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Charlie Hebdo, WhatsApp e a liberdade de expressão

24/03/2015 às 17:08
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O presente artigo tem como mister analisar os principais aspectos da liberdade de expressão, um dos mais importantes direitos fundamentais insculpidos em nossa Constituição Federal de 1988, analisando, outrossim, casos concretos pertinentes ao tema.

RESUMO: O presente artigo tem como mister analisar os principais aspectos da liberdade de expressão, um dos mais importantes direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, conquanto já consagrado desde a primeira constituição brasileira – a Constituição de 1824¹, passou a ganhar destaque nos últimos meses, configurando-se cerne de inúmeros debates, e reacendendo discussões em grande parte da sociedade brasileira, testemunha de recentes e polêmicos episódios, a exemplo dos ataques à revista satírica Charlie Hebdo, em Paris, e da possível suspensão do aplicativo WhatsApp em todo o território nacional.


 

INTRODUÇÃO

“O homem é um animal político”. Já advertia a célebre frase de Aristóteles que o homem é um ser que necessita de outros, pois sua própria formação psicossocial decorre do contato com seu semelhante. Para Aristóteles, em síntese, o homem é um animal político na medida em que se realiza plenamente no âmbito da pólis. É imprescindível, pois, para a integridade social e psíquica do ser humano, a comunicação, através da qual busca a completude, a realização plena. Portanto, percebe-se a inerência à natureza humana do direito de se comunicar livremente.

Basicamente, o direito à liberdade de expressão foi garantido pela Constituição de 1988 em dois artigos: o art. 5º e o art. 220. O primeiro assegura, em seus incisos IV e XIV, respectivamente, que é “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Por sua vez, o art. 220 afirma que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, aditando, ainda, em seus parágrafos 1º e 2º que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”, e que “é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Nota-se, destarte, que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, tem, sobretudo, caráter de direito negativo, ou seja, do não-agir, da pretensão a que o Estado recue, se abstenha, não exerça censura. Conforme aduz o eminente Paulo Gonet Branco², “não é o Estado que deve estabelecer quais as opiniões que merecem ser tidas como válidas e aceitáveis; essa tarefa cabe, antes, ao público a que essas manifestações se dirigem. Daí a garantia do art. 220 da Constituição brasileira. Estamos, portanto, diante de um direito de índole marcadamente defensiva – direito a uma abstenção pelo Estado de uma conduta que interfira sobre a esfera de liberdade do indivíduo”.


 

CONTEÚDO DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A garantia da liberdade de expressão tutela, ao menos enquanto não houver colisão com outros direitos fundamentais e com outros valores constitucionalmente estabelecidos, toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não – até porque “diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista”3.

Além disso, a liberdade de expressão congloba também diversas licenças, como a de comunicação de pensamentos, de ideias, de informações e de expressões não verbais - comportamentais, musicais, por imagem, entre outras. Conquanto o grau de proteção que cada uma dessas formas de expressão recebe costume variar, de algum modo, todas estão amparadas pela Carta Magna.

A liberdade em estudo, todavia, abrange não apenas o direito de se exprimir, como também o direito de não se expressar, de silenciar e de não se informar. Não obstante a sua importância para a manutenção do regime democrático, desse direito fundamental não se extrai a obrigação, para o seu titular, de procurar e de expressar ideias. É o que nos ensina Nuno e Sousa: “[...] garantida não aparece apenas a liberdade de expressão e informação, mas também a liberdade de não exprimir qualquer pensamento, de não se informar, de não fundar uma empresa de imprensa, de não dar informações; garante-se o exercício e o não exercício”4.


 

LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Assim como nenhum direito fundamental adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro é considerado absoluto, também não foge à regra o direito fundamental à liberdade de expressão. Já afirmava irônica e profeticamente o bispo Dom Pedro Casaldáliga: “nada há de absoluto no mundo a não ser Deus e a fome; tudo o mais é relativo e limitado”.

De fato, é imprescindível à sobrevivência dos direitos fundamentais o seu caráter relativo. Por mais importante que seja determinado direito fundamental, como o direito à vida e à liberdade de expressão, mesmo assim conservará seu caráter de relatividade, o que não significa exatamente a fraqueza desse direito, pelo contrário, garante a sua eficácia e constância no ordenamento jurídico.

Além disso, um dos direitos fundamentais que mais colidem com outros direitos e liberdades é justamente a liberdade de expressão. Inúmeros são os casos em que a liberdade em questão se choca, por exemplo, com o direito à vida privada ou com a dignidade da pessoa humana. Faz-se pontual lembrar o famoso Caso Ellwanger, em que o possível choque entre liberdade de expressão e princípio da dignidade da pessoa humana conduziu o caso ao Supremo Tribunal Federal, que entendeu que a liberdade de expressão do autor (através de livros considerados por muitos leitores como adeptos do ideário nazista) não deveria prevalecer ante a agressão que suas obras causaram à dignidade do povo judeu.

Destarte, não há direito fundamental menos importante do que outro. “A ausência de hierarquia entre os direitos fundamentais garante que todos eles sejam igualmente respeitados, uma vez que protegem aspectos distintos, porém, essenciais para a manutenção de uma vida digna. A ausência de hierarquia entre direitos fundamentais não é, portanto, uma escolha das Constituições, mas sim uma impossibilidade. Não há como estabelecer uma hierarquia entre direitos fundamentais, sem diminuir o seu âmbito de proteção”5.

Além do mais, o próprio constituinte brasileiro definiu limites à liberdade de expressão, a exemplo do artigo 220 da Constituição, quando proclama que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição” e que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV,V, X, XIII, e XIV”, admite a legiferação para proibir o anonimato, para preservar a honra, a vida privada, e a imagem das pessoas, para impor o direito de resposta e a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem. Pressagia, ainda, restrições legais à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, bem como o estabelecimento de meios legais que garantam à pessoa e à família possibilidades de se defenderem contra programações abusivas de rádio e televisão.

Portanto, ao direito à liberdade de expressão, inúmeros são os limites, ensejados pelos imprevisíveis e infinitos casos concretos, tanto os já transmutados em jurisprudências quanto os que hão de ocorrer a depender dos encontros com outros direitos e da complexidade e da evolução social.


 

CONCLUSÃO

A liberdade de expressão é um direito fundamental, e não absoluto, e não pode ser usado para justificar a violência, a difamação, a calúnia, a subversão ou a obscenidade. “O desafio para uma democracia é o equilíbrio: defender a liberdade de expressão e de reunião e ao mesmo tempo impedir o discurso que incita à violência, à intimidação ou à subversão”6.

Um dos feitios mais relevantes de um Estado que se diz democrático é a magnitude concedida à liberdade de expressão e de informação. Conforme sustentou Cezar Peluso, no julgamento da ADPF 187, a liberdade de expressão emana, diretamente, da dignidade da pessoa humana e se caracteriza como importante elemento para formação e aprimoramento da democracia.  Afirmou ainda o ministro que a liberdade em questão “é um fator relevante da construção e do resguardo da democracia, cujo pressuposto indispensável é o pluralismo ideológico”, e que “só pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais iminentes”7.

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Entende-se, portanto, que são bastantes distintos o caso da possível suspensão do Whatsapp (não só no Brasil como também no Reino Unido, na Arábia Saudita, no Irã e em outros países onde o aplicativo também sofreu ameaças de bloqueio e, em alguns deles, chegou a ser suspenso8) e o ataque ao periódico Charlie Hebdo, em Paris, conquanto ambos têm relação com o direito à liberdade de expressão.

Com relação ao ataque ao jornal, vislumbra-se que o desafio é bem maior que a discussão a respeito dos limites à liberdade de expressão (que cremos terem sido violados pelo periódico ao satirizar sem nenhum fundamento ou pudor as crenças e tradições de milhões de mulçumanos – claro, também, foi irrazoável a atrocidade da resposta dada ao jornal), e corresponderia à garantia e ponderação dos direitos fundamentais na ótica transnacional, com respeito aos valores fundamentais e basilares de cada Estado e, no caso em questão, não apenas de cada Estado, mas de milhões de seguidores do islamismo dispostos mundo afora, na comunidade islâmica internacional.

Por sua vez, no caso da possível suspensão do aplicativo Whatsapp, a discussão ocorre porque defende-se ser mais difícil monitorar mensagens enviadas pelo aplicativo do que ligações telefônicas ou e-mails, por exemplo – o que, segundo alguns países, pode ameaçar tanto a segurança pública quanto a segurança nacional. Além disso, as ameaças de terrorismo ou à segurança nacional e a falta de colaboração em investigações também serviram de justificativa para o bloqueio do serviço em outros países.8

Quanto à decisão que ordenou o bloqueio do aplicativo do Whatsapp no Brasil, entendemos que foi desarrazoada. Cremos que não seria prudente restringir a liberdade de expressão em todo o território nacional como meio apenas de punição à empresa por não colaborar com investigações locais. Tamanha é a importância do direito à liberdade de expressão que, por exemplo, na Síria, em guerra há mais de três anos, o aplicativo em questão foi usado para marcar protestos durante a denominada Primavera Árabe, e justamente por isso foi suspenso em 2012. Talvez por esse motivo que, um dia após a decisão, o Tribunal de Justiça do Piauí decidiu que o bloqueio nacional do aplicativo fosse sustada9.

Portanto, assim como um músico executa a mesma canção para diferentes públicos, cuja reação e entendimento em relação à música são inúmeros e os mais distintos possíveis, também o é a resolução de cada caso envolvido na ponderação de direitos fundamentais, na maioria das vezes, um desafio árduo e complexo que exige boa dose de concentração e reflexão, mas nunca deixando uma solução que não seja peculiar a cada caso.


 

NOTAS

  1. A primeira Constituição do Brasil, outorgada no dia 25 de março de 1824, assim ditava: “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar”. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em 04/03/2015.
  2. MENDES, Gilmar Ferreira. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco – 9º ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014.
  3. Ulrich Karpen, Freedom of expression, in U. Karpen (ed.), The Constitution of the Federal Republic of Germany, Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1988, p. 93.
  4. SOUSA, Nuno e. A LIBERDADE DE IMPRENSA. Coimbra: Coimbra, 1984, p. 141.
  5. SEFERJAN, Tatiana Robles. Sátira e limites da liberdade de expressão. Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4219, 19 jan. 2015. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/35432/a-satira-e-os-limites-da-liberdade-de-expressao>. Acesso em: 4 mar. 2015.
  6. Disponível em <http://www.embaixada-americana.org.br/democracia/speech.htm>. Acesso em: 04 mar. 2015.
  7. STF libera “marcha da maconha” - Notícias STF (Quarta-feira, 15 de junho de 2011). Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=182124>. Acesso em: 04 mar. 2015.
  8. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/02/150226_whatsapp_risco_lab>. Acesso em: 04 mar. 2015.
  9. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/02/150227_salasocial_bloqueio_whatsapp_rs>. Acesso em: 04 mar. 2015.
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Sobre o autor
Fernando Cardoso

Acadêmico de Direito da Universidade Estadual do Piauí- Campus Clóvis Moura

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Fernando. Charlie Hebdo, WhatsApp e a liberdade de expressão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4283, 24 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36945. Acesso em: 22 dez. 2024.

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