~~Vivemos tempos de extrema violência urbana (60 mil mortes brutais por ano), formação de cartéis do crime organizado e, evidentemente, de uma guerra civil sem precedentes; entretanto, o Estado responde de forma absolutamente inadequada: ao invés do social a repressão. Há uma lógica militarizada na origem da violência . Comandantes da Polícia Militar falam reiteradamente aos formandos que eles irão enfrentar uma guerra .
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 já trazia esse caminho. Vamos nos concentrar em três brechas que alimentam o modelo Bonapartista de Estado: submissão das polícias às Forças Armadas (art. 144, § 6º da CF/88) ; Estado Penal (art. 5º, XLIII da CF/88) ; Estado de Sítio (art. 137 CF/88) .
O assim chamado modelo Bonapartista condensa uma forma política de gerir o Estado com o uso/abusivo de forças ideológicas e repressoras, alimenta-se da fragilidade cultural e política de determinadas classes sociais subordinadas. Arvora-se como República ou democracia representativa, mas manobra grupos sociais para desorientar opositores (utiliza-se de mercenários), bem como desconhece na prática a separação republicana dos poderes constitucionais. Em determinados casos, a separação de poderes até existe como definição constitucional; porém, pode ser revogada assim que o super-presidencialismo requisitar forças auxiliares para a contenção ou regulação do sistema, como se destacou na Constituição de Weimar, em seu art. 48 – a manipulação do poder constitucional conferiu poderes de Kaiserpresident ao Füher.
O modelo Bonapartista de Estado surgiu como resposta de força às mobilizações populares na França de 1848. O pensador alemão Karl Marx detalhou o modelo de ação política desta forma-Estado no livro intitulado O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em 1852. Naquele contexto, via-se o incremento de todas as forças de exceção político-constitucional sendo colocadas a postos, a fim de garantir o poder central e a ordem do capital desumano.
Como poderio militar-constitucional, o bonapartismo se coloca acima das frações de classe dominantes, isto é, acima dos interesses dos grupos políticos que estão ou que lutam pelo poder. Surge, então, como “saída milagrosa” de um poder absolutista, quando os grupos dominantes não conseguem chegar a um acordo e abrem espaço para a penetração das classes subalternas.
Na atualidade, os EUA revogaram a Lei Posse Comitatus, a lei que, desde a guerra civil, proibia o uso de força militar em solo estadunidense. Já em sua origem, os fundadores dos EUA não previram a divisão dos poderes e o controle do Executivo. De certo modo, o que o criador do liberalismo político John Locke assegurou como divisão e, acima disso, controle dos poderes – no livro Segundo Tratado Sobre o Governo Civil –, foi desfeito no curso seguinte da história.
Em nosso caso, a CF/88 ainda nos assombra com a possibilidade de se revogar a democracia formal? É simples o caminho: funciona como ameaças constantes e, portanto, como recursos jurídicos da “última razão dos reis” (o uso da força para conter a política). Tudo isso vem sendo pensado desde 2012, por causa da insatisfação popular. Mas, é possível ser mais didático.
Primeiro: em condição de latência, sem a emergência de Estado de Justiça (autoritário), a lei de crimes hediondos reforça toda a trajetória imposta pela constante criminalização das relações sociais. Este é o chamamento do Estado Penal, com o crescimento exponencial dos tipos penais (novos crimes), endurecimento de penas, aprisionamento em massa, segregação racial, cultural e econômica dos apenados, privatização do sistema prisional. Sem desconsiderar a condição de masmorras medievais em que se encontra a grande maioria dos presídios, em que facções criminosas rivais disputam o poder e o controle da funcionalidade do sistema .
Segundo: para o caso de falhar o Estado Penal. Se as Forças Armadas têm nas polícias uma “força de reserva”, implica em dizer que, se e quando a Razão de Estado julgar necessário, como em caso de comoção social, as Forças Armadas terão função política determinante. As polícias poderão atuar, sob a vigência do Estado de Direito, como força reserva de coerção política. Bem como as polícias serão auxiliares, ou seja, atuarão não apenas como controle social, mas, sobretudo, como repressão política.
Apenas a Polícia Militar de São Paulo tem um contingente de homens semelhante ao das Forças Armadas. O que, em si, já bastaria para explicar a proibição do porte de fuzis. É uma das poucas polícias do Brasil que não tem fuzis e o motivo, é óbvio, reflete a falta de segurança no controle político do próprio efetivo policial. A Revolução Constitucionalista de 1932 ainda paira nas cabeças pensantes.
Terceiro: a última reserva de força descomunal – definitivamente, institucionalmente, constitucionalmente – antecipa-se ao momento em que política se contorna em caso de polícia. Trata-se da possibilidade trazida/imposta pela previsão do Estado de Sítio. Se todas as outras formas de contenção política falharem, se os políticos profissionais não mais reunirem forças para conter a insatisfação popular (como já anunciada em 2012), nem puderem prender todos os “inimigos combatentes” do establishment, entrará em vigor a plenitude do Estado de Exceção. Ou seja, muito mais do que resquícios constitucionais da ditadura, vigoram no seio da Constituição Federal de 1988 todas as possibilidades requeridas pelo Estado de Exceção.
Vinício Carrilho Martinez
Professor da Universidade Federal de São Carlos
Marcos Del Roio
Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP/Marília