Liberdade, autonomia e religião
Qualquer devoto ou fariseu que insista na defesa de que o Estado deve assumir uma política que possa implicar no desprezo da tolerância ou no desconhecimento do pleno, inalienável e incondicional direito dos indivíduos a assumir por si mesmos crenças e valores diferentes, é um perigo de excepcional perversidade para o exercício pleno da liberdade e autonomia cidadã. Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e se converte, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em costume ou tradição obrigatória para todos os cidadãos, está servida a mesa para a incompreensão, o fanatismo, a subjugação e a intromissão arbitrária e despótica em nossa individualidade.
Dito de forma um pouco grossa: se arrancamos o misticismo, as abstrações da intrincada teologia e o dogmatismo religioso, obteremos uma postura humanista fundada na “criatura”, no ser humano “desenhado” para a cooperação, o diálogo e a argumentação, na capacidade de qualquer para buscar o próprio bem e formular os projetos de vida que melhor se adapte ao seu temperamento e caráter, na possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência, na liberdade para fazer o que gostamos sem impedimento por parte de nossos congêneres e sempre que nosso comportamento não lhes cause nenhum dano; na liberdade, enfim, para sermos felizes ainda que pensem que nossa conduta é “estúpida, perversa ou equivocada.” (John Stuart Mill).
Nada obstante, a religião, especialmente a católica como produto de uma pomposa e orgulhosa incivilidade que envenena, é algo muito distinto. A única garantia de uma contínua colaboração entre os seres humanos é uma boa disposição para modificar nossas idéias (e o comportamento resultante) por meio do diálogo e dos legítimos argumentos, à luz das evidências e das “boas e sólidas razões” (B. Spinoza)28. Se eu creio no fatalismo divino e me conformo com a infalibilidade papal, então nada do que diga outra pessoa logrará persuadir-me, porque me encontro entregado a uma fé que me faz imune ao poder do diálogo e da deliberação sobre o bem comum, deixando de lado as diferenças particulares. Em realidade, a sacralização de um conjunto de normas, costumes e símbolos é uma extraordinária fonte de poder e o modo mais eficaz de cortar pela raiz ou borrar por completo “de bajo los cielos” (Éxodo 17:14) o diálogo, a liberdade e a autonomia individual.
E se admitimos como boa a afirmação anterior e nos aprofundamos um pouco mais, chegamos a uma cadeia causal segundo a qual a liberdade consiste precisamente no fato de que o homem é livre quando dispõe da capacidade de tomar em suas mãos seu próprio obrar, suas convicções (filosóficas e religiosas) e seus planos de vida. Somos nós que temos que escolher e decidir nosso destino, partindo já de umas tendências e intuições inatas, baixo a orientação (a virtude e a obrigação moral) do bom conhecimento e o poder da boa razão (e das boas emoções) para superar os prejuízos mais comuns e o sistema de crenças “en el que jamás escogimos creer”29. A liberdade de eleger e decidir nos abre um amplo campo de possibilidades e objetivos que cada um de nós deve pôr em prática de acordo com seu modo peculiar de ser e suas circunstâncias.
Eleger e decidir livremente sobre nossos planos de vida implica a liberação de tudo aquilo que nos escraviza: ser livre é ir liberando-se pouco a pouco daquelas amarras que não permitem ter um domínio ou controle pleno sobre si mesmo. O interesse humano pela verdadeira liberdade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da laicidade, em um convite a viver dignamente nossa existência na construção e eleição conjunta de alternativas reais e factíveis que priorizem nossa inalheável e inata capacidade moral para decidir o que é bom e o que é mau.
Para existir como indivíduo é, pois, e ao menos, necessária a garantia plena da liberdade; é necessário não ser condicionado, domesticado e/ou perseguido por interesses ou crenças religiosas degeneradas e, principalmente, não ser tratado como um instrumento, uma “ovelha”, “cordeiro” ou “servo” do Senhor, senão como um fim em si mesmo. A liberdade é o contrário da servidão: é livre quem não pode ser arbitrariamente interferido por outros em seus planos de vida (não somente por parte do Estado senão também de todos os demais agentes sociais ou espirituais, reais ou imaginários).
Esta não interferência arbitrária, característica de nossas democracias, é um dos princípios fundamentais e valor incondicional que deve ser utilizado de forma categórica para a garantia dos direitos constitutivos do homem no âmbito de sua vontade soberana (pessoalmente, prefiro falar de “vontade”, porque a evidência aponta que o livre-arbítrio é uma ilusão) e que habilitam publicamente sua existência como “in-divíduo”: definitivamente, a liberdade de governar a própria vida é condição necessária da individualidade, de um existir separado e autônomo.
Sobretudo em tema de crenças religiosas, o que realmente conta, no concernente à liberdade de consciência ou pensamento, é a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos, eleições e decisões; de se, com independência de qualquer dever ou dogma religioso, são motivos, eleições e decisões que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. Somente aos indivíduos que abraçam uma existência de cidadãos plenamente livres lhes é dado julgar essas circunstâncias, e não à caterva arrogante de sacerdotes empenhados em decidir por eles. A vida, a liberdade e a formação virtuosa do caráter é algo demasiado importante como para deixá-lo à contingência de uma sinistra, retorcida e perniciosa manipulação eclesiástica de determinadas crenças, imperativos, mitos e símbolos religiosos.30
Para resumir de alguma maneira mais desafetada: nenhum livro sagrado, nenhum deus (es), mandado, imagem ou ideologia religiosa, nenhum, pode valer mais que a vida e a liberdade de um só ser humano, do indivíduo de carne e osso, da “criatura” com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, amar, mirar e sofrer. É absoluta a antítese entre liberdade e servilismo religioso.
Evolução, religião e fé
Por todo o dito, resta ainda uma última reflexão. Se a seleção natural “apaga” os genes mais prejudiciais e ativa os mais favoráveis, por que existem os eclesiásticos? Se, através da evolução e da cultura, o animal humano melhorou a qualidade de sua vida, ampliou o alcance de sua inteligência e conseguiu dotar-se de uma consciência ética que lhe impulsa a amar a seus semelhantes, a respeitar suas vidas e suas liberdades, e que lhe reprocha intimamente, insuportavelmente, suas misérias e sua capacidade para o mal, como é que não se desembaraçou dos clérigos?
Que função evolutiva pode ter uma Igreja que, por intermédio de seus entusiasmados vicários e intérpretes de uns deuses atávicos, condenou aqueles que se arriscaram a pensar por sua conta e a viver de acordo com sua natureza e crenças, acendeu fogueiras e queimou hereges e bruxas, se manteve omissa e tolerante com as selvajarias perpetradas por Hitler e por Mussolini, fomenta a intolerância, a discriminação e se mostra inimiga da verdade, atua como freio ao crescimento moral e humanístico, encarniça a autonomia individual, amordaça a palavra e condena a liberdade da alma ao castigo eterno do inferno, restringe a liberdade de expressão, prega a homofobia e a misoginia31, protege a pedofilia e reprime as demais religiões donde manda e exige liberdade de culto donde não manda?
Por que sobrevivem seres que desafiam toda a moral e são capazes de enganar a sabendas aos mais débeis e desvalidos dos humanos? Por que persistem seres que enganam aos demais atribuindo vontade e sentido a símbolos e objetos inanimados, inventam demônios e deuses em que temos que crer, adorar, dar vida própria e independente, e atribuem a entidades sobrenaturais controle e poder sobre nós mesmos, seus únicos criadores? Por que se embarca a gente rapidamente em crenças e posturas normativamente “corretas” e onde os anelos de unanimidade coletiva superam sua motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas? Suponho que somente desde Darwin32 parece possível explicar a existência de tais criaturas: provavelmente devem ser vestígios, um “resíduo evolutivo”, de nossos antepassados os répteis.
É um colossal e soberano equívoco conceder a petição de princípio de que a moral é monopólio da Igreja. Ao contrário, quiçá a maior tragédia “en toda la historia de la humanidad puede haber sido [precisamente] el secuestro de la moralidad por parte de la religión” (A. C. Clarke). À parte disso, a religião33 e a “loucura” da fé constituem uma das principais causas do potencial para o dogmatismo, o fanatismo, a intolerância e o mal: servem para dividir e criar diferenças humanas e se convertem facilmente em perigosas porque carregam consigo, quase inevitavelmente, “la semilla del conflicto” e a crença de que fim justifica os meios (“salvo en los casos en que no se alcancen los fines, por lo que entonces se echará toda la culpa a los medios”)34. Se estás lutando pelo bem absoluto, ou por Deus, tudo está justificado, e qualquer que se oponha a isso demonstra sem nenhum gênero de dúvidas que é um malvado, porque, quem pode opor-se à utopia, ao bem absoluto, a Deus, senão os malvados puros?
À custa da religião e da “fé” miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. E aqueles “outros” que não pensam como nós dizemos que não estão no mundo real, quando o que queremos dizer é que não habitam nosso modelo do mundo, que não compartem nossa visão ou crença de como são as coisas. Como estamos cegamente convencidos de que não há mais que um Deus verdadeiro, uma única maneira correta de ver a realidade - a saber, por meio dos caprichos de nossa “fé” – e totalmente persuadidos de saber o que é a “verdade” (até o ponto de fazer inecessária toda comprovação ulterior), alçamos a mirada desdenhosa por encima dos demais sem ver a umbrática superfície sobre a qual caminhamos.
Linda Skitka, por exemplo, encontra que quando a gente tem fortes sentimentos morais acerca de um assunto se salta as normas, as pessoas e os procedimentos, e querem que os “bons” se livrem de tudo e os “maus” paguem por tudo. E logo vem o autoengano maior, “que todo lo abarca: somos la medida de lo que es bueno, representamos lo mejor, profesamos la verdadera religión y, en tanto creyentes, somos superiores a todos los que nos rodean. (Estamos “salvados”; ellos no). Nuestra religión promueve el amor y el cuidado por el mundo entero, nuestro Dios es un Dios justo, de modo que nuestras acciones no pueden ser malas porque las realizamos en nombre de Dios” (R. Trivers).
Simplificando, o certo é que miramos através da lente deformante de nosso evolucionado cérebro: não vemos mundo que é, vemos o mundo que somos; somos uma idiossincrasia com patas movida pelas distorções que alteram a percepção da realidade de maneira sistemática (consciente ou inconscientemente) para atender aos nossos interesses e desejos35. O problema é que “quando a única ferramenta que possuímos é um martelo, tendemos a tratar cada problema como se fora um cravo” (A. Maslow).
Em questão de deuses, crenças, fé, símbolos... só há opiniões, pontos de vista, formas de ver as coisas entre as várias possíveis.36
Sacrificium intellegentiae e indignação ativa
Em nosso particular mundo perfeito, aquele em que as pessoas se comportam de maneira congruente com nossos interesses e em que os recursos físicos e biológicos estão controlados, falar de religião dispara em seguida todos os alarmes e paranóias. Como a maioria das verdades amargas, não reporta muita simpatia que nos recordem a falsidade de nosso mundo, que temos uma imagem do mundo (crenças, pensamentos, preferências, memória, etc.) distorcida e construída de uma percepção distorcida e construída37, todas contextuais e ao serviço da narrativa baixo a qual está operando nosso cérebro. O nosso é o mundo verdadeiro; desquiciados, falsos, ilusórios, excêntricos, profanos, disparatados ou ao menos estúpidos são os mundos dos “outros”.
Mas, quando os fatos ou alguém viola nossas expectativas de idiossincrásica normalidade, quando nossa magnanimidade choca com a realidade, a realidade costuma sair ganhando. E dado que a religião e a fé (especialmente a católica) partem do duplo assassinato da inteligência e da vontade, o que estamos “obrigados” a fazer é simplesmente não “quedarse encogido en un rincón oscuro esperando pacíficamente el momento de morirse”(Diderot) e, ao estilo de Goya, duvidar e refutar os discursos, os fetiches e as crenças de mentalidade medieval que insistem em questionar, atacar e censurar o laicismo, a liberdade e a autonomia desde suas intransigentes posições aferradas à “fé cega” e com os caprichos que lhes atribui os símbolos e as disparatadas mitologias predicadas pela religião.
Na mesma medida, tratar de apartar de uma vez por todas o irracional, o transcendente, o inadmissível, o inverossímil e o indemonstrável (precisamente porque é indemonstrável) e deixar que o âmbito do público volte a ser um espaço criativo, livre de religiões, incapaz de impor a ninguém as obrigações opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a promessa, moralmente repugnante, de alívio ao sofrimento, de resignada aceitação da miséria humana e salvação eterna. 38
E se, depois de tudo, nenhum desses esforços for suficiente para mover nem um milímetro a opinião daqueles que teimam em permanecer “ad absurdum et ad nauseam” no obscuro reino das ideias e símbolos delirantes, esperar ao menos que os problemas de comunicação com o Espírito Santo se dissipem e que este “pássaro sedutor” intervenha junto a essas almas que sofrem (não, evidentemente, com a mesma intenção e objetivo com que apareceu à entregada Virgem) para que se disponham a mirar com alguma virtuosidade a pulcritude e os benefícios que o laicismo e a liberdade representam para o pleno e secular exercício da verdadeira cidadania... E “Livre-nos do mal”.