Foi publicada, recentemente, uma decisão em que o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional[1] examinou a possibilidade de transferência de responsabilidade em decorrência de punição administrativa, no caso de troca do controle acionário da pessoa jurídica originariamente responsável pela conduta ilícita. O caso já tinha sido noticiado na mídia, mas só agora o acórdão se tornou oficialmente acessível. Citigroup Global Markets Brasil, como novo controlador das operações da corretora Intra S.A, procurou se eximir da responsabilidade por irregularidades cometidas por essa última na gestão das contas correntes de alguns de seus clientes, com suposta concessão irregular de financiamentos. Em voto de maioria, a primeira empresa acabou alcançando essa pretensão. A solução da controvérsia se deu no bojo de uma importante discussão, uma das primeiras em caráter oficial, a respeito da Lei Anticorrupção (Lei Federal 12.846, de 1º de agosto de 2013).
Os votos proferidos no Recurso 13230 dão conta da existência de uma significativa divergência sobre esse tema no âmbito do Conselho, fruto de um ambiente de incerteza mais genérica nos campos legislativo e jurisprudencial. Elementos como o conhecimento do novo controlador acerca dos fatos, ou a própria formalização de um procedimento administrativo no momento da operação societária, bem como a intervenção do poder público em transferências qualificadas do negócio – montadas com o apoio e incentivo do governo para resguardar a saúde do setor financeiro – figuram lado a lado com o preceito do direito penal que preconiza a individualização da pena. Uma harmonização aí não é uma tarefa fácil. Se o novo controlador tinha meios de saber, ou se simplesmente tinha o dever jurídico de conhecer e mensurar as consequências das condutas praticadas antes da assunção do controle, o que falaria a favor da transferência da responsabilidade, é também aceitável o argumento de que, em matéria de atos ilícitos, somente aqueles que os praticaram podem ser punidos. Como resultado dessa tensão de interesses e abordagens, é claro que a inclinação punitiva pode acabar seguindo nas duas direções; e por todo percurso argumentativo realizado no julgado, a sua leitura traz à tona diversos elementos práticos e teóricos relevantes.
A tese que prevaleceu no caso se valeu, em alguma medida, da orientação que o legislador adotou na lei de combate à corrupção e de punição das pessoas jurídicas por intermédio das quais atos ilícitos hajam sido praticados. Seja consentida uma breve transcrição da passagem pertinente, com referências omitidas (voto do Conselheiro Bruno Meyerhof Salama):
Por outro lado, a Lei Anticorrupção traz uma dinâmica legislativa que evidencia a opção do legislador sobre a sucessão em caso de penalidades administrativas. E essa opção é a de que a responsabilidade da sucessora não se estenda à sanção de publicação extraordinária da decisão condenatória – pena muito similar à advertência [a que estava sendo tratada nos autos], exceto nos casos de simulação ou fraude, se devidamente comprovadas.
Entendo que, tendo sido feita a opção pelo legislador, ainda que apenas em situação assemelhada – daí porque falo em analogia – não cabe ao aplicador revê-la. Temos aqui, a meu ver, caso de analogia in bonam partem, isto é, a analogia que beneficia o acusado.
O Conselheiro prossegue delineando os principais aspectos dos testes a serem feitos para se evitar uma frouxidão excessiva que resultasse na ausência de punição sempre que houvesse alteração de controle. A preocupação, inteiramente válida, é a de que a manipulação societária possa se prestar ao papel menor de enterrar a responsabilidade. O teste proposto seria o de identificar casos em que “(i) não se vislumbra que a incorporação da acusada possa ter sido realizada apenas como uma simulação para se afastar a imposição de sanção e (ii) a incorporação tenha decorrido de uma efetiva transferência de controle, não tendo sido, portanto, resultado de mera reorganização societária ou planejamento tributário.” A cumulação desses testes coloca em destaque o objetivo negocial ou comercial da alteração societária e, embora esta questão não tenha sido discutida nos autos, parece deixar com o adquirente o ônus de demonstrar a legitimidade do seu interesse mais que formal na operação. Não parece ser um preço caro a pagar se ele quiser ter a sua boa-fé prestigiada ao ponto de se livrar da responsabilidade por fato anterior. Mesmo sabendo do histórico problemático da pessoa jurídica adquirida ou incorporada, haveria algum espaço para que o novo controlador escapasse à punição, pela lógica do voto, se a operação não se tratasse de manobra – e, argumentavelmente, se bem que esse ponto tampouco haja sido esclarecido, se a própria ilicitude originária não fosse marcada pela fraude ou dolo.
Enquanto se vai refletindo sobre as implicações da tese vencedora acerca da extensão da aplicação da lei anticorrupção para outros setores da responsabilidade administrativa não regulamentados em lei própria, com o amadurecimento que só a produção jurisprudencial poderá estabelecer, algumas observações de caráter genérico, não exploradas mais longamente no julgado, desde logo despertam o interesse. Isso se dá especialmente quando se pensa no cenário de responsabilização tributária, tão próxima que ela é ao tema. Corrupção e pagamento tributos, quando eles próprios não estão diretamente envolvidos, de fato fornecem um quadro referencial de fácil identificação por qualquer setor da sociedade e do Estado – aquela como sendo a conduta que se espera que nenhum indivíduo ou empresa pratique; este, a forma de contribuição coletiva em que justamente se espera que todos os indivíduos e empresas se engajem.
Consta, nos votos, que “no caso concreto, além de a aquisição não ter sido qualificada, o processo administrativo sancionador já estava instaurado dois anos antes da aquisição”. Sem dúvida, tal pano de fundo convida a uma análise abrangente. Uma diferença fundamental entre os domínios tributário e financeiro é o de que a própria troca no controle acionário, neste último, pode ser algo que atenda ao interesse público e seja pelo poder público incentivada. O universo tributário não conhece, salvo por distorção impensável, casos em que semelhante expediente pudesse ser de fato usado para o interesse público, como se a mera nova gestão de empresas com passivos tributários pudesse mobilizar e legitimamente sensibilizar as autoridades tributárias.
Mais até, é amplo o leque de atos empresariais sujeitos à aprovação prévia de órgãos e entidades governamentais para registro nas Juntas Comerciais (Instrução Normativa DREI, nº 27, de 15 de setembro de 2014), com o Banco Central atuando especificamente no alvo que diz respeito a Sociedades Corretoras de Câmbio e de Títulos e Valores Mobiliários[2]. Essa circunstância torna muito mais plausível algum tipo de controle e ingerência sobre a operação societária, algo que não ocorre genericamente com empresas que simplesmente tenham passivos tributários. Não sendo consultadas para a aprovação do ato, as autoridades tributárias interessadas em recuperar dívidas podem, quando muito, esperar que as Juntas Comerciais exijam comprovantes de regularidade fiscal antes de levar a registro atos societários de troca de controle. Essa é uma formalidade que se vê ser abandonada muitas vezes e que, mesmo na melhor das hipóteses, pode vir a refletir apenas uma situação transitória em que a empresa tenha conseguido, em caráter precário, a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, para o que a legislação prevê uma pletora de instrumentos que não o pagamento efetivo do tributo.
Uma regra tributária que merece ser examinada como parâmetro em matéria de transferência da responsabilidade é a dos artigos 132 e 133, do CTN. Neles, em linha geral, se dispõe sobre o tempo durante o qual o sucessor fica responsável por atos praticados em períodos pretéritos; e sobre uma modalidade específica de verificação de incidência dessa responsabilidade, nas hipóteses em que existe uma identidade das atividades econômicas desempenhadas. A adaptação não é automática e no próprio voto vencido, do Conselheiro Marcos Martins Davidovich, essa pertinente ressalva é feita. Mas, se as figuras societárias virtualmente não têm quaisquer limites, no que diz respeito às condições em que um negócio pode passar de uma mão a outra, certa flexibilidade dos órgãos regulatórios para trabalhar com as presunções contempladas na legislação tributária, por paradoxal que seja, pode trazer segurança jurídica.
Todo um desenvolvimento teórico pode ser feito, por igual, no âmbito não da transferência da responsabilidade administrativa, em si, mas na desconsideração da personalidade jurídica que eventualmente protege os responsáveis pela prática de atos ilícitos. O ponto é sutil, mas de largo alcance. Uma coisa é afirmar que se a pessoa jurídica X praticar atos ilícitos, a pessoa jurídica Y que, num segundo momento, incorporar a pessoa jurídica X, poderá ter que arcar com a punição. Outra coisa, distinta, mas não exatamente distante, é afirmar que a pessoa jurídica Z, controladora da pessoa jurídica W, poderá ser responsabilizada pelos atos dessa última. A técnica da desconsideração da personalidade jurídica, nesse caso, poderia ter efeitos semelhantes à da transferência, a depender dos nomes e da direção dinheiro, mas a principiologia jurídica envolvida seria um tanto diferente: prazos poderiam se alargar ou diminuir, e ônus probatórios poderiam se deslocar, para citar apenas alguns exemplos.
[1] Recurso 13230, Processo CVM RJ-2007.14708, disponível em: http://www4.bcb.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=nmsSecreCRSFN:idvSecreCRSFN.
[2] Ver: http://drei.smpe.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas/titulo-menu/pasta-instrucoes-normativas-em-vigor-04/in-27-2014-altera-o-anexo-da-in-14-2013.pdf/view.