3. A REGULAÇÃO DAS PESQUISAS BIOMÉDICAS
Ora, se é fato que a biotecnologia se impôs, gerando expectativas de cura de doenças e de melhora da qualidade da vida humana, também é fato que persistem preocupações com questões éticas relacionadas às pesquisas e às práticas cientificas, como leciona Maria Claudia Crespo Brauner. As pesquisas no campo da genética prometem explicar diversas patologias relacionadas aos genes e acredita-se que permitirão eliminar doenças com essa origem, mas, intervenções na saúde humana, novas terapias e pesquisas genéticas, preocupam os indivíduos, causando uma pressão social pela produção de normas que garantam o acesso às novas terapias e medicamentos. Por isso, é necessário criar sistemas, regras e procedimentos que obriguem a uma conduta ética e assegurem equidade e justiça [28].
Mas, não é só o acesso às novas terapias e medicamentos que deve nos preocupar. Ainda Maria Claudia Crespo Brauner esclarece que os avanços da ciência podem realizar sonhos ou pesadelos, como na terapia celular que promete corrigir ou amenizar a doença e o envelhecimento, ao mesmo tempo em que traz o risco do condicionamento humano, da predeterminação da vida e da instrumentalização da espécie. Anuncia-se a terapia gênica com a qual se pretende suprimir doenças, corrigindo a predisposição genética dos indivíduos, entretanto essa terapia praticada em células germinativas tem sido vedada em muitos países porque seus efeitos se transmitem às futuras gerações. Contudo, alerta a professora, deter poder sobre o conhecimento leva à ampliação do poder sobre a humanidade, mostrando-se estratégica a partilha do biopoder entre os países, o que, com a aceitação social dos avanços da biotecnologia, em razão das promessas de cura, tornaria inaceitável cercear a liberdade de pesquisa e o progresso científico [29]. Entretanto, ainda que se pugne pela liberdade de pesquisa e pelo progresso cientifico, até em obediência à previsão constitucional, entendemos que é prudente estabelecer limites decorrentes do nosso entendimento da condição humana, visando proteger as próximas gerações. Deve, portanto, haver uma tomada de posição perante os fatos, a fim de “agregar-lhes algo extrínseco a eles, como fundamento em sua garantia social”, conforme lição de Miguel Reale, antes referida.
Nesse ponto, convém examinar as constatações de H. Tristram Engelhardt Jr. lembrando-nos que “as guerras culturais que fragmentam as reflexões bioéticas em campos sectários de contenda estão fundadas em uma diversidade moral insolúvel”[30]. Os desacordos vão além das questões especificas e evidenciam divergências nas visões de mundo, raiz de confrontos que permitem afirmar estar a condição humana marcada pela controvérsia moral. Não haveria possibilidade de solucionar as controvérsias que opõem as moralidades e suas bioéticas. Enfim, a bioética de nosso tempo pode ser definida não apenas por suas inevitáveis controvérsias, mas também pela falta de uma base de resolução das divergências por meio de argumentação racional lógica [31].
Ora, nesse contraditório contexto, é intuitivo que o Estado terá de intervir para assegurar o mínimo de segurança capaz de responder às preocupações da sociedade, dirimindo o aparente conflito entre liberdade de pesquisa e segurança dos seres humanos, ainda que lance mão de normas penais para assegurar uma moratória até a aquisição de elevada certeza quanto a procedimentos.
3.1 – O balizamento imposto pela dignidade da pessoa humana
Há certo consenso em torno do princípio da dignidade da pessoa humana no papel de baliza das pesquisas genéticas e da prática médica, o que pode proporcionar um denominador comum para solução das preocupações derivadas das pesquisas genéticas. Mesmo assim, não se ultrapassa a objeção de Engelhardt Jr. antes mencionada, uma vez que o próprio conceito de dignidade da pessoa humana é alvo de controvérsias, sendo oportuno verificar como ele pode ser aplicado para prevenir a prática de abusos nas pesquisas genéticas.
Não é destituída de sentido a assertiva de que não seria possível definir-se juridicamente a dignidade da pessoa humana. Como ensina Ingo Sarlet[32], querendo-se examinar os conteúdos e os significados da dignidade da pessoa humana, com ênfase na sua conformação jurídico-constitucional, não se pode desprezar algumas contribuições da Filosofia, uma vez que o reconhecimento e a proteção da dignidade humana pelo Direito decorrem da evolução do pensamento acerca do que é o ser humano. Mas, face à complexidade da pessoa humana e do meio no qual se desenvolve sua personalidade, resulta apropriado falar-se em dimensões da dignidade humana, adotando-se uma visão complexa e multidimensional dessa qualidade, o que é adequado à discussão dos casos concretos, em especial ao enfrentamento dos problemas evidenciados com a biotecnologia[33].
É reconhecida a dificuldade para conceituar-se a dignidade da pessoa humana, pois se trata de conceito vago, com elevada ambiguidade, acrescido da dificuldade de tratar-se de qualidade tida como intrínseca ao valor que distingue o ser humano dos demais seres vivos. É o que leva à recomendação de se verificar as dimensões ontológica, comunicativa e relacional, histórico-cultural, negativa e prestacional, bem como a fórmula minimalista para uma conceituação analítica possível da dignidade da pessoa humana, de modo a examinar-se a conclusão acerca de uma necessária secularização e universalização da dignidade num contexto multicultural[34].
Há uma dimensão comunicativa e relacional da dignidade da pessoa humana. Ainda que se afirme estar a dignidade ligada à condição humana de cada indivíduo, não se pode desconsiderar a sua dimensão social. Retoma-se então a noção kantiana, para destacar a dimensão intersubjetiva da dignidade, porque, enfim, é na esfera pública da comunidade da linguagem que o ser natural se faz indivíduo e pessoa humana [35].
Isto é, a dignidade não é apriorística, mas uma concretização histórico-cultural, o que leva à distinção entre dignidade humana, esta reconhecida aos seres humanos de qualquer condição, e dignidade da pessoa humana, concreta, condicionada pelo contexto de seu desenvolvimento social e moral. A dignidade também tem uma dimensão dupla, a negativa e a prestacional. É, ao mesmo tempo, a expressão da autonomia da pessoa humana e a exigência de ser protegida pela comunidade e pelo Estado, o que se impõe mesmo quando não há capacidade de autodeterminação da pessoa, situação em que lhe socorre o direito de ser tratado com dignidade.[36]Examinando a necessária secularização e universalização da dignidade num contexto multicultural, por uma concepção não “fundamentalista” da dignidade, pergunta-se até que ponto é possível colocar a dignidade acima das concepções culturais. Isto porque, não raro, as especificidades culturais servem para justificar atos que, na concepção da maior parte da humanidade, atentam contra a dignidade da pessoa humana. Ora, não há um conceito universal de dignidade e há quem entenda que cada sociedade civilizada tem seus próprios padrões para verificar o que constitui indignidade, impondo-se, por isso, um diálogo intercultural.[37]
Nesse embate, caberia ao direito superar a visão unilateral e reducionista, protegendo a dignidade de todas as pessoas em todos os lugares. Por isso, deve ser levada em conta cada uma das possíveis dimensões da dignidade, com repúdio a qualquer sectarismo e fundamentalismo.
Logo, quando se lida com a dignidade da pessoa humana, lida-se com conceito aberto, carregado de ambiguidade, capaz de assumir a forma que o pensamento hegemônico de um dado grupo social lhe quiser dar. Mas, não parece que o relativismo moral contribua para a solução do problema e parece que a abertura e a constante reelaboração do conceito se presta a um colonialismo cultural, bem como à justificativa de intervenções de potências mundiais nas sociedades em desenvolvimento. E, aqui, novamente, se impõe a conclusão de H. Tristram Engelhardt Jr. segundo a qual “as guerras culturais que fragmentam as reflexões bioéticas em campos sectários de contenda estão fundadas em uma diversidade moral insolúvel”.
Ainda assim, é o conceito de dignidade humana que mais se insinua como instrumento de equalização do debate em torno das pesquisas genéticas e da prática médica nesse campo de conhecimento, dando fundamento à legislação protetiva que é reclamada em razão das preocupações com o avanço das pesquisas genéticas.
3.2 – O princípio da precaução e a regulação da biotecnologia
Em complemento ao princípio da dignidade humana pode-se evocar o princípio da precaução que serviria para limitar a manipulação do genoma humano, estabelecendo para o pesquisador um dever de agir com cautela. O princípio da precaução obrigaria o pesquisador a ter uma sólida base cientifica, com fundamento em revisão bibliográfica médica, só autorizaria o procedimento após experimentos que indicassem o caminho seguro a trilhar e não autorizaria a manipulação do genoma humano a título de mera experiência, para simples verificação do funcionamento dos genes ou para descoberta de tratamentos terapêuticos de enfermidades genéticas e, assim, “o principio da precaução vem complementar o principio da dignidade da pessoa humana pois, também, determina que a intervenção no genoma humano só se justifica se levar ao pleno desenvolvimento da pessoa humana”[38].
Segundo Tiago Fensterseifer o princípio constitucional da precaução contido no art. 225, § 1º, incisos IV e V, da Constituição Federal, exerceria importante papel na tutela dos direitos à saúde e ao meio ambiente, abrindo caminho para uma nova racionalidade jurídica que vincularia a ação humana presente a resultados futuros. Com isso, diante da dúvida e da incerteza que preside a prática da biotecnologia no campo da genética ou dos novos medicamentos, impor-se-ia ao pesquisador a obrigação de agir com a responsabilidade e a cautela exigida pela relevância dos bens jurídicos ameaçados, tais como a vida, a saúde, a dignidade da pessoa humana das presente e futura gerações.[39]
Contudo, isto nos parece um tanto retórico. É certo que o princípio da precaução cumpre um importante papel na formulação das leis, justificando a imposição de limites às experiências científicas e as práticas médicas dominadas pela incerteza dos resultados. Também é certo que o princípio da precaução é argumento relevante nas decisões judiciais que visam proteger os bens jurídicos da vida, da saúde e da dignidade humana, coibindo o início ou a continuação de experiências que podem ter repercussão nas gerações presentes ou futuras e que não podem estabelecer previamente o exato resultado da intervenção pretendida. Mas, não parece eficaz a simples recomendação ao pesquisador de aplicação do princípio da precaução, estabelecendo que ele será o responsável pelos danos ou comprometimentos genéticos causados às atuais ou futuras gerações. A eventual modificação resultante da manipulação do genoma humano, depois de consumada, não pode ser simplesmente revertida, menos importando, então, a quem será atribuída a responsabilidade pelo resultado inesperado. Então, o que importa é que esse princípio seja ponderado em qualquer discussão para elaboração de leis e regulamentos com que se pretenda ordenar as pesquisas genéticas no País.
3.3 - A regulação das pesquisas genéticas
Num ponto há que se concordar com a visão de Maura Roberti[40] citada ao início deste ensaio. A princípio, não deveria o Direito Penal ser usado para controle das condutas dos pesquisadores, integrando o biodireito e disciplinando as pesquisas genéticas. Nem tanto por supor-se que a regulação orientada pela “ética dos mínimos” seja suficiente para segurança das experiências genéticas, mas, principalmente, porque essas pesquisas têm um aspecto estratégico, ocorrendo que sua vedação com a criminalização de condutas dos cientistas pode cercear o progresso científico e atrelar o País ao avanço de outros países, tornando-o de qualquer modo exposto aos mesmos riscos porque dependente de descobertas alheias.
Entretanto, novo dilema se apresenta. Ao afastar todo empecilho às experiências genéticas, autorizando-se a manipulação do genoma humano, sem restrição à origem dos pesquisadores, pode-se se estar abrindo espaço para a instalação de pesquisadores estrangeiros, ou nacionais financiados por laboratórios estrangeiros, decididos a implementar suas pesquisas sem qualquer vantagem estratégica para o nosso País, mas com risco para nossa população de onde fatalmente sairiam os sujeitos de pesquisa.
Observe-se que, conforme registram Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine [41], geralmente a responsabilidade pelas condições injustas do lugar em que se realizam pesquisas não pode ser atribuída aos pesquisadores ou aos seus patrocinadores, o que, todavia, não afasta o dever deles absterem-se de contribuir para o agravamento do quadro. Os pesquisadores não deveriam causar novas desigualdades nos países periféricos.
Também não devem tirar proveito da relativa incapacidade dos países de recursos limitados ou das populações vulneráveis para proteger seus próprios interesses, realizando uma pesquisa de baixo custo e evitando os complexos sistemas de regulação dos países industrializados com o proposito de desenvolver produtos para os mercados daqueles países. [42]
Mas, ante à possibilidade de tal cenário, não se pode falar em excesso de proteção quando o Estado lança mão de meios jurídicos, inclusive sanções penais, para controlar as pesquisas genéticas em seu território. É que sobressai a questão estratégica recomendando cautela com atividades que podem vulnerar os direitos fundamentais da população, não se podendo confiar apenas nas boas intenções sugeridas em estudos de Bioética.
Ora, pelo que foi até aqui examinado, mostra-se utópica a solução de aguardar a formulação de uma legislação internacional a ser universalmente acolhida porque neste campo exatamente é onde afloram as maiores e insolúveis discordâncias que levam às “guerras culturais que fragmentam as reflexões bioéticas em campos sectários de contenda”, de que nos fala H. Tristram Engelhardt Jr.Enquanto não se puder chegar ao consenso, e o consenso parece inalcançável, tanto persiste o interesse estratégico de desenvolver as pesquisas genéticas no País, quanto se impõe um dever do Estado de estabelecer limites à manipulação do genoma humano para o que não é suficiente o apelo a um controle social simplesmente pautado em princípios éticos nitidamente ambíguos.
Conforme destaca Ana Maria D’Avila Lopes:
No âmbito dos avanços alcançados graças ao Projeto Genoma Humano, deve o Estado não apenas se abster de violar os direitos fundamentais que suas aplicações possam desenvolver, mas também, e mais importante ainda, deve organizar e coordenar o exercício harmônico desses direitos fundamentais, impedindo que o interesse de alguém se sobreponha ao do outro.[43]
É oportuno examinar os argumentos de outra estudiosa, Selma Rodrigues Petterle[44], pugnando pelo direito à identidade genética, que classifica como um direito de personalidade situado no mesmo nível dos direitos à privacidade e à intimidade. O direito à identidade genética funcionaria como um direito de defesa, barrando atentados à identidade genética do ser humano. Daí decorre o direito das pessoas a não terem a identidade genética alterada por terapias gênicas, exceto em beneficio da própria saúde. Como conclui a autora, ainda que não se possa simplesmente proibir as terapias gênicas, persiste uma vedação jurídico-constitucional dirigida especialmente à engenharia genética sem finalidade terapêutica e à produção de híbridos e quimeras. Mas, a autora discorda da tipificação penal de todas as condutas lesivas, em resposta ao dever estatal de proteção dos direitos fundamentais, em especial da vida, da dignidade da pessoa humana e da identidade genética. Especificamente quanto a essa questão, afirma que a Lei de Biossegurança representa um avanço tão só quanto à proteção jurídico-penal da identidade genética por criminalizar a clonagem humana reprodutiva, perpetrando, contudo, uma insuficiência de proteção do direito à vida ao liberar embriões excedentes da fertilização in vitro para fins de terapia e uma insuficiência de proteção do direito à identidade genética por tipificar genericamente “engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano” ao passo que deveria ter se preocupado diretamente com os abusos da engenharia genética, isto é, com a fusão de gametas ou embriões da espécie humana com outra espécie, do mesmo modo que com a “hibridação genética”.
De qualquer modo, instrumentos internacionais de proteção à vida, à dignidade humana, ao meio ambiente e à diversidade biológica servem de orientação à criação das normas do Biodiereito. Assim, em nosso País, a Lei nº 11.105/2005, Lei de Biossegurança, permite a pesquisa e terapia a partir do uso de células-tronco obtidas de embriões excedentários e proíbe tanto a clonagem humana quanto a engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano e embrião humano, possibilitando a pesquisa em embriões congelados há três anos no mínimo ou considerados inviáveis, desde que autorizada pelos genitores. Não se pode negar que o País adotou uma legislação que se mostra sensata e que enfrenta os problemas da modernidade com cautela e reponsabilidade. [45]
Mesmo assim, em que pese a produção legislativa, tem sido impossível, por exemplo, controlar as clínicas de reprodução assistida. O Decreto nº 5.591/2005 estabeleceu condições para a pesquisa com células-tronco embrionárias, obrigando a aprovação dos projetos nos Comitês de Ética em Pesquisa, enquanto a Resolução da Diretoria Colegiada, RDC 33/2006, da ANVISA aprovou o Regulamento técnico para o funcionamento dos Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTG). Enfim, a edição destas normas administrativas, com fundamento na norma legal, supre em parte as insuficiências da legislação que foi possível editar, revelando uma preocupação do governo brasileiro em promover a pesquisa cientifica, com respeito aos valores éticos da sociedade.[46]
Afinal, pode-se afirmar que a legislação brasileira tem uma tendência de comprometimento com a transparência da ciência e com o controle social das técnicas e dos resultados, afastando as proibições e o conservadorismo que conduzem à práticas clandestinas, sem aderir à politica liberal de completa liberdade de atuar das empresas de biotecnologia, incentivadas pelo interesse econômico, isto é: “Quebra-se a política do ‘laissez-faire’ e instaura-se no País uma política comprometida com os interesses sociais, suscitada pelas possibilidades terapêuticas das novas biotecnologias”[47] e, o mais importante, respeita-se os direitos fundamentais com a oferta de instrumentos que fomentam a democracia social, superando o individualismo e a pura mercantilização da biotecnologia.
“Uma maior transparência dos procedimentos científicos, a participação da sociedade civil e a presença do poder publico devem contribuir para combater a visão competitiva e individualista da ciência na distribuição de seus benefícios”[48]