4. Pela inconstitucionalidade da Força Nacional
Conforme claramente exposto no tópico anterior, no ano de 2004, em que foi criada a Força Nacional, não havia uma lei federal que tratasse do tema e não havia nenhum convênio de cooperação firmado. Conseqüentemente, o disposto no artigo 241 da Constituição Federal não estava sendo atendido em sua plenitude, podendo a doutrina pátria considerar a Força Nacional como ilegal e inconstitucional.
De vários artigos publicados sobre o tema, destaca-se o do renomado jurista Jorge César de Assis[12], o qual referiu, de forma expressa, a inexistência de uma lei (em sentido estrito) que cuidasse do assunto. No estudo, o douto membro do Ministério Público, com razão, estabeleceu que a inexistência de lei que regulasse o tema feria não apenas o disposto no Art. 241 da Constituição Federal como também o disposto no §7º do artigo 144, também da Constituição Federal (CF), in verbis:
§ 7º - A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
Naquele contexto, fazia-se necessária a edição de uma lei em sentido formal (elaborada a partir do processo legislativo previsto no artigo 59 e seguintes, da CF), para fins de disciplinar a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
Ocorre que, a partir de 2007, com a edição da Lei nº 11.473, foi suprido o requisito então exigido pelos doutrinadores críticos da constitucionalidade da Força Nacional. A Força Nacional passou a convocar profissionais por força do convênio e atuar em diversas operações, sem ter sido afetada por nenhuma decisão judicial que atacasse a sua constitucionalidade.
Entretanto, em 12 de março de 2013, dias após a decisão judicial que firmou entendimento quanto à constitucionalidade da Força Nacional e, conseqüentemente, da sua lei e decreto regulamentador, o Poder Executivo alterou o Decreto nº 5.289/2004, em especial o art. 4º, permitindo que a Força Nacional pudesse atuar nos Estados, diretamente, por pedido de Ministro de Estado. Cumpre referir que tal medida ampliativa, da legitimidade (ativa) para solicitar a atuação da Força Nacional, não foi repetida em âmbito de lei, o que, salvo melhor juízo, abre precedente para futuros questionamentos quanto à legalidade e constitucionalidade das ações da Força Nacional em apoio exclusivo aos Ministérios.
Alguns doutrinadores e estudiosos já iniciaram a analisar de uma forma crítica a alteração do decreto, referindo que a Presidenta está formando uma “Guarda Pretoriana”, em total desrespeito aos princípios federativos.[13]O advogado João Rafael Diniz[14], é enfático ao afirmar que
“A inclusão dessas cinco palavras mágicas ao final do artigo 4º acabou por subverter por completo a razão de ser do decreto e, de quebra, burlou as determinações da Constituição Federal sobre a repartição de responsabilidades entre os entes da Federação (municípios, estados e União), o que pode ser considerado inclusive como quebra do pacto federativo. A partir de agora, qualquer ministro de Estado (todos eles subordinados à Presidência) pode solicitar ao Ministério da Justiça o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em qualquer parte do país, para defender os interesses do governo federal, sem a necessidade de qualquer autorização judicial, nem mesmo aquiescência do governo do estado em questão.”
É importante salientar que algumas ações da Força Nacional são desencadeadas para atuar em apoio a órgãos federais nas suas atribuições legais e constitucionais. É o caso das operações em áreas de fronteira, em que a Força Nacional apóia a Polícia Federal desde o ano de 2008 (Operação Sentinela)[15]. Nestes casos, não se vislumbra qualquer intervenção ou quebra do pacto federativo, já que a atuação é típica da Polícia Federal e, assim sendo, de interesse exclusivo da União.
Desde a sua edição, algumas operações foram desencadeadas por solicitação exclusiva de Ministro de Estado[16], em ações que poderiam ser executadas pelas polícias locais. Nestes casos, seria imprescindível a anuência do Governador do Estado para que não pairasse nenhuma dúvida quanto à legalidade das ações. É o caso das operações de cunho ambiental, em que poderiam ser executadas pelas polícias dos estados, já que a Polícia Federal não dispõe de exclusividade de atuação neste segmento.
É relevante mencionar, ainda, que o convênio de cooperação federativa firmado entre a União e os estados da Federação dispõe que o Governador do Estado dá anuência a União para que a Força Nacional adentre em seu território e atue em operações em apoio aos órgãos federais.[17] Tal permissão, de forma não específica, prevista em simples dispositivo de convênio, teria o condão de garantir legalidade às ações da Força Nacional nos entes federados sem pedido expresso do Governador?
Entende-se, à luz do que foi apresentado até o presente momento, que a lei que rege a Força Nacional não possui tal intenção. Vejamos o que dispõe o art. 2º, Parágrafo único da Lei nº 11.473/2007:
Parágrafo único. As atividades de cooperação federativa têm caráter consensual e serão desenvolvidas sob a coordenação conjunta da União e do Ente convenente.
Não há coordenação conjunta entre União e ente convenente em uma operação da Força Nacional que de um lado está o Ministério do Meio Ambiente (sem convênio específico) e o Ministério da Justiça (ente solicitado). O que há, aqui, é interesse exclusivo da União, sem consideração a qualquer interesse dos estados. A Lei nº 11.473/2007 tem como objetivo fortalecer a cooperação federativa, a qual resulta em atendimento de interesses recíprocos entre a União e os demais entes convenentes.
Portanto, após a imposição mediante decreto, de que a Força Nacional poderá ser requisitada por Ministro de Estado mesmo que o convênio de cooperação federativa tenha tal permissivo, passou a ser imprescindível a alteração da Lei nº 11.473/2007 para fins de conferir legalidade e constitucionalidade a essas ações. Caso contrário, estar-se-ia legislando a matéria por ato exclusivo do Poder Executivo, o que é vedado em nosso ordenamento jurídico.
5. Considerações finais
Diante dos argumentos supra referidos, conclui-se que a implementação do programa de cooperação federativa denominado Força Nacional de Segurança Pública, mesmo que não previsto expressamente no artigo 144 da Constituição Federal, está em conformidade com os ditames constitucionais. Tal constitucionalidade foi conferida após a edição da Lei nº 11.473/2007, que passou a atender a exigência do artigo 241 da Constituição: lei em sentido estrito que prevê a existência do convênio de cooperação federativa.
Mesmo havendo a previsão genérica em convênio autorizando o emprego da Força Nacional nos estados, é imprescindível a anuência ou solicitação do Governador nas operações da Força Nacional que visam executar atribuições afetas às competências das polícias e do corpo de bombeiros do ente conveniado. Como se trata de atuação conjunta, é necessário que o Estado-Membro “socorrido” tenha convênio com a União para que esta mobilize seus profissionais e, também, para que possa atendê-lo em caso de necessidade.
Que a alteração do Decreto nº 5.289/2004 ocorrida em 2013, permitindo o emprego da Força Nacional mediante solicitação direta de qualquer Ministro de Estado ao Ministério da Justiça deverá, no mínimo, ser prevista em lei, o que atualmente não ocorre. Tal modificação na legitimidade ativa para socorrer-se da Força Nacional, prevista exclusivamente em Decreto, fere os princípios de cooperação e de atuação conjunta dispostos na Lei nº 11.473/2007 e, conseqüentemente, do artigo 241 e 144, §7º, da Constituição Federal.
Por fim, diante da importância do programa de cooperação federativa denominado Força Nacional de Segurança Pública, em especial no combate aos crimes fronteiriços, ambientais e de grave repercussão, nas grandes catástrofes naturais e no auxílio às investigações, é que se impõe uma alteração legislativa significativa para fins de conferir maior legitimidade às ações da Força. E isso só é possível quando ocorrer, não apenas uma simetria entre a lei e o seu decreto regulamentador, mas também uma previsão constitucional que a consolide como um programa permanente de cooperação, visando o apoio às instituições descritas no artigo 144 da Constituição Federal.
6. Notas
[1] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/ Constituição.htm>. Acesso em 19mar 2015.
[2] Art. 2º, IX do Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007. Regulamenta a Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6017.htm. Acesso em 19 mar2015
[3] ___ Lei 11.473, de 10 de maio de 2007. Dispõe sobre cooperação federativa no âmbito da segurança pública e revoga a Lei no 10.277, de 10 de setembro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11473.htm. Acesso em 19mar 2015.
[4] ___ Decreto 6170, de 25 de julho de 2007. Dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6170.htm. Acesso em 19mar 2015.
[5] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo. 13. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
[6] Estabelece Convênio de Cooperação Federativa firmado entre a União e o Estado do Rio Grande do Sul definindo os parâmetros para cedência de profissionais para comporem o Contingente Permanente e de Pronto-Emprego da Força Nacional de Segurança Pública e dá outras providências. Disponível em http://proweb.procergs.com.br/ANEXOS/ANEXO_CON_0044_2014_3.PDF. Acesso em 19mar 2015.
[7] Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/forca-nacional/institucional. Acesso em 19mar 2015.
[8] ___ Decreto 5.289, de 29 de novembro de 2004. Disciplina a organização e o funcionamento da administração pública federal, para desenvolvimento do programa de cooperação federativa denominado Força Nacional de Segurança Pública, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5289.htm. Acesso em 19mar 2015
[9] Ministério da Justiça. Extratos de Acordo de Cooperação. Diário Oficial da União nº 170, Seção 3, pág. 54, 3 set 2007. Brasília, DF. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=3&pagina=54&data=03/09/2007. Acesso em 19 mar2015.
[10] Art. 2º, da Lei 11.473, de 10 de maio de 2007.
[11] Disponível em: http://portal.trf1.jus.br/portaltrf1/comunicacao-social/imprensa/noticias/decreto-presidencial-que-criou-a-forca-nacional-de-seguranca-publica-nao-e-inconstitucional.htm. Acesso em 19 mar 2015.
[12] ASSIS, Jorge César de. A inconstitucionalidade da Força Nacional de Segurança Pública. Site Jus Militaris. Em 03ago 2005 Disponível em http://www.jusmilitaris.com.br/novo/uploads/docs/inconstitucfnsp.pdf. Acesso em 19mar 2015.
[13] Disponível em http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/ e http://www.dm.com.br/cidades/distrito-federal/2014/04/forca-irracional-a-guarda-pretoriana-da-dilma.html. Acesso em 19mar 2015.
[14] DINIZ, João Rafael. A nova guarda pretoriana de Dilma Roussef. Em 04 abr 2013. Disponível em http://reporterbrasil.org.br/2013/04/a-nova-guarda-pretoriana-de-dilma-rousseff/. Acesso em 19mar 2015.
[15] Ministério da Justiça. Portaria nº 654, de 18 de março de 2008. Diário Oficial da União nº 54, Seção 1, pág. 44, 19 mar 2008. Brasília, DF. Disponível em http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=44&data=19/03/2008. Acesso em 19mar 2015.
[16] Ministério da Justiça. Portaria nº 567, de 21 de março de 2014. Diário Oficial da União nº 56, Seção 1, págs. 45-46, 24 mar 2014. Brasília, DF. Disponível em http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=46&data=24/03/2014. Acesso em 19mar 2015.
[17] Cláusula Terceira – Do Emprego e Cláusula Sexta, III, “e”. Convênio de Cooperação Federativa firmado entre a União e o Estado do Rio Grande do Sul definindo os parâmetros para cedência de profissionais para comporem o Contingente Permanente e de Pronto-Emprego da Força Nacional de Segurança Pública e dá outras providências. Disponível em http://proweb.procergs.com.br/ANEXOS/ANEXO_CON_0044_2014_3.PDF. Acesso em 19mar 2015.