RESUMO: É procedente a preocupação com o desenvolvimento das pesquisas genéticas e é pertinente o seu controle pela Bioética e pelo Biodireito. Porém, contra a prática de um controle excessivo, opõe-se que o avanço tecnológico no campo da genética é uma questão estratégica, pois os detentores do conhecimento ampliam o poder de, mais cedo ou mais tarde, interferir na composição da espécie humana. Por outro lado, a ciência moderna tende a considerar indiscutíveis os resultados de suas pesquisas, opondo-se ao exame ético e moral, com o que o principio da dignidade humana acaba relativizado. Por isso, é pertinente examinar os argumentos éticos e jurídicos em favor da valoração dos fatos pelas ciências culturais, com a eleição dos fins a serem alcançados, verificando se é aceitável a relativização dos direitos fundamentais. Com isso, poder-se-á constatar que é necessária a normatização das pesquisas genéticas, para segurança da sociedade e por responsabilidade com as futuras gerações. Assim, se verá que a regulamentação brasileira, condicionada pelo contexto social, com previsíveis óbices e/ou excessos, dignos de correção, constitui adequada solução provisória, porquanto comprometida com a transparência da ciência e com o controle social das técnicas e dos resultados, afastando as proibições e o conservadorismo que conduzem à práticas clandestinas, sem aderir à política de completa liberdade das empresas de biotecnologia, incentivadas pelo interesse econômico.
Sumário: 1. Introdução. 2. O progresso da ciência e os seus riscos. 2.1 – Biotecnologia, o aspecto regressivo das ciências e os princípios éticos. 2.2 – O método científico e a autoridade de suas conclusões. 2.3 – As leis físicas, as regras morais e a normatização jurídica. 3. A regulação das pesquisas biomédicas. 3.1 – O balizamento imposto pela dignidade da pessoa humana. 3.2 – O princípio da precaução e a regulação da biomedicina. 3.3 – A regulação das pesquisas genéticas. 4. Considerações Finais. 5. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
“É temerário tentar desenhar um quadro da medicina do futuro, porque se corre o risco de confundir ciência com ficção”[1].
Eis a revolução técnico-cientifica, na Biologia e na Medicina, em especial na Genética. Trata-se de evento que comporta o risco de nos vitimar, inclusive nos corpos de nossos descendentes. O desafio da Medicina são as doenças genéticas. Espera-se que tais doenças possam ser tratadas quando for completamente desvendada a “cartografia gênica” do ser humano. Mas, a terapia gênica já apresenta resultados promissores e isto modifica a prática médica.[2].
O poder sobre o conhecimento amplia o poder sobre a humanidade e, por isso, é estratégica a partilha universal do biopoder.[3]. Então, pode-se concluir que o desenvolvimento da biotecnologia é uma necessidade estratégica dos países emergentes, tais como o Brasil.
O preocupante é que o progresso da biotecnologia, não é inofensivo. O avanço das pesquisas na área de manipulação genética levou ao mapeamento e sequenciamento do genoma humano. São promissores os avanços nesse campo do conhecimento. Todavia, há insegurança, porquanto tais avanços possibilitam a manipulação da vida, pois, além da terapia somática, há terapias e pesquisas com células germinativas, o que é capaz de gerar mudanças em gerações futuras. A certeza quanto aos efeitos esperados em seres humanos só pode advir de experiências com seres humanos.
Ora, buscar na ciência razões morais para deter seus experimentos vai de encontro ao modelo de racionalidade que a tornou o que é. Torna-se oportuna a reflexão filosófica sobre o sentido da vida, sobre o domínio da ciência e suas interferências nas dimensões da dignidade da pessoa humana. Mostra-se imprescindível andar com prudência, prestigiando o princípio da precaução.
Coloca-se, portanto, o dilema de proibir as pesquisas genéticas em células germinativas, procurando preservar a humanidade como atualmente a concebemos, mas ficando à margem dos progressos da ciência e da prática médica avançada, ou de permitir as pesquisas nos limites dados pela bioética e pelo direito, ainda que com risco de acidentes de percurso que podem vitimar futuras gerações.
Assim, neste artigo propõe-se uma reflexão sobre a vida e os riscos a que ela é exposta pelas pesquisas cientificas, todavia necessárias para melhora da qualidade de vida da humanidade, ressaltando-se as dimensões da dignidade da pessoa humana que podem balizar avanços e paradas na busca do conhecimento. Verifica-se a necessidade de controle das ciências naturais com o aporte das ciências culturais, examina-se as razões de regulação das pesquisas e as iniciativas nesse sentido, concluindo-se pela modernidade e responsabilidade da legislação já produzida, bem como pela adequabilidade de atribuir-se ao biodireito a tarefa de regular as práticas da biotecnologia, com aporte das reflexões oriundas da bioética.
2. O PROGRESSO DA CIÊNCIA E OS SEUS RISCOS
Em nossa época há um extraordinário progresso tecnológico capaz de desvendar o que até há pouco tempo se acreditava indecifrável, como ocorre no campo da genética, com a decodificação do genoma humano. Mas, em especial quanto às pesquisas biomédicas, cresce o debate acerca dos riscos e dos benefícios que as novas técnicas podem gerar para a pessoa humana.[4].Ainda que os riscos advindos das experiências científicas não sejam exclusivos da área biomédica, pela sua proximidade e pelo envolvimento direto com os seres desde o início, parece natural que, aliado às boas expectativas, ocorra uma maior preocupação das pessoas com o que se faz e com o que se pretende fazer neste campo do conhecimento.
2.1 - Biotecnologia, o aspecto regressivo das ciências e os princípios éticos.
O progresso das ciências, em especial na tecnologia biomédica, causa inquietações e levanta novos problemas éticos. A preocupação se justifica ante o caráter experimental da ciência que inclui etapas de construção de hipóteses, de testes laboratoriais e de experimentações, sabendo-se que a utilidade clínica dos resultados encontrados só pode ser confirmada pela experiência com seres humanos, o que sempre importa em risco para os participantes.[5].
Edgar Morin[6] alerta que apesar do hábito de associar o “progresso” às ideias de ordem e organização, a expressão comporta desordem e desorganização, como se dá com o princípio da termodinâmica em que há degradação de energia quando esta se transforma em calor, bem como a constatação de que o princípio de agitação, dispersão, degradação, desordem e, às vezes, de desorganização rege o universo físico. Quer dizer, progresso comporta o seu contrário, pois “observamos no universo físico duplo jogo, estando seu progresso na organização e na ordem ao mesmo tempo associado de forma perturbadora a ininterrupto processo de degradação e dispersão”.[7]. Ademais, nada é perene e “os subprodutos regressivos ou destrutivos de um progresso podem, em dado momento, tornar-se os produtos principais e aniquilar o progresso”.[8]
Então, ao lidar-se com o progresso deve-se considerar sua negação e sua degradação, o que reclama atitude reflexiva do estudioso.
Semelhante é a lição de Hans Jonas[9] para o qual a especificidade da nova tecnologia está no fato dela mostrar-se “quase escatológica”[10], constituindo-se numa empresa coletiva com suas próprias leis de movimento, cujo conteúdo substancial está nos bens e poderes que transfere, assim como nos objetivos e na conduta humana que acaba por estabelecer. Destaca o autor que a técnica moderna, essa que chamamos de tecnologia, difere da anterior por tratar-se de um empreendimento e um processo. Anteriormente a técnica era “uma posse e um estado”. Havia um equilíbrio entre fins conhecidos e meios adequados, enquanto o progresso significava avanços modestos e “tendia mais a perdas por descenso do que a inovações superadoras por novas criações”[11]. Não ocorria a ideia de um progresso contínuo e tampouco a deliberação de buscá-lo. Com a técnica moderna cada nova conquista, em lugar de levar ao equilíbrio, conduz a novas tentativas em direções diversas, o que leva à diluição dos objetivos. “A relação entre meios e fins neste campo não é linear em sentido único, senão circular, em sentido dialético” [12]. Aos objetos de necessidade humana, a tecnologia acrescenta outros objetos e estes, por sua vez, geram novas necessidades, inclusive a de criar novos objetos[13].
Essas reflexões são oportunas, pois permitem ver que o progresso do conhecimento comporta um aspecto regressivo e que a técnica moderna é marcada por um sistemático desequilíbrio gerando novos objetos, às vezes desnecessários, mas que, por sua vez, induzem novas “necessidades”. A decodificação do genoma humano abre perspectivas até então inimagináveis, como, por exemplo, a possibilidade, lembrada por Celeste Leite dos Santos Pereira Gomes, de se ter o “enfermo são”, pois diagnósticos genéticos poderão servir para catalogar indivíduos não enfermos, possibilitando a discriminação deles antes de qualquer manifestação do genótipo identificado[14].
Entretanto, há entendimentos, como é o de Maura Roberti [15], segundo os quais, as novas ferramentas da biotecnologia de par com a manipulação genética têm dado curso a especulações, exagerando-se os riscos que adviriam do conhecimento da formação do ser humano, chegando-se a visões apocalípticas que sugerem o fim da humanidade. Nessa compreensão, sempre que a ciência tenta demonstrar sua autonomia e a capacidade de desvendar a essência das coisas, ocorrem polêmicas, com envolvimento da ética, da moral e da religião. Para a autora, seria censurável a afirmativa de que “os cientistas estão brincando de serem Deus”, proclamada por “doutrinadores que não contestam o dogma da criação”, e não seria apropriada, por exemplo, a coação do direito penal manietando os operadores da biogenética. Mesmo assim, Maura Roberti admite o controle dos novos conhecimentos a fim de que sejam utilizados para o bem comum, acreditando que as novas técnicas servem ao homem e não se prestam ao seu extermínio. Deveríamos confiar que “a comunidade cientifica utilizará os novos conhecimentos genéticos para o bem da humanidade, aplicando as novas técnicas para a melhoria da qualidade de vida”[16]. De qualquer modo, a autora concorda com um “controle social formal das pesquisas cientificas” pautado em princípios éticos e aceita a premissa da necessidade de regulamentação das práticas cientificas, desde que orientada por uma “ética de mínimos” sendo os “mínimos universais” aqueles valores determinados pela razão através do diálogo. [17].Ora, é controverso que “a comunidade cientifica utilizará os novos conhecimentos genéticos para o bem da humanidade” e a história não ratifica essa afirmação. Por outro lado, o controle social pautado pela “ética dos mínimos universais” não oferece garantia suficiente do uso das pesquisas exclusivamente em prol da melhoria da qualidade de vida de toda a espécie humana. É oportuno verificar se há entrave injustificado ao desenvolvimento das pesquisas e ao progresso cientifico, mas, principalmente, é preciso questionar se a biotecnologia não estaria prometendo produtos desnecessários ao custo de riscos inaceitáveis para as próximas gerações. Enfim, deve ser ponderado se é possível superar as incertezas que a exacerbada manipulação da natureza e dos organismos, inclusive o humano, é capaz de promover, bem como se a ciência, governada apenas por sua metodologia, é capaz de limitar seus avanços e prevenir o risco de extermínio da vida tal qual a conhecemos.
2.2. O método científico e a autoridade das suas conclusões.
Parece insuficiente a proposta de autocontenção da prática cientifica, porque, enfim, a lógica que preside sua atuação é a da experimentação e da descoberta, com o agravante de que o conhecimento tornou-se anônimo, guardado em bancos de dados para uso de quem detém o poder, com “desapossamento cognitivo, não só entre os cidadãos, mas também entre os cientistas, eles próprios hiperespecializados, sem o domínio de todo o saber produzido”[18].
A ação humana é orientada pela razão que a projeta no “âmbito científico” onde as pesquisas devem ser acompanhadas da demonstração dos meios cogitados para alcançar certo objetivo. Por isso, a fiscalização das ciências se dá pela epistemologia que “possui um caráter prático/teórico”, porquanto examina as ciências de forma utilitária, isto é, “uma moral que verifica deontologicamente tudo o que se faz, procurando ver se há utilidade”, esclarecido que utilidade refere-se à manutenção de traços éticos da Razão e do agir que ela impulsiona. E é isto que estaria ocorrendo com a Bioética, especialmente quanto ao “Projeto Genoma”. Filosofamos sobre isso e quando o fazemos é sobre um saber cientifico que filosofamos, fazendo epistemologia, “avaliando moralmente a utilidade da decodificação genética do ser humano se não for para seu inegável bem”. Ora, essa epistemologia da vida é a Bioética, uma vez que “a ética que se integra ao saber biológico vem de fora dele próprio, repousando seus olhos sobre o que se está fazendo com a biologia”[19].
A experiência é “a exteriorização de um pensamento humano verificável na ação, para atingir certo conhecimento final, e que dela (da experiência) depende”. É preciso ouvir o que os filósofos têm a dizer sobre a experiência. O conhecimento científico se dá a partir de alguma atividade apta a estabelecer a certeza de que ele é conclusivo, atividade esta absolutamente vinculada ao método e à demonstração dos resultados. Pode, entretanto, ocorrer de chamar-se de científico o que é mera opinião, desenvolvida em obscuras investigações e os questionamentos acerca dessa possibilidade não vem das ciências, mas da filosofia, no campo da epistemologia[20].Ocorre que a experiência científica tem pretensão de repetição dos resultados. Por isso, a noção de experiência científica radica nas premissas das ciências naturais que possibilitam “um grau experimental muito mais autorizador de comprovações inequívocas”. Assim, a ciência moderna veio para universalizar verdades, dotando-se do “poder da indiscutibilidade”, o que faz método investigativo e verdade se confundirem, assumindo uma “aura sagrada” que se apossa do critério de verdade, com a força de uma totalidade ética.[21]Estaríamos diante da “tirania do racionalismo”. É necessário fazer a crítica dos pressupostos do que se entende por racional. Pois, é bem possível que o fundamento do racional se encontre em um “pressuposto empobrecido do que constitui a condição humana”. Deve-se questionar se certas intuições, como a de que o altruísmo é uma “capacidade humana central” e a de que o corpo é mais do que mera posse de um individuo, não estariam sendo descartadas a pretexto de não serem racionais para evitar a erosão das bases da teoria econômica e não impedir o progresso da tecnologia que tem a tendência de submeter todo o material biológico ao controle do mercado.[22]
Então, foge ao racional e ao consenso social essa pretensão de que os resultados da ciência são indiscutíveis, porque resultam da aplicação de um método racional de pesquisa e verificação. Não é coerente pretender que os fatos revelados ou provocados pelas pesquisas cientificas sejam imunes à valoração ética ou jurídica porque obedecida certa metodologia. Assim, é intuitivo que os limites para a manipulação genética terão de vir de outro campo do conhecimento, isto é do Direito, com o aporte das reflexões da Bioética.
2.3 - As leis físicas, as regras morais e a normatização jurídica
Por mais convincentes que mostrem os resultados das pesquisas cientificas, as leis físicas não se referem a valores, embora lei física e lei ética não se excluam, uma vez que a natureza está na base do mundo da cultura. A Ética não despreza o que é natural, mas o compreende com auxílio das ciências, para delinear seus fins [23].
A experiência é o ponto de partida das leis físicas e das leis éticas. Algumas ciências limitam-se a explicar os fenômenos e outras visam à compreensão teleológica dos mesmos. As que visam à compreensão teleológica levam à uma posição estimativa do espírito e, por conseguinte à formulação de normas. Já a lei física retrata os fatos, descrevendo-os, revelando nexos contidos no fato e a explicação não decorre de algo que se atribua ao sujeito, de algo atribuível ao “coeficiente de estimativa” individual ou coletivo. Diferentemente, na compreensão das ciências culturais, há envolvimento do fenômeno, há uma “penetração do objeto”, de modo a colocá-lo no sentido total para a existência humana, daí decorrendo leis gerais de tendências ou esquemas ideais tipificadores de ação ou “verdadeiras normas de condutas”. A Ética é uma ciência cultural-normativa e, por isso, exige-nos uma tomada de posição volitiva ante a ocorrência de um fato [24].
Logo, norma, e também a norma moral, é o resultado de um posicionamento ante os fatos. Quando aparece uma regra, há “medida estimativa do fato”. A norma cultural envolve o fato, valora-o, examina suas consequências, tutela seu conteúdo e pondera fato e valor. A lei ética, diferente da lei física, é a compreensão de um fato cultural segundo uma posição volitiva assumida, que tem por consequência juízos de valor dos quais decorrem responsabilidade e sanção. A compreensão da norma ética implica o conhecimento explicativo dos fatos que logicamente tem enlaces de causalidade ou de ordem funcional. Enfim, toda a ordem cultural tem fundamento na ordem natural. Os valores se revelam nas coisas e não como formas ontológicas puras. “De maneira que podemos dizer que a cultura é a natureza mesma transformada pelo homem, na medida em que essa transformação se harmoniza com o que há de específico no homem”[25].
Daí se vê que a norma jurídica e, assim, a norma ética, é, antes de qualquer coisa, uma tomada de posição perante o fato. Logo, é necessário que se examine objetivamente a realidade para entender seus elementos e seus processos, com auxílio das ciências não-normativas, porque enquanto as ciências especulativas enunciam leis e relações de causalidade, são as ciências normativas que decidem e prescrevem o fim que se quer alcançar. A técnica é, deste modo, o meio de alcançar fins e a Ética é que coloca necessariamente os fins de validade universal, instituindo deveres e sanções [26].
Não se pode, portanto, fazer concessão ao utilitarismo, pugnando por uma liberdade absoluta do cientista ao entendimento de que só lhe cumpriria formular hipóteses e verificá-las com rigor metodológico, conduzindo experiências sem qualquer limitação extra científica [27].