4. Conflitos entre Regras e Colisões entre Princípios Constitucionais
De posse da análise empreendida sobre as normas jurídicas e a normatividade dos princípios jurídicos constitucionais, bem como da visão panorâmica do princípio constitucional da proporcionalidade, principalmente na feição de máxima de ponderação difundida a partir do Direito Constitucional alemão, pode-se avançar para o estudo dos critérios de resolução dos conflitos entre princípios constitucionais.
A distinção entre regras e princípios jurídicos se apresenta sumamente relevante quando da resolução das tensões que se produzem dentro do sistema normativo. Em um sistema de normas, constituído por regras e princípios constitucionais em constante e necessária transformação, que refletem uma sociedade dinâmica e heterogênea, inevitáveis são os conflitos entre as espécies normativas, situação que reclama adoção de critérios capazes de resolver o conflito e salvaguardar a unidade e a coerência do ordenamento jurídico.
Segundo Robert Alexy, "común a las colisiones de principios y a los conflictos de reglas es el hecho de que dos normas, aplicadas independientemente, conducen a resultados incompatibles, es decir, a dos juicios de deber ser jurídico contradictorios" 39.
Quando o conflito se desenvolve entre as diferentes espécies de normas jurídicas, isto é, na contradição entre regras e princípios, a resolução do conflito é, de certo modo, facilmente alcançada. Deve-se, aplicar o critério que determina, no mais das vezes, a superioridade hierárquica dos princípios constitucionais sobre as regras. Os princípios constitucionais, pela condição de normas gerais e fundamentais, prevalecem sobre as regras constitucionais e infraconstitucionais, normas de generalidade relativamente baixa. É certo, porém, que em condições muito peculiares deve ser aplicada a regra específica, ficando afastada a aplicação do princípio constitucional.
O conflito entre regras já reserva maiores dificuldades de resolução. No conflito entre regras, a aplicação de duas diferentes prescrições jurídicas, ambas válidas, conduzem a resultados incompatíveis entre si.
Usando novamente os ensinamentos de Robert Alexy, é possível afirmar que um conflito entre regras somente pode ser resolvido se for introduzida uma cláusula de exceção em uma das regras conflitantes, na intenção de remover o conflito. E propõe o autor alemão o seguinte exemplo: uma regra que proíba abandonar a sala antes de soar a sirene de saída e uma ordem para abandoná-la em caso de alarme de incêndio. Tal conflito poderia ser eliminado com a introdução de uma cláusula de exceção na primeira regra, determinando a saída da sala em caso de alarme de incêndio. Não sendo possível semelhante solução, pelo menos uma das regras deverá ser declarada nula, restando eliminada do ordenamento jurídico 40.
O conflito entre regras se resolve no âmbito da validade, já que se uma regra vale e é aplicável ao caso concreto, então, valem também suas conseqüências jurídicas, pois contidas dentro do ordenamento normativo. Deste modo, se a aplicação de duas regras juridicamente válidas conduz a juízos concretos de ‘dever ser’ reciprocamente contraditórios, não restando possível a eliminação do conflito pela introdução de uma cláusula de exceção, pelo menos uma das regras deverá ser declarada inválida e expurgada do sistema normativo, como meio de preservação do ordenamento.
Em determinados casos, tais tensões podem ser sanadas mediante o emprego de critérios de resolução de conflitos entre regras jurídicas. Neste caso, a regra hierarquicamente superior derroga a inferior ("lex superior derogat legi inferiori"), segundo a determinação do critério hierárquico. A regra posterior derroga a regra anterior ("lex porterior derogat legi priori"), pela aplicação do critério cronológico. Pode-se estabelecer, ainda, a prevalência da regra especial sobre a regra geral ("lex specialis derogat legi generali"), usando o critério da especificidade. Há situações, entretanto, em que os presentes critérios de solução de antinomias restam insuficientes, como no caso de incompatibilidades entre dispositivos legais de um mesmo instrumento legislativo, bastante possível em codificações de leis 41.
A colisão entre princípios constitucionais não se resolve no campo da validade, mas no campo do valor 42. Se uma determinada situação é proibida por um princípio, mas permitida por outro, não há que se falar em nulidade de um princípio pela aplicação do outro. No caso concreto, em uma "relação de precedência condicionada", determinado princípio terá maior relevância que o outro, preponderando. Não se pode aceitar que um princípio reconhecido pelo ordenamento constitucional possa ser declarado inválido, por que não aplicável a uma situação específica. Ele apenas recua frente ao maior peso, naquele caso, de outro princípio também reconhecido pela Constituição. A solução do conflito entre regras, em síntese, dá-se no plano da validade, enquanto a colisão de princípios constitucionais no âmbito do valor.
Na resolução da colisão entre princípios constitucionais deve-se levar em consideração as circunstâncias que cercam o caso concreto, para que, pesados os aspectos específicos da situação, prepondere o preceito mais adequado. A tensão se resolve mediante uma ponderação de interesses opostos, determinando qual destes interesses, abstratamente, possui maior peso no caso concreto.
A tensão entre princípios constitucionais, como visto, não é eliminada pela invalidação de um deles, nem, tampouco, pela introdução de uma cláusula de exceção em um dos princípios, de modo a limitar sua aplicação em casos futuros. "La solución de la colisión consiste más bien en que, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, se estabelece entre los principios una relación de precedencia condicionada" 43. Eqüivale dizer que, tomando em conta o caso, determinam-se as condições sob as quais um princípio constitucional precede ao outro. Havendo modificação nas condições, a questão da precedência pode ser resolvida inversamente.
O jurista Robert Alexy denomina "lei de colisão" a solução da tensão de mandamentos de otimização com base na relação de precedência condicionada. Não existem relações absolutas de precedência, pois que sempre serão determinadas pelas circunstâncias do caso concreto. Não existe um princípio que, invariavelmente, prepondere sobre os demais, sem que devam ser levadas em consideração as situações específicas do caso. Em última análise, não existem princípios constitucionais absolutos ou um princípio constitucional absoluto que, em colisão com outros princípios, precederá independentemente da situação posta 44.
A existência de princípios absolutos, capazes de preceder sobre os demais em quaisquer condições de colisão, não se mostra consoante com o próprio conceito de princípios jurídicos. Não se pode negar, por outro lado, a existência de mandamentos de otimização relativamente fortes, capazes de preceder aos outros em praticamente todas as situações de colisão. Pode-se citar, como exemplos, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da proteção da ordem democrática, o direito à higidez do meio-ambiente e etc..
De posse do conceito de princípio constitucional, estabelecidas as formas de eliminação das tensões entre os mandamentos de otimização da ordem normativa, cabe a definição dos critérios usados para determinar a precedência de um princípio sobre outro, as condições que se sobrepõem na relação de precedência. Exsurge, pois, o necessário estabelecimento de uma teoria da argumentação jurídica, capaz de fundamentar a decisão judicial pela precedência de um valor constitucionalmente assegurado em detrimento de outros, legitimando a atuação jurisdicional e realizando a máxima da justiça material.
Pode-se dizer que para uma aplicação salutar e coerente da máxima da ponderação entre os princípios constitucionais em colisão, mostra-se imprescindível delinear firmemente uma teoria da argumentação jurídica, até como forma de evitar que as decisões judiciais pela precedência de um ou outro princípio fiquem sujeitas ao arbitrário sopesamento do juiz. Até porque, como assegura Eros Roberto Grau, "não há, no sistema, nenhuma norma a orientar o intérprete e o aplicador a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual o que deve ser desprezado. Em cada caso, pois, em cada situação, a dimensão do peso ou importância dos princípios há de ser ponderada" 45.
O juiz, quando decide pela prevalência de determinando princípio constitucional que se mostra em confronto com outro ou outros, em vista das circunstâncias do caso concreto, deve basear sua decisão não somente em convicções de foro íntimo, mas em argumentos e razões jurídicas plenamente aceitas pela sociedade e consentâneas ao ordenamento normativo vigente. Do contrário, pode-se estar avançando a passos largos para uma nefasta e deletéria substituição do primado da lei, como existia no tradicional modelo formal-positivista, pelo primado das valorações subjetivas dos juízes, sem parâmetros e critérios aferíveis e justificáveis para respaldar a atividade jurisdicional.
5. A Necessidade de uma Teoria da Argumentação Jurídica
A teoria da "lei de colisão" dos princípios constitucionais acima estudada, como visto, não é capaz de se sustentar sem o arrimo de uma sólida teoria da argumentação jurídica, coerente o bastante para fundamentar a decisão pela preponderância de um princípio constitucional que, no caso concreto, mostra-se contraposto a outros, todos reconhecidos pela Constituição.
Neste sentido, Robert Alexy construiu uma teoria da argumentação jurídica que pretende fornecer fundamentos à decisão pela precedência de determinado valor que se mostre em colisão com outros, legitimando a atuação jurisdicional. Segundo o jurista alemão, a decisão jurídica não se constitui em uma decorrência lógica das formulações a respeito de normas jurídicas, em virtude da vagueza da linguagem normativa, da possibilidade de conflito entre normas, dos casos de lacuna e da existência de decisões "contra legem". A fundamentação das decisões jurídicas se reflete em uma questão de ordem metodológica, devendo-se, pela consolidação de uma teoria da argumentação jurídica, que ultrapassa a mera "subsunção lógica", alcançar, na maior medida possível, "racionalidade à fundamentação jurídica e correção às decisões" 46.
O rompimento com o modelo lógico formal-positivista do pensamento jurídico teve seu marco fundamental nos estudos acerca da tópica jurídica e da nova retórica, respectivamente com Theodor Viehweg e Chaïm Perelman, inaugurando-se já na segunda metade do século XX, um modelo de raciocínio jurídico baseado na lógica material, na idéia de valorações e ponderações 47. A legitimação do Direito passou de uma visão formal-positivista para um modelo de raciocínio axiológico, pautado pelos critérios de racionalidade e proporcionalidade.
O paradigma tópico-retórico serviu de base para o lançamento de uma nova hermenêutica constitucional, uma nova forma de justificar e legitimar o Direito, respaldado por uma lógica axiológica, valorativa, um modelo que reconhece e tem como principal esteio a força normativa e vinculante dos princípios constitucionais. Daí a enorme importância das idéias lançadas pelo modelo lógico material, por assim dizer, para o estudo e estabelecimento de uma nova teoria da argumentação jurídica.
Não é objeto desse trabalho o estudo acerca da nova retórica e da tópica jurídica, ou de uma teoria do discurso, ou até, uma discussão mais profunda de uma teoria da argumentação jurídica, temas que para serem discutidos com profundidade, pela extrema complexidade, demandam consideráveis estudos preliminares, o que acabaria por se distanciar da temática central 48. Por outro lado, ainda que brevemente, devem ser traçadas as diretrizes gerais da teoria da argumentação jurídica desenvolvida por Robert Alexy, como instrumento hábil à implementação de decisões jurídicas justas e corretas, quando da necessidade de ponderação entre princípios constitucionais, em uma situação concreta, contrapostos.
No entendimento de Robert Alexy, os denominados "cânones de interpretação" das normas jurídicas, ainda que de certa valia e relevância na praxis jurisdicional, pela inegável indeterminação e "debilidade", não podem ser considerados suficientes à fundamentação das decisões jurídicas. As regras de hermenêutica são inconsistentes para conferir ao Direito um estatuto racional. Quando, em uma determinada decisão, o julgador se depara com uma situação de difícil solução, pela vagueza dos enunciados normativos e insuficiência dos critérios de hermenêutica, acaba decidindo por juízos valorativos. Essas "tomadas de posição" devem se orientar de acordo com valorações moralmente corretas 49.
Robert Alexy sustenta que o discurso jurídico se constitui em uma espécie de discurso prático, uma vez que ambos criam um enunciado normativo que pretende ser correto; entretanto, o discurso jurídico ocorre sob o que o autor convencionou denominar "condições limitativas", quais sejam, a vinculação à lei, à doutrina, à jurisprudência, etc., sendo, consequentemente, mais complexo e apto à constituição de um discurso racional, capaz de fundamentar uma decisão correta. Fala-se, então, em discurso prático racional, a possibilidade de se fundamentar uma decisão jurídica segundo uma teoria da argumentação que observa um sistema de regras discursivas, um conjunto de regras e formas de argumentos que tornam possível o julgamento racional 50.
O discurso estruturado segundo regras formais 51, seguindo uma postura analítico-normativa, permite ao julgador se aproximar da decisão correta, analisando qual dos contendores oferece os melhores argumentos. Cabe asseverar que, apesar de entender sua teoria da argumentação jurídica como capaz de possibilitar o alcance da decisão jurídica correta, o autor alemão rejeita a idéia da existência, por meio do discurso racional, de uma única decisão justa. A teoria da única solução correta depende de "condições ideais do discurso" que, na prática, são impossíveis de serem alcançadas. Ademais, a variação de peso dos princípios constitucionais, tanto temporal como espacial, acaba legitimando o alcance de soluções diversas, ainda que usado o mesmo procedimento racional de discurso.
Inegável, portanto, que a teoria da argumentação jurídica proposta por Robert Alexy avançou, consideravelmente, no que concerne à fixação de uma metodologia, um procedimento, propício ao alcance da fundamentação mais oportuna à decisão jurídica. A teoria do discurso racional do direito estabelece diretrizes relativamente sólidas à obtenção de decisões justas e corretas, segundo critérios de racionalidade e razoabilidade.