas ou opções de Governo, em regra, advêm de alterações no texto constitucional ou de leis complementares, de leis ordinárias ou de decretos.

            O artigo 102, inciso I, alínea "a" da Constituição Federal é claro ao dispor o seguinte:

            "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

            I - processar e julgar, originariamente:

            a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; "

            Observe-se que nem os Constituintes de 1988 nem aqueles que aprovaram a Emenda Constitucional nº 03/93 fizeram qualquer distinção sobre a inadmissibilidade de Ação Direta de Inconstitucionalidade quando o teor da lei ou do ato normativo federal fosse, exatamente, um Plano de Governo ou medidas de natureza econômica, administrativa ou política.

            Portanto, uma norma de iniciativa do Governo, ainda que traga em seu bojo essas medidas econômicas, administrativas ou políticas, é uma norma como qualquer outra e pode ser objeto do controle concentrado de constitucionalidade. Onde a Constituição não restringiu, não cabe ao Supremo Tribunal Federal fazê-lo.

            Nesse contexto, urge frisar que, além de ser o permissivo constitucional amplo, para a Ação Direta de Inconstitucionalidade, no momento em que as denominadas políticas governamentais venham a atingir, em hipótese, os direitos e as garantias individuais dos cidadãos, aparece um fator a mais a ser ponderado pelo Supremo Tribunal Federal: as suas decisões não devem ser políticas.

            Não cabe ao Supremo Tribunal Federal, sob o argumento da necessidade de garantir uma hipotética governabilidade do País, ir contra aqueles direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

            Os tempos mudam, as pessoas mudam, os Governos e suas equipes de apoio mudam, mas princípios básicos do direito não podem ser tratados em segundo plano. Não se pode conceber que em primeiro lugar devem ser pensadas as repercussões das decisões do Supremo para o Governo vigente, para, depois, se analisar as conseqüências dessas decisões nos direitos e nas garantias constitucionais e legais dos cidadãos.

            Se o Supremo Tribunal Federal tivesse de ser político em suas decisões, isso seria uma grave contradição com tudo que até hoje se construiu em termos de avanços no direito brasileiro e seria o mesmo que dizer o seguinte:

            1º) não existe mais a independência e a harmonia entre os Poderes da União, nos termos do artigo 2º da própria Constituição Federal, devendo o Supremo ser um braço do Poder Executivo, ou ser subserviente a este, nas medidas políticas que ele adotar;

            2º) os deputados e senadores figem que criam leis no Congresso Nacional, que trazem direitos aos cidadãos brasileiros, o Poder Executivo as regulamenta por decretos ou propõe também as leis de sua iniciativa, mas, ao final, tudo isso é "de faz de conta", porque não há como cumprir, não há como pagar, etc..., e o Supremo tem de servir como a "peneira" que vai filtrar o que é politicamente aceito, dependendo do que o Governo instalado precisar;

            3º) o Supremo deve ser quase que um aniquilador dos direitos (ou pseudo direitos), até mesmo garantidos pela Constituição Federal, que forem contrários ao que o Governo do momento pretende executar em suas opções políticas (seus planos econômicos, administrativos, etc.);

            4º) o Supremo Tribunal Federal tem de servir como uma base de apoio governista, o que, em tese, somente se admite no Congresso Nacional, por exemplo; e

            5º) não há mais o princípio da igualdade, insculpido no artigo 5º da Constituição Federal, porque, além das tantas prerrogativas processuais que a instituição Estado, no sentido amplo, já possui expressamente, o Governo de cada momento histórico também deveria ser privilegiado muitas vezes com benevolência do Supremo Tribunal Federal a favor de suas opções políticas ou respaldando seus planos econômicos, administrativos, etc...; em suma, as causas do Governo estariam garantidas.

            Nessas circunstâncias, são inevitáveis os seguintes questionamentos:

            1º) Quais seriam, precisamente, os limites para a ponderação política nas decisões do Supremo sobre planos ou políticas governamentais?

            2º) Onde estaria o Estado de Direito no Brasil a favor dos cidadãos?

            3º) O Governo também não teria obrigação de respeito para com o direito positivo, com a ordem jurídica vigente?

            4º) Que Supremo seria esse que não poderia ter a liberdade e a independência de julgar conforme a Lei e a Constituição e decidir ainda que contra os planos ou opções políticas do Governo?

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            5º) Em prol de uma governabilidade do País (do Governo vigente em cada momento histórico) se poderia, simplesmente, afrontar os direitos e as garantias dos cidadãos, conquistados como cláusulas pétreas na Constituição?; e

            6º) Hoje em dia, para se governar, seria preciso voltar à época de Thomas Hobbes (1588-1679), invocando-se o absolutismo, onde os cidadãos deveriam "abdicar dos seus direitos em favor de um soberano", ou seja, "Todo Poder ao Rei" (no caso em questão, o Governo)?

            É importante frisar que, mesmo que já decorrida uma década, ainda assim o povo brasileiro não esqueceu do denominado "confisco da poupança", decorrente de uma medida governamental no início dos anos noventa (então "Governo Collor").

            Naquele caso, especificamente (confisco da poupança pelo Governo), cabe relembrar que os cidadãos buscaram seus direitos no Judiciário de todo o País contra as decisões políticas do Governo que feriram seus direitos e garantias; e conseguiram a devida reparação. Esse é um exemplo e também uma prova indiscutível de que não pode o Supremo Tribunal Federal ser um tribunal político, sob o argumento de preservar a governabilidade do País. É preciso atentar para essa separação entre as opções políticas de um Governo e os direitos expressos dos cidadãos. Cada um deve ter o seu devido limite.

            E porque não lembrar, aqui, como isso aconteceu também em um passado mais recente: o início do "Plano Real".

            Quem não se lembra da regra de conversão dos vencimentos dos servidores públicos, que veio, inicialmente em medida provisória e que causou para muitos uma perda de 11,98% (onze vírgula noventa e oito por cento).

            Milhares de servidores públicos de todo o País agiram buscando seus direitos, em uma verdadeira enxurrada de ações judiciais. E o mérito dessas ações, ao final de anos, veio parar no Supremo Tribunal Federal, e o direito não foi dado a favor da política do Governo, mas sim aos servidores.

            Observe-se que houve um controle difuso de constitucionalidade para as milhares de ações dos servidores públicos. Mas, então, porque não caberia a Ação Direta de Inconstitucionalidade, no conceito amplo da Constituição, se aquela medida provisória (depois convertida em lei) era apenas e tão somente mais uma norma federal, como qualquer outra? Lembra-se: nenhum limite relativo a matérias ou temas foi criado pela Constituição Federal para a Ação Direta de Inconstitucionalidade.

            Desse breve estudo, portanto, já se conclui que apoiar decisões políticas de um Governo não é função do Supremo Tribunal Federal. Senão, nesse caso, todos os desembargadores do País, nos tribunais de justiça, deveriam decidir apoiando as políticas dos respectivos governadores dos Estados e os juízes de direito decidir apoiando as opções ou medidas políticas dos prefeitos municipais. E nessas condições haveriam muitas e graves violações dos direitos e garantias dos cidadãos.

            O Poder Judiciário não deve ser político (na concepção de preservar medidas de Governos, se isso for atingir direitos dos cidadãos).

            A tão necessária política deve ser feita no Palácio do Planalto, no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas sedes dos governos estaduais e municipais, nas assembléias legislativas e nas câmaras municipais, mas não no Supremo Tribunal Federal ou nos outros órgãos do Poder Judiciário, concebendo como que em um segundo plano os direitos dos cidadãos, conquistados a duras penas, ao longo de anos. Os direitos e as garantias trazidas pela "Constituição cidadã" não podem sucumbir às passageiras políticas governamentais.

            Se avanços foram trazidos para o Poder Judiciário Brasileiro, inclusive a força, a competência e a independência conferidos constitucionalmente ao Supremo Tribunal Federal e aos outros órgãos desse Poder, certamente não o foram porque os juízes ou os ministros decidiram conforme políticas governamentais de cada época, mas sim porque o povo lutou de verdade, lutou muito e por muito tempo.

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Sobre o autor
Jonas Lima

Advogado, especialista em Compliance Regulatório pela Universidade da Pennsylvania, pós-graduado em Direito Público pelo IDP, ex-professor de Direito Administrativo da UDF, ex-assessor da Presidência da República (CGU) e da Procuradoria-Geral da República, contando com 25 anos de experiência em licitações nacionais e internacionais. É autor de 5 (cinco) livros, incluindo “Licitação Pública Internacional no Brasil” (Editora Negócios Públicos, 2010), e do guia AMCHAM “How to do Government Contracts in Brazil” (2010/2014), palestrante em mais de 150 eventos em 18 Estados, para mais de 6.000 participantes, além dos internacionais em Washington, Nova Iorque, Houston, Miami, Boston, Buenos Aires e Hong Kong.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Jonas. Cabe ADIN contra plano de Governo:: O Supremo Tribunal Federal não pode ser um tribunal político. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3634. Acesso em: 23 dez. 2024.

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