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A resolução das colisões entre princípios constitucionais

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5. A Necessidade de uma Teoria da Argumentação Jurídica

A teoria da "lei de colisão" dos princípios constitucionais acima estudada, como visto, não é capaz de se sustentar sem o arrimo de uma sólida teoria da argumentação jurídica, coerente o bastante para fundamentar a decisão pela preponderância de um princípio constitucional que, no caso concreto, mostra-se contraposto a outros, todos reconhecidos pela Constituição.

Neste sentido, Robert Alexy construiu uma teoria da argumentação jurídica que pretende fornecer fundamentos à decisão pela precedência de determinado valor que se mostre em colisão com outros, legitimando a atuação jurisdicional. Segundo o jurista alemão, a decisão jurídica não se constitui em uma decorrência lógica das formulações a respeito de normas jurídicas, em virtude da vagueza da linguagem normativa, da possibilidade de conflito entre normas, dos casos de lacuna e da existência de decisões "contra legem". A fundamentação das decisões jurídicas se reflete em uma questão de ordem metodológica, devendo-se, pela consolidação de uma teoria da argumentação jurídica, que ultrapassa a mera "subsunção lógica", alcançar, na maior medida possível, "racionalidade à fundamentação jurídica e correção às decisões" [46].

O rompimento com o modelo lógico formal-positivista do pensamento jurídico teve seu marco fundamental nos estudos acerca da tópica jurídica e da nova retórica, respectivamente com Theodor Viehweg e Chaïm Perelman, inaugurando-se já na segunda metade do século XX, um modelo de raciocínio jurídico baseado na lógica material, na idéia de valorações e ponderações [47]. A legitimação do Direito passou de uma visão formal-positivista para um modelo de raciocínio axiológico, pautado pelos critérios de racionalidade e proporcionalidade.

O paradigma tópico-retórico serviu de base para o lançamento de uma nova hermenêutica constitucional, uma nova forma de justificar e legitimar o Direito, respaldado por uma lógica axiológica, valorativa, um modelo que reconhece e tem como principal esteio a força normativa e vinculante dos princípios constitucionais. Daí a enorme importância das idéias lançadas pelo modelo lógico material, por assim dizer, para o estudo e estabelecimento de uma nova teoria da argumentação jurídica.

Não é objeto desse trabalho o estudo acerca da nova retórica e da tópica jurídica, ou de uma teoria do discurso, ou até, uma discussão mais profunda de uma teoria da argumentação jurídica, temas que para serem discutidos com profundidade, pela extrema complexidade, demandam consideráveis estudos preliminares, o que acabaria por se distanciar da temática central [48]. Por outro lado, ainda que brevemente, devem ser traçadas as diretrizes gerais da teoria da argumentação jurídica desenvolvida por Robert Alexy, como instrumento hábil à implementação de decisões jurídicas justas e corretas, quando da necessidade de ponderação entre princípios constitucionais, em uma situação concreta, contrapostos.

No entendimento de Robert Alexy, os denominados "cânones de interpretação" das normas jurídicas, ainda que de certa valia e relevância na praxis jurisdicional, pela inegável indeterminação e "debilidade", não podem ser considerados suficientes à fundamentação das decisões jurídicas. As regras de hermenêutica são inconsistentes para conferir ao Direito um estatuto racional. Quando, em uma determinada decisão, o julgador se depara com uma situação de difícil solução, pela vagueza dos enunciados normativos e insuficiência dos critérios de hermenêutica, acaba decidindo por juízos valorativos. Essas "tomadas de posição" devem se orientar de acordo com valorações moralmente corretas [49].

Robert Alexy sustenta que o discurso jurídico se constitui em uma espécie de discurso prático, uma vez que ambos criam um enunciado normativo que pretende ser correto; entretanto, o discurso jurídico ocorre sob o que o autor convencionou denominar "condições limitativas", quais sejam, a vinculação à lei, à doutrina, à jurisprudência, etc., sendo, consequentemente, mais complexo e apto à constituição de um discurso racional, capaz de fundamentar uma decisão correta. Fala-se, então, em discurso prático racional, a possibilidade de se fundamentar uma decisão jurídica segundo uma teoria da argumentação que observa um sistema de regras discursivas, um conjunto de regras e formas de argumentos que tornam possível o julgamento racional [50].

O discurso estruturado segundo regras formais [51], seguindo uma postura analítico-normativa, permite ao julgador se aproximar da decisão correta, analisando qual dos contendores oferece os melhores argumentos. Cabe asseverar que, apesar de entender sua teoria da argumentação jurídica como capaz de possibilitar o alcance da decisão jurídica correta, o autor alemão rejeita a idéia da existência, por meio do discurso racional, de uma única decisão justa. A teoria da única solução correta depende de "condições ideais do discurso" que, na prática, são impossíveis de serem alcançadas. Ademais, a variação de peso dos princípios constitucionais, tanto temporal como espacial, acaba legitimando o alcance de soluções diversas, ainda que usado o mesmo procedimento racional de discurso.

Inegável, portanto, que a teoria da argumentação jurídica proposta por Robert Alexy avançou, consideravelmente, no que concerne à fixação de uma metodologia, um procedimento, propício ao alcance da fundamentação mais oportuna à decisão jurídica. A teoria do discurso racional do direito estabelece diretrizes relativamente sólidas à obtenção de decisões justas e corretas, segundo critérios de racionalidade e razoabilidade.


6. A Aplicação do Princípio da Ponderação na Jurisprudência Nacional

Como visto anteriormente, quando da tensão entre dois princípios reconhecidos pelo ordenamento constitucional vigente, o de menor peso, segundo circunstâncias e condições particulares do caso concreto, cede aplicabilidade ao de maior valor, em uma "relação de precedência condicionada". Não são estipuladas cláusulas de exceção, como nos casos entre conflitos de regras, pois, senão, estar-se-ia limitando o princípio constitucional para situações futuras, quando poderá preceder frente a outros valores com os quais colida. Busca-se, pela máxima da ponderação, avaliar, ante as condições do caso, qual valor detém maior peso, devendo prevalecer na ocasião.

A ponderação entre princípios constitucionais é tarefa das mais árduas e significativas à manutenção da ordem constitucional coesa. Daí a enorme responsabilidade do Poder Judiciário, sobretudo das Cortes Supremas dos Estados, quando do controle da constitucionalidade de leis restritivas de direitos, bem como da solução de tensões entre direitos fundamentais amparados pela Constituição, colidentes no caso concreto.

A jurisprudência nacional registra decisões do Supremo Tribunal Federal, resolvendo tensões entre princípios constitucionais, onde o conflito foi solucionado pela aplicação da máxima da ponderação de valores, restando um princípio constitucional afastado pela aplicação do outro. Decisão especial, e que, portanto, merece estudo detalhado, deu-se em sede de "Habeas Corpus", quando se discutiu a tensão entre o direito do filho em conhecer seu pai biológico e o direito do suposto pai em não ser compelido à colheita de sangue necessário à realização do exame hematológico [52].

O caso se resume em uma ação declaratória, de rito ordinário, onde uma criança investigava a paternidade de seu suposto pai. O Juízo da Segunda Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre determinou a realização de exame de ADN (ácido desoxirribonucléico), na intenção de dirimir a controvérsia. Ocorre que o suposto pai se negou à colheita de sangue, sendo determinada a execução forçada da ordem judicial, decisão mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Como o suposto pai estava na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por decisão do Tribunal de Justiça Riograndense, cabível o pedido de "Habeas Corpus" ao Supremo Tribunal Federal, onde a questão restou dirimida.

No Supremo Tribunal Federal as opiniões se dividiram, sendo que o Tribunal Pleno, por cinco votos contra quatro, decidiu pela inconstitucionalidade da decisão judicial que determinou a colheita de sangue do indigitado pai, contra sua vontade, por afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da intimidade e da intangibilidade do corpo humano, princípios que preponderam, segundo o Supremo Tribunal Federal, sobre o direito da criança em conhecer seu verdadeiro pai. Como se analisará abaixo, não parece ter sido a decisão mais acertada a tomada pelo Supremo Tribunal Federal.

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A discussão essencial do julgamento, como ressai dos votos dos ministros, concentrou-se na ponderação entre o direito da criança a sua real (e não apenas presumida) identidade e do suposto pai a sua intangibilidade física. Prova da dificuldade em se decidir pela preponderância de um direito fundamental sobre o outro foi o resultado acirrado da decisão.

O direito elementar que tem a pessoa de conhecer sua origem genética, e não apenas à paternidade fundada em uma presunção processual, parece ter maior peso, frente a uma gota de sangue do suposto pai. Claro que ambos são direitos tuteláveis, mas o primeiro prepondera sobre o segundo, dadas as condições do caso concreto.

A intangibilidade do corpo humano é passível de restrições, como, para exemplificar, a determinação estatal de vacinação forçada para controlar doença de proporções epidêmicas. Os cidadãos não poderão invocar o direito à intangibilidade do corpo, a fim de se eximir da vacinação, pois que se está resguardando princípio constitucional de maior peso: a saúde da coletividade.

O sacrifício imposto à integridade corporal do suposto pai é, em última análise, risível frente ao direito da criança em conhecer sua origem real, direito que decorre da própria extensão do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, inscrito no artigo 1º, inciso III da Constituição da República.


7. Considerações Finais

A análise do sistema jurídico constitucional brasileiro, ou de qualquer outra Constituição, não prescinde, em hipótese alguma, de um profundo estudo acerca dos princípios constitucionais. A força normativa da Constituição depende diretamente da existência de princípios constitucionais que tenham lastro no corpo social. Por certo, a Constituição será sempre mais efetiva e vivificada na sociedade, à medida que for maior a interação dos princípios constitucionais com as aspirações dos indivíduos que estão a ela submetidos.

Neste sentido, inquestionável é a relevância da discussão que toma por objeto a normatividade dos princípios constitucionais. O reconhecimento do caráter normativo e vinculante dos princípios constitucionais, em última análise, é pressuposto de efetividade e continuidade do sistema normativo constitucional. Negar a natureza normativa dos princípios constitucionais eqüivale a não reconhecer a força jurídica ativa da Constituição, relegando-a à condição de simples ideário, uma mera carta de intenções da sociedade, podendo ser cumprida ou não.

Entretanto, a natureza normativa dos princípios constitucionais enseja o estabelecimento de critérios para a solução de conflitos surgidos entre tais espécies normativas, quando da sua aplicação à resolução do caso concreto. A referência não toca às antinomias próprias que surgem quando da contradição entre regras jurídicas, ou entre regras e princípios. Diz respeito às antinomias impróprias, que não resultam de incompatibilidade insuperável entre princípios constitucionais, capazes de serem solucionadas pela aplicação de um princípio em detrimento de outro ou outros, em uma relação de precedência condicionada.

A chamada "lei de colisão", em tese, não parece acarretar maiores dificuldades de aplicação. Quando da colisão entre dois ou mais princípios constitucionais reconhecidamente válidos em nosso sistema normativo, deve-se dar prevalência ao princípio de maior peso, levando-se em conta as circunstâncias do caso concreto, em detrimento dos demais. Em uma relação de precedência condicionada, o princípio constitucional de maior densidade, em determinado caso, prevalece sobre os demais. A dificuldade reside em fixar critérios capazes de norteara a decisão pela precedência do princípio constitucional que deve ser aplicado.

A decisão pela maior densidade valorativa de determinado princípio constitucional, em detrimento de outro, deve ser pautada por critérios racionais, razoáveis, capazes de serem justificados dentro de uma racionalidade lógica, ainda que não se possa afastar a considerável carga subjetiva característica da decisão.

A racionalidade da decisão que põe termo ao conflito entre princípios constitucionais pode ser alcançada recorrendo-se à moderna teoria da argumentação jurídica. O uso do raciocínio tópico norteia o julgador na procura dos argumentos decisivos à resolução do caso concreto, argumentos dotados de racionalidade e consideravelmente aceitos pela sociedade. Uma decisão razoável, coerente dentro do sistema normativo constitucional, legitima e fortalece a atuação do Poder Judiciário.

A tópica e a nova retórica, bases da argumentação jurídica moderna e da nova hermenêutica constitucional, podem ser entendidas como os instrumentos norteadores do raciocínio jurídico contemporâneo. Trata-se de um substrato teórico que oferece ao julgador critérios racionais para justificar a decisão pela prevalência de determinado princípio constitucional, evitando que prepondere de fato o império do subjetivismo. E esta deve ser uma das maiores preocupações do constitucionalismo moderno, evitar que a vontade da Constituição seja substituída pela vontade do juiz.

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A resolução das colisões entre princípios constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3682. Acesso em: 25 abr. 2024.

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Texto apresentado como trabalho final da isciplina de Direito Constitucional do Curso de Especialização em Direito Administrativo Aplicado do Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina –CESUSC

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