A preocupação em proteger o meio ambiente é bastante atual, mas não é recente. Há muito se fala em preservar a natureza, conservar o solo, garantir a sobrevivência dos animais etc. No entanto, nos últimos tempos, essa preocupação tem crescido significativamente, trazendo à tona temas já conhecidos da população em geral, como efeito estufa, buracos na camada de ozônio, extinção de animais, entre outros, além de temas com os quais a grande massa ainda não está familiarizada, quais sejam preservação de reservas biológicas, biodiversidade, desenvolvimento sustentável etc.
A relevância conferida ao meio ambiente é tal que, em 1988, sua tutela foi elevada ao nível constitucional, estando expressa no art. 225 da Carta Magna — "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Ademais, no inciso VI do § 1º do citado artigo da Lei Maior, observa-se a grande preocupação com a prevenção de lesões ao meio ambiente, onde fica estabelecido como dever do Poder Público a promoção da "educação ambiental em todos os níveis de ensino".
O Direito Ambiental pátrio é norteado por diversos princípios que lhe são peculiares, dos quais se extrai o desiderato teleológico de realizar-se mais efetiva a tutela do bem jurídico a que lhe compete dar amparo. Dentre os vários preceitos fundamentais de ordem deôntica que impregnam essa divisão didática do Direito, os que mais se destacam, sem dúvida, são os princípios da prevenção e o da precaução. Sem embargo às discussões acerca da autonomia desses dois princípios no ordenamento jurídico-ambiental brasileiro, passamos a sobre eles tecer breves considerações. O primeiro deles — o princípio da prevenção —, segundo o insigne ambientalista Édis Milaré, "é basilar em Direito Ambiental, concernindo à prioridade que deve ser dada às medidas que evitem o nascimento de atentados ao ambiente, de molde a reduzir ou eliminar as causas de ações suscetíveis de alterar sua qualidade" (1). Diz ainda o ilustrado jurista que
"tem razão Ramón Martin Mateo quando afirma que os objetivos do Direito Ambiental são fundamentalmente preventivos. Sua atenção está voltada para o momento anterior à consumação do dano — o do mero risco. Ou seja, diante da pouca valia da simples reparação, sempre incerta e, quando possível, excessivamente onerosa, a prevenção é a melhor, quando não a única, solução" (2).
Com referência, agora, ao segundo preceito mencionado — o princípio da precaução —, Paulo Affonso Leme Machado aduz que
"a precaução age no presente para não se ter que chorar no futuro. A precaução não só deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo incerto, que possa resultar das ações ou omissões humanas, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo" (3).
Ainda sobre este último princípio, Álvaro Luiz Valery Mirra nos ensina que
"a partir do momento em que o princípio da precaução é reconhecido como parte integrante do nosso ordenamento jurídico, entre os princípios gerais do direito ambiental, não resta dúvida que ele exerce influência sobre a interpretação e aplicação de todas as normas do sistema jurídico ambiental em vigor, com repercussões diretas, evidentemente, na aplicação judicial do direito ambiental" (4).
Prossegue este eminente autor, concluindo que
"a partir da consagração do princípio da precaução, é bem de ver, não pode mais haver dúvidas de que o direito ambiental no Brasil é o direito da prudência, é o direito da vigilância no que se refere à degradação da qualidade ambiental e não do direito da tolerância com as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Esse enfoque que deve prevalecer em toda atividade de aplicação do direito nessa área, inclusive na esfera judicial" (5).
Assim, a aplicação dos dispositivos de Direito Ambiental deve ser direcionada sob a observância dos princípios que lhe são próprios, tendo em vista todo o espírito que envolve esse ramo do Direito para a efetiva satisfação dos fins que as normas ambientais objetivam.
Por outro lado, a aplicação de penas mais severas e, principalmente, a certeza do alcance pela sanção penal — assim reforçando o caráter exemplar que possui a sanctio juris — tem-se demonstrado mais eficiente na coação aos danos ambientais, que são, na verdade, atentados contra o próprio ser humano. Com efeito, a proteção penal ao meio ambiente foi inaugurada pelo Código Criminal de 1830, o qual tipificava algumas condutas, e.g., o corte ilegal de madeira. Posteriormente, já durante a República, foi editado o Código Florestal, instituído pelo Decreto 23.793/34, que dividiu as condutas atentatórias ao meio ambiente em crimes e contravenções. Todavia, em 1940, com o advento do atual Código Penal, apenas os fatos nele inclusos passaram a ser considerados crimes, restando ao Código Florestal dispor sobre contravenções. A partir daí, diversas leis esparsas referentes ao meio ambiente passaram a trazer disposições penais como o Decreto 5.894/43 (Código de Caça), a Lei 4.771/65 (Código Florestal), a Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna) e Decreto-lei 221/67 (Código de Pesca). Finalmente, em 12/2/1988, a Lei 7.653 reclassificou as contravenções da Lei de Proteção à Fauna como crimes, devido ao clamor público criado pela intensa destruição dos jacarés do Pantanal Sul-mato-grossense que ocorria na época. Finalmente, em 12 de fevereiro de 1998, a proteção ambiental idealizada na Eco’92, expressada na Carta do Rio de Janeiro, foi instituída pela Lei 9.605/98, que elencou um rol mais abrangente de condutas típicas, a elas aplicando sanções mais severas.
Dessarte, a Lei 9.605/98 transformou simples contravenções em crimes, estabeleceu um elenco de rígidas penas aplicáveis aos crimes contra o meio ambiente, concedeu ao magistrado uma faculdade deveras ampla para aplicar multas, cumulativamente ou não às penas restritivas de liberdade, entre outras medidas. Todavia, esse diploma legal surge em um momento histórico no qual também toma vulto uma nova tendência dentro das ciências criminais, o chamado Direito Penal Mínimo. Entre os defensores dessa nova tendência de política criminal, destaca-se eminente penalista Cezar Roberto Bitencourt, em suas lições ressaltando que "o princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico" (6).
Com efeito, poder-se-ia até dizer que criar novos tipos penais, impor sanções tão rígidas a condutas reprimíveis, em tese, com simples medidas administrativas, em meio a uma época onde se busca evitar a sanção penal e limitar a esfera de autuação do ius puniendi estatal, para assim afastar do cárcere os delinqüentes de menor potencial ofensivo, é andar na contramão da história evolutiva do direito penal moderno.
No entanto, para se reconhecer a aplicabilidade dessa nova vertente em matéria de ciência criminal, de plano faz-se necessário definir qual o objeto jurídico tutelado pela norma penal. Nesse propósito, conforme ensina a doutrina, "podemos dizer que o bem jurídico protegido [nos crimes ambientais] é o meio ambiente em toda sua amplitude, na abrangência do conjunto" (7). Maurício Libster especifica ainda mais o bem jurídico ambiental como sendo aquele "pertencente à categoria dos bens jurídicos coletivos, já que afeta a comunidade como tal, seja de forma direta ou indireta, mediata ou imediata. É um bem jurídico de todos e está estreitamente vinculado às necessidades dos sujeitos, como a vida, a saúde, a segurança e ainda a recreação..." (8).
Em nova remissão ao Texto Constitucional, vemos que a própria Carta Política de 1988 invoca a tutela penal para as infrações ambientais, quando no art. 225, § 3.º, estabelece que "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais". Não obstante os valiosos avanços que já foram e serão obtidos com a aplicação do Direito Penal Mínimo, reputado como meio mais próximo da função ressocializadora da pena e de desafogamento — até certo ponto — do Poder Judiciário e do sistema carcerário, temos que sua aplicação demonstra-se imprópria aos casos de crimes contra o meio ambiente, haja vista que "os danos [ambientais] são de conseqüências graves e nem sempre conhecidas e a preservação é um dever a ser levado com o máximo empenho e seriedade" (9).
Nesse passo, cingindo-se agora ao crime de pesca, temos em novembro de 1988 o advento da Lei 7.679, que promoveu um grande retrocesso quanto à tutela da fauna ictiológica no Brasil, descriminalizando certas condutas. Porém, dez anos depois, a legislação ordinária voltou a sancionar a pesca irregular e predatória, tipificando-a nos artigos 34 a 36 da Lei 9.605/98, in verbis:
"Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente:
Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem:
I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos;
II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos;
III - transporta, comercializa, beneficia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas.
Art. 35. Pescar mediante a utilização de:
I - explosivos ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante;
II - substâncias tóxicas, ou outro meio proibido pela autoridade competente:
Pena - reclusão de um ano a cinco anos.
Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas oficiais da fauna e da flora."
Analisando-se o bem jurídico tutelado pelos tipos dos artigos 34, 35 e 36, da Lei 9.605/98, vê-se que não estamos diante de uma conduta tipificada tão-somente para resguardar o período de desova dos peixes, ou o local onde a pesca seja proibida, ou uma determinada espécie em extinção, mas com o fim de salvaguardar interesses muito maiores, pois se trata de proteção a toda fauna aquática, cuja importância atinge tanto aspectos econômicos quanto ambientais propriamente ditos. Destarte, resta justificada a norma criminalizadora, pois o
"emprego de sanções penais para a proteção do meio ambiente em determinadas ocasiões tem-se revelado como indispensável, não só em função da própria relevância dos bens protegidos e da gravidade das condutas a perseguir (o que seria natural), senão também pela maior eficácia dissuasória que a sanção penal possui" (10).
Superada a questão da relevância do bem jurídico tutelado — no que concerne à inconveniência da aplicação do Direito Penal Mínimo às questões penais-ambientais —, impende ainda ressaltar o fato de a Lei 9.605/98 ser um estatuto normativo recente, o que tem feito surgirem algumas dúvidas acerca da aplicação de certos dispositivos, principalmente quando não existe jurisprudência sobre o tema e a doutrina escusa-se em enfrentá-lo com mais vagar. Um exemplo claro disso é o crime de pesca durante período ou em local proibidos, quando da sua prática não resulta a apreensão de qualquer espécime íctia. É o caso de crime de "pesca sem peixe".
Poder-se-ia entender, ab initio, que seria um caso de aplicação do Princípio da Insignificância, haja vista que não houve, em tese, lesão ao meio ambiente. Destarte, sem discutir a natureza do crime, estaria resolvida a questão. Todavia, entendemos não ser essa a posição de melhor alvitre. O Princípio da Insignificância, "que se revela por inteiro pela sua própria denominação", é aquele pelo qual o "direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai onde seja necessário para a proteção do bem jurídico tutelado. Não deve ocupar-se de bagatelas" (11).
Novamente, como na questão referente ao Direito Penal Mínimo, deve-se recorrer ao bem jurídico tutelado para definir se essa regra é aplicável ou não ao caso em questão. Como bem ensina Francisco de Assis Toledo, o que determinará se a sanção penal é necessária ou não é a "(in)significância" do bem protegido, qual seja, o meio ambiente como um todo, no caso dos crimes ambientais (Lei 9.605/98). Assim, face à relevância da proteção ao meio ambiente, existe lesão contra ele que seja insignificante? É possível classificar dessa forma qualquer ato que lese algo tão grandioso e importante como o meio ambiente?
De fato, não deve haver confusão — em termos de aplicação do Princípio da Insignificância — entre relevância do bem jurídico tutelado e ofensividade da conduta, ou ainda, entre aquela e o grau de exposição do bem. Não há de se falar, por exemplo, em aplicação desse princípio quando se está diante de crimes contra a vida. Nesse caso, a magnitude do bem tutelado — o maior deles, a vida — de nenhum modo autoriza o emprego desse preceito de política criminal, mesmo quando o agente — não obstante estar investido do animus necandi — tenha desferido golpes ou disparado tiros que, por sua inaptidão ou qualquer outro fator externo, em momento algum tenha colocado em risco a vida do sujeito passivo. Mesmo que o grau de exposição tenha sido pequeno ou mínimo, aplica-se a tentativa, mas não a bagatela.
Em sentido contrário, no que concerne aos crimes contra o patrimônio, até como forma de corrigir as freqüentes violações ao princípio da proporcionalidade existentes no Código Penal, pode ser aplicada a insignificância quando o grau da lesão não é tão proeminente, quando não há grande exposição do bem, visto que o bem jurídico tutelado, mesmo sendo penalmente protegido, não é axiologicamente tão relevante frente a outros merecedores de tutela penal. Por conseguinte, forçoso concluir que a análise acerca da aplicação do Princípio da Insignificância passa por duas fases bastante distintas. Primeiramente, considera-se a relevância do bem jurídico tutelado pela norma penal, a qual, sendo pequena, autorizará a aplicação, in abstracto, do ora referido princípio. Em seguida, passa-se à análise do grau de ofensividade da conduta (ou de exposição do bem jurídico), o que definirá, in concreto, a possibilidade de aplicação do princípio da bagatela. Portanto, quando se está diante de bens jurídicos de tamanha importância como a vida e o próprio meio ambiente, não há falar em Princípio da Insignificância, seja de forma abstrata ou, menos ainda, de forma concreta. Dessarte, temos que em matéria ambiental não se chega nem mesmo à "segunda fase" aqui preconizada, i.e., à análise do grau de ofensividade da conduta.
De fato, diante da impossibilidade em se medir as conseqüências de abater um animal ou despejar substâncias poluentes em um riacho para o equilíbrio ecológico da região, é difícil imaginar um delito que tenha característica "insignificante", que não exija do Estado uma rígida repressão, feita através da sanção penal. Atribuir esse adjetivo aos crimes que "lesam pouco a natureza" é considerar insignificante o próprio objeto jurídico da norma em análise, i.e., o próprio meio ambiente. Por fim, vale salientar, novamente, a lição dos irmãos Passos de Freitas, para quem "o reconhecimento do Princípio da Insignificância deverá ser reservado para hipóteses excepcionais, principalmente pelo fato de que as penas previstas na Lei 9.605/98 são leves e admitem transação ou suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, arts. 76 e 89)" (12).
De outro vértice, a existência ou não de lesão efetiva ao meio ambiente não é o ponto determinante na aplicação da sanção penal, pois a conduta típica descrita no caput do artigo 34 da Lei 9.605/98, salvo melhor juízo, refere-se a crime formal. O citado dispositivo legal descreve o tipo em questão como "Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente". O núcleo do tipo é o verbo "pescar", definido pelo artigo 36 do mesmo estatuto como "todo ato tendente a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios...". Data maxima venia dos entendimentos contrários, em razão da própria existência de uma definição da conduta, expressa no mencionado art. 36, temos aqui um exemplo claro de crime formal que, por conseguinte, não se exige a produção do resultado para a sua consumação. Dessa feita, impende-se realizar uma breve digressão a alguns conceitos que, de tão essenciais ao Direito Penal, merecem ser recordados.
Para conceituar o resultado, também chamado evento, os doutrinadores costumam utilizar duas teorias, a saber, a naturalística e a normativa ou jurídica. Segundo essa última, o resultado "se identifica com a ofensa ao interesse tutelado pela norma penal", é o "dano ou perigo de dano a um bem jurídico que, ou é causado pela conduta ou coincide cronologicamente com ela" (13), o que levaria à conclusão de que não existe crime sem resultado. Por outro lado, para a primeira teoria, hoje majoritária, o resultado consiste na "modificação do mundo exterior causada pelo comportamento humano, sendo estranho a qualquer valor e excluindo qualquer apreciação normativa" (14); ou ainda, "entende-se por resultado o efeito natural da ação que configura a conduta típica, ou seja, o fato tipicamente relevante produzido no mundo exterior pelo movimento corpóreo do agente a ele ligado por relação de causalidade" (15). Conclui-se, portanto, que é possível a existência de crimes sem resultado (naturalístico). Assim, com base nessa segunda definição, surgiram, dentro da classificação dos delitos, os conceitos de crime formal e material.
Crime material é aquele descrito em um tipo que menciona tanto a conduta quanto o evento, exigindo a efetiva produção desse último para sua consumação. No crime material, o resultado naturalístico, a modificação do mundo exterior descrita no tipo deve ocorrer, sem o que o delito não se consuma. Já o crime formal é aquele cujo tipo também descreve conduta e resultado, mas não exige a produção desse último, consumando-se com a simples realização da conduta, que, para a doutrina, "é a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade" (16). Júlio Fabbrini Mirabete assevera que "no crime formal não há necessidade da realização daquilo que é pretendido pelo agente, e o resultado jurídico previsto no tipo ocorre ao mesmo tempo em que se desenrola a conduta, havendo separação lógica e não cronológica entre a conduta e o resultado" (17). No mesmo sentido, Heleno Cláudio Fragoso ensina que são "crimes formais os que se consumam independentemente do resultado visado pelo agente, ao qual a lei exige seja a vontade dirigida. Crimes formais seriam, pois, crimes de consumação antecipada" (18). Assim sendo, o agente do crime de pesca tem por desiderato o eventus damni, resultado esse que, tendo em vista a descrição típica, não é exigido para a consumação do delito, bastando apenas a realização da conduta descrita no tipo penal.
Outrossim, no crime de pesca durante período ou em local proibidos (art. 34, caput, c/c art. 36 da Lei 9.605/98), tem-se a descrição da conduta, i.e., praticar "atos tendentes a retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender ou capturar espécimes dos grupos dos peixes, crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios, suscetíveis ou não de aproveitamento econômico", e do resultado, que é a efetiva retirada, extração, coleta, apanhamento, apreensão ou captura dos animais e vegetais descritos na lei. Assim, o artigo 36, presente no texto legal para explicitar e definir o sentido do verbo nuclear do tipo descrito no artigo 34, usa a expressão "ato tendente a", que, como nos casos das expressões "com intuito de" (art. 158, CP), "com o fim de" (art. 131, CP), entre outras, demonstra que o resultado não é exigido para a consumação do crime, mas a simples realização do ato com tal finalidade, adequando-se perfeitamente ao conceito de conduta acima exposto. Ademais, o termo ato tendente surge no contexto literal do referido artigo como elemento normativo que confere à figura delitiva a índole preventiva de que devem valer-se as normas de natureza ambiental. Com efeito, a referida expressão contida no dispositivo em análise — observado o espírito prevencionista das normas de Direito Ambiental — leva-nos à conclusão hermenêutica de que a mesma faz-se presente no texto positivado para conceder ao delito em tela a natureza de crime formal. Afinal, a intentio juris de uma norma ambiental, manifestamente, deve ser interpretada sempre como mais voltada à prevenção, e não somente à simples repressão posterior à consumação efetiva do dano.
Aliás, se desejasse conferir aos delitos de pesca a natureza de crime material, exigindo o resultado do dano efetivo, o legislador simplesmente limitar-se-ia a definir o ato de pescar como "o ato de retirar, extrair, coletar, apanhar, apreender, ou capturar espécimes do grupo dos peixes etc.", sem qualquer interferência quanto ao momento anterior ao resultado. Ou ainda, tipificaria a conduta (como fez no artigo 34) sem esclarecer e definir, mais adiante, o sentido do verbo pescar.
Por outro lado, ad argumentandum, poder-se-ia entender que se interpretando dessa forma o artigo 36 da Lei 9.605/98 — que define o verbo pescar para os efeitos dessa lei — surgiria a possibilidade de dar ao Direito Penal uma dimensão temerária, fugindo do princípio da estrita legalidade e abrangendo atos preparatórios ou até mesmo de simples cogitação delitiva. Teríamos uma seqüência ilimitada de atos tendentes aos resultados descritos na lei, cuja tipificação ficaria ao arbítrio do aplicador do Direito. Todavia, ao contrário do entendimento exposto acima, o fim do artigo supra citado é exatamente dar maior abrangência ao verbo pescar, à conduta do tipo em questão, sem fugir, contudo, do conceito de conduta (a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade) e do princípio da legalidade. Trata-se de um tipo penal aberto, que, na lição de Heleno Cláudio Fragoso, é aquele em que "não aparece expressa, por completo, a norma que o agente transgride com seu comportamento, de tal maneira que não se contém no tipo a descrição completa do comportamento delituoso" (19). Essa espécie de norma penal é de extrema utilidade — e até mesmo de presença necessária — em matéria de Direito Penal Ambiental, no qual
"as condutas lesivas ao meio ambiente não permitem, na maioria das vezes, uma descrição direta e objetiva. Não é possível querer no crime ambiental a simplicidade existente nos delitos comuns. Por exemplo, o homicídio tem a descrição mais clara possível: matar alguém. Mas isto jamais será possível em um crime de poluição, cujas formas são múltiplas e se modificam permanentemente" (20).
Perguntar-se-ia, então, qual interpretação melhor serve à tutela do bem jurídico colimado pela norma ambiental penal: a que reprime a conduta antes que se efetive a lesão ao meio ambiente ou a que permite o dano, para que somente daí faça-se presente a repressão penal? Obviamente, a primeira hipótese coaduna-se muito mais com todo o sentido deôntico dos princípios que envolvem a tutela do ambiente. Assim, o caráter preventivo do Direito Ambiental, em termos de repressão a atos potencialmente lesivos ao meio ambiente, traduz-se em tipos penais como o que nesta ocasião se analisa, onde se visa proteger a fauna ictiológica valendo-se da evidente ratio preventiva que o legislador desejou conferir à norma penal. Dessa feita, exigir o resultado — no caso, o dano efetivo à fauna aquática e ao meio ambiente — para que somente a partir daí se configure a hipótese de repressão penal, vai de encontro ao que postulam os preceitos vetoriais da tutela ambiental. Por esta razão entendemos o fato de legislador ter incluído no tipo penal em comento o termo ato tendente: para antecipar o momento consumativo do delito, não se exigindo o resultado danoso para que se realize a conduta descrita, fazendo, desse modo, com que o delito tipificado se revista com os caracteres de crime de natureza formal.
Assim, entendemos não lograr êxito o posicionamento de que essa interpretação do art. 34 c/c art. 36 da Lei 9.605 seria temerária, levando à incriminação de atos meramente preparatórios e, portanto, impuníveis. Admitir a natureza formal do crime de pesca — o que se extrai, repita-se, da própria existência de uma definição expressa no art. 36 da Lei 9.605/98 — não é admitir o regressus ad infinitum em matéria de tipicidade. Os atos de comprar vara de pescar, dirigir-se ao local de pesca proibida, navegar no rio ou outro local onde a pesca seja proibida portando os equipamentos, e até mesmo o ato de colocar isca no anzol, obviamente não se subsumem à conduta descrita no tipo penal, pois meramente consistem em atos preparatórios, condutas não abrangidas pelo tipo. Se por exemplo, ao arremessar a linha e o anzol com isca ao rio, a linha se emaranha e não atinge a água, poderíamos vislumbrar a tentativa, pois tal conduta adentraria à esfera dos atos executórios. Entretanto, quando a linha e o anzol com isca estão na água — portanto, meio plenamente eficaz para a prática da pesca — tão-somente aguardando o fisgar do peixe, temos que está consumado o delito, nos termos do tipo penal.
Desse modo, resta evidente que o termo ato tendente exprime a preocupação do legislador em reprimir, antecipadamente, atos que potencialmente irão lesar o bem jurídico tutelado pela norma. Todavia, existe posicionamento divergente, no sentido de que a mencionada expressão ato tendente está presente no texto legal para conferir à norma penal garantias de repressão contra aqueles que aleguem uma eventual excludente de tipicidade, em razão do uso de instrumentos não convencionais para a prática da pesca, assim logrando furtar-se à subsunção da ação praticada à descrita no tipo. Data venia, ao menos para a conduta simples prevista no art. 34 da Lei 9.605/98, estando presentes os verbos nucleares da definição de pescar (extrair, coletar, apanhar, apreender, capturar etc.), relega-se a segundo plano o meio empregado, desde que se trate de meio eficaz a realizar a conduta definida no art. 36 do mesmo diploma.
Isto posto, temos que o ato punível previsto no tipo do artigo 34, caput, c/c art. 36 da Lei 9.605/98, inicia-se com a imersão à água da linha (com anzol e isca), rede, ou qualquer outro instrumento hábil para pescaria, em local ou durante período proibido para a prática de pesca, ação esta que, por se tratar de um crime formal — como demonstrado acima —, para a sua consumação não é exigida a produção de resultado, bastando apenas a realização da conduta prescrita no tipo.
Por outro lado, diante da posição esposada por Paulo José da Costa Jr. em relação ao evento ou resultado, pode ser dada à figura típica em análise uma nova classificação, a de crime de perigo. Ensina o douto Professor, acerca das doutrinas naturalística e normativa, que
"ambas as concepções podem coexistir. Podem e devem. Ao contrário daquilo que induz, à primeira vista, um exame mais superficial, não se excluem. Completam-se. Uma e outra são exatas naquilo que afirmam. Realmente, não há crimes sem evento e há crimes sem evento. Ou melhor, não há crime desprovido de evento jurídico. E há crimes destituídos de evento naturalístico. Nem todo delito gera no mundo fenomênico um efeito perceptível, tangível. E todo delito produz uma agressão ao ordenamento jurídico penal de valores abstratos tutelados. Tanto a conceituação física do evento como a jurídica devem ser mantidas. (...) Supérflua tanta disputa em torno do assunto" (21).
Assim, para essa teoria, que poderia ser chamada mista, "como denominador comum de todos os crimes, integrado em sua estrutura objetiva, há uma ofensa jurídica", a qual consiste em "uma agressão ou ameaça a bens ou interesses normativamente tutelados" (22).
Portanto, além de não exigir resultado (naturalístico), por ser um crime formal, o delito do art. 34, caput, da Lei n.º 9.605/98 não exige dano efetivo ao bem jurídico tutelado, bastando a probabilidade do dano, tratando-se de crime de perigo. Ademais, o diploma legal em questão protege o meio ambiente não só dos danos causados pelos agentes, mas também do perigo que pode resultar das condutas típicas, premiando, inclusive, o agente que colabora com a diminuição dos efeitos da sua conduta, instituindo como atenuante da pena a "comunicação prévia pelo agente do perigo iminente de degradação ambiental" (art. 14, III, Lei n.º 9.605/98).
Para melhor assimilação desse conceito, vale lembrar as palavras de Fragoso, para quem o perigo
"é constituído por um elemento objetivo e por um elemento subjetivo. Objetivamente, constitui perigo o conjunto das circunstâncias e condições em que se verifica o fato de que pode surgir o dano; subjetivamente, integra-o o juízo sobre o perigo, ou seja, o juízo que estabelece, com base na experiência, a probabilidade de superveniência de um dano, (…) [sendo que] o juízo deve ser feito de acordo com a chamada prognose póstuma, avaliando o sujeito ex ante as possibilidades do resultado temido" (23).
No mesmo sentido, e complementando essa noção, Costa Jr. sustenta que
"do conceito de dano e do de probabilidade, chega-se ao de perigo. Perigo é a probalidade de dano. É o dano em potencial. (...) Probabilidade é abstração de provável. Provável opõe-se a efetivo, como probabilidade opõe-se a efetividade. Efetivo é aquilo que já se verificou. (...) Provável, ao contrário, é aquilo que ainda não se efetivou" (24).
Assim sendo, no caso do crime de pesca durante período ou em local proibidos, ao iniciar a conduta, i.e., ao colocar a linha, rede, ou qualquer instrumento hábil, na água, o agente está expondo a fauna aquática ao perigo. Portanto, independentemente de haver, ou não, captura dos espécimes elencados na lei, desde o início da conduta já estão eles expostos ao perigo provocado pela pesca, perigo presumido ou abstrato, "o considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo ou negativo. (...) Não precisa ser provado. Resulta da própria ação ou omissão" (25). Ademais, a aplicação da lei penal na hipótese de crime de "pesca sem peixes" chega a ser uma questão de eqüidade, haja vista a possibilidade absurda de dois amigos estarem "pescando" em barcos diferentes, durante a "Piracema" ou a menos de 200 metros de uma barragem (local proibido), quando chega ao local uma equipe da polícia militar ambiental e autua apenas aquele mais "sortudo", i.e., aquele que já tinha pegado alguma coisa, enquanto o outro, que praticou exatamente a mesma conduta e com o mesmo dolo fica isento de crime. Estar-se-ia diante de reações distintas do Estado face a situações que, sob o prisma axiológico, são idênticas, assim representando uma violação a princípios basilares da ciência jurídica, tanto de ordem constitucional (Igualdade), quanto específicos do Direito Penal (Proporcionalidade).
Em suma, pelas razões acima expostas, vê-se que realmente existem questões que dificultam a definição da natureza do crime de pesca, as quais, todavia, não justificam a postura, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, em furtar-se à tal classificação. De fato, infere-se da criteriosa análise dos termos da Lei n.º 9.605/98, em consonância com os princípios basilares do Direito Ambiental, e tendo em vista ainda o contexto em que a referida norma foi elaborada, a evidente natureza do Crime de Pesca (art. 34, caput, c/c art. 36 da Lei n.º 9.605/98), qual seja, s.m.j., a de Crime Formal e de Perigo. Por outras palavras, para a existência do crime referido não se faz necessário haver dano efetivo ao bem tutelado — a fauna aquática, inserida no contexto ambiental —, reputando-se suficiente tão-somente a existência de perigo, presumido ou abstrato; de modo que para a sua consumação, que ocorre antecipadamente, exige-se apenas a simples prática da conduta típica, e não a obrigatória superveniência de qualquer resultado naturalístico.
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MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 21, 2001.
Notas
1. Édis MILARÉ, Os princípios fundamentais do Direito do Ambiente, In: Revista dos Tribunais, out.1998, p. 60.
2. Idem, ibidem.
3. Paulo Affonso Leme MACHADO, Direito Ambiental Brasileiro, p. 57.
4. Álvaro Luiz Valery MIRRA, Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial, In: Revista de Direito Ambiental, p. 98.
5. Idem, ibidem.
6. Cezar Roberto BITENCOURT, Juizados Especiais Criminais e alternativas à pena de prisão apud Vladimir Passos de FREITAS, Gilberto Passos de FREITAS, Crimes contra a Natureza, p. 31.
7. Idem, p. 36.
8. Maurício LIBSTER, Delitos Ecológicos apud Vladimir Passos de FREITAS, Gilberto Passos de FREITAS, op. cit. p. 36-7.
9. Idem, p. 33.
10. Eduardo Ortega MARTIN, Os delitos contra a flora e a fauna, Direito Penal Administrativo apud Vladimir Passos de FREITAS, Gilberto Passos de FREITAS, op. cit., p. 31.
11. Francisco de Assis TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, p. 133 apud Vladimir Passos de FREITAS, Gilberto Passos de FREITAS, op. cit., p. 31.
12. Idem, p. 43.
13. Damásio Evangelista de JESUS, Direito Penal, v. 1, p. 190.
14. Idem, ibidem.
15. Heleno Cláudio FRAGOSO, Lições de Direito Penal: parte geral, p. 187.
16. Damásio Evangelista de JESUS, op. cit., p. 227.
17. Júlio Fabbrini MIRABETE, Manual de Direito Penal, v. 1, p. 130.
18. Heleno Cláudio FRAGOSO, Conduta punível, p. 75.
19. Idem, p. 183.
20. Vladimir Passos de FREITAS, Gilberto Passos de FREITAS, op. cit., p. 35.
21. Paulo José da COSTA JÚNIOR, Curso de Direito Penal: parte geral, v. 1, p. 53.
22. Idem, ibidem.
23. Heleno Cláudio FRAGOSO, op. cit., p. 188-9.
24. Paulo José da COSTA JÚNIOR, op. cit., p. 57.
25. Damásio Evangelista de JESUS, op. cit., p. 189.