Inconstitucionalidade significa ir contra a Constituição Federal e seus preceitos. Implica, geralmente, em atos do Poder Público que afrontam o que está sedimentado no texto constitucional, enquanto repositório da vontade popular dos parâmetros para a organização da vida coletiva, estabelecido segundo mecanismos democráticos.
Sabendo que a sociedade muda, suas necessidades e aspirações se modificam com o tempo, a Constituição pode e deve ser atualizada, de modo a estar sempre em consonância com a transformação da realidade social. Todavia, esta mudança está sujeita a muitas limitações, tanto nos meios de fazê-la quanto naquilo que pode eventualmente ser mudado, havendo mesmo certas partes que não podem ser extirpadas ou adulteradas, sob pena de desfigurar a própria ordem constituída pela sociedade, inviabilizando a vida comum.
Dentre as matérias que não podem ser atingidas estão direitos, garantias e liberdades consagradas pela Constituição Federal de 1988. O Estado Democrático de Direito claramente as tem como reservas jurídicas intransponíveis por meio de investidas legislativas infra-constitucionais que, além de regressivas, via de regra são repressivas, ou seja: enquanto tendentes a abolir direitos, intentam suplantar conquistas históricas da experiência social e, ao criar maiores deveres, aumentam a carga de coerções para a parcela do povo atingida pela “nova” ação legislativa.
Desta feita, no bojo do art. 60, § 4.°, da Constituição Federal, que lista os conteúdos insuscetíveis de abolição por alterações no próprio texto constitucional, o inciso IV é expresso ao determinar que os direitos e garantias individuais não podem ser minimizados ou excluídos. São cláusulas pétreas. E parte considerável da comunidade jurídica entende, aliás, que não apenas os direitos individuais, mas todos os direitos que representem um ganho de valor para a condição humana – ganho este adquirido a partir de um contexto de luta por seu reconhecimento –, sendo fundamentais para a própria ordem democrática e constitucional, são impassíveis de diminuição ou erradicação.
A inimputabilidade penal como direito fundamental
Nas considerações do grande jurista Dalmo de Abreu Dallari, a PEC 171/93 – que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos –, viola a restrição do inciso IV, do art. 60 da CF/88. É abertamente contrária à Constituição e ao espírito humanizador que se consagrou desde o fim da 2ª Grande Guerra: “Não há nenhuma dúvida de que [a inimputabilidade penal de menores de 18 anos] é um direito fundamental, expressamente consagrado na Constituição, e pronto. Então, dentro dessa perspectiva, [o artigo 228] é cláusula pétrea”.
Ora, o art. 228 da CF/88 diz expressamente: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. Com isso, o dispositivo traz uma garantia individual: garante ao indivíduo que ainda não tenha dezoito anos de idade que a responsabilização de seus atos não será feita com o mesmo estatuto jurídico conferido ao maior de dezoito anos. Pois, além disso, o mesmo preceito garante ao indivíduo menor de dezoito anos que seu estatuto jurídico será condicionado por uma legislação especial, que contemple a peculiaridade de sua pessoa ainda por atingir o pleno desenvolvimento.
A bem da unidade constitucional, da integração social, e da sistematização do ordenamento jurídico, não se pode interpretar esse comando normativo separado de outras normas jurídicas destinadas à proteção dessa mesma pessoa, especialmente considerada. Normas, inclusive constitucionais, que impõem limites à punição estatal ao mesmo tempo em que instituem deveres, ao Estado e à sociedade como um todo, de lhes prover o desenvolvimento com arrimo em políticas públicas que tornem efetivos seus direitos fundamentais. Assim diz o caput do art. 227 da CF/88:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010).
[...]
E no mesmo diapasão, com referência à responsabilização dos menores de dezoito anos, vale destacar os incisos IV e V do parágrafo 3.º do mesmo artigo:
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
...
IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade;
Em vista disso, desconstruir essa conclusão direta, extraída do próprio texto constitucional, demanda um malabarismo jurídico tão grande que é capaz de por em dúvida a expertise jurídica de quem se aventura nesse sentido, ou mesmo, o que é pior, a confiança em sua honestidade intelectual. Mudar isso, além de não ser possível, constitucionalmente, destrói todo o espírito do ordenamento jurídico brasileiro com relação ao tratamento jurídico da criança e do adolescente, acarretando a revogação de significativas leis, destinadas a regulamentar o direito à especial proteção do Estado, de que são titulares aqueles indivíduos, membros da sociedade, mormente o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional.
Portanto, o caminho não passa pela desconstrução das garantias constitucionais, mas sim por conferir realidade, concretude, para a Lei Maior. Por certo que eficácia não é efetividade. Contudo, e até mesmo por isso, se não assegurarmos nem a eficácia constitucional para direitos e garantias que são condição de possibilidade do próprio ordenamento jurídico, de fato, concretamente, não teremos amparo algum para reivindicar e construir práticas sociais que assegurem a dignidade reclamada por esses direitos.
Em sério risco, o Paradigma da Humanização
Neste momento pelo qual passa a humanidade, ameaçada pela intolerância e pelo capitalismo predador, estamos lidando não apenas com embates políticos momentâneos, mas com verdadeiro choque entre paradigmas: com a visão de mundo que recobre a Humanidade. Com certeza, avança uma frenética fermentação de discursos ditos humanistas, que nominalmente defendem a defesa da sociedade, mas intentam operar sua entrega gratuita para o clamor público, com o risco de ruptura do tecido social. Troca-se, efetivamente, a Justiça pela vingança. Sérios riscos e ainda mais sérios problemas advirão se este curso desumanizador das relações sociais não for barrado.
Não se trata tão-somente do paradigma da ciência, mas de toda uma construção civilizatória baseada no bom senso. Pode-se pensar na fragilidade que há, por exemplo, na requisição que se fazia da Prudência aplicada à política, à civilidade (polis), e que foi eternizada pelos clássicos do Renascimento. Pode-se retroagir aos marcos da grande civilização criada em torno dos paradigmas judaico-cristãos. Ou podemos avançar no tempo para encontrar o Iluminismo, a humanização jurídica presente na filosofia do Esclarecimento e a previsão de que as ações públicas devem se basear na razão e não na emoção do clamor público.
Tudo isso está em jogo e o jogo do poder político, escondendo-se por trás de um suposto “realismo político” (mors tua, vita mea: “tua morte; minha vida”), abdica das políticas públicas relevantes para se servir do imediatismo. Vive-se de um lado a violência (institucional ou criminosa) e de outro o populismo jurídico que se baseia em proposições legais absolutamente de exceção, vingativas, repressoras de direitos e das mais legítimas demandas sociais.
Vivemos sob a estética da guerra, da violência, dos corpos emoldurados para consumo, mas abrimos mão da ética. E este talvez seja o paradigma mais sagrado que quebramos todos os dias – e sem muito remorso. O Paradigma da Ética é removido sempre que esbarra no crescimento a todo custo, seja na pesquisa médica, seja no manejo do meio ambiente.
Se hoje é a requisição da diminuição da maioridade penal, amanhã poderá ser de qualquer dos direitos civis ou políticos. No geral, não sabemos o que é direito, ética, bom senso, prudência, civilidade, dignidade humana. Não reconhecemos seus significados, não legitimamos os valores ali intencionados, porque são entraves ao capitalismo do consumo de todos os bens e da dignidade humana.
O que aprendemos com o Humanismo Jurídico é que Natureza e Razão são as fontes do direito. Naturalmente tornados iguais, sem distinção que justifique desigualdades; racionalmente educados para defender os direitos dos ataques da exceção. Porém, consumidos pelo escapismo e pelas exceções que subvertem as regras do bom senso e da Justiça, mediamos o direito pelo dinheiro, pela mercantilização.
Efetivamente, não é esta conjugação natureza/razão que se verifica nas tentativas populistas (inconstitucionais) de rebaixar a maioridade penal para os dezesseis anos. Verifica-se, sobretudo, a mercantilização da própria Justiça e o crescimento do sistema penal/carcerário. As medidas legislativas que avançam em busca da redução da maioridade penal para os dezesseis anos, além de denegar direitos mais básicos à pessoa em desenvolvimento, ainda violam preceito constitucional taxativo. Fato que ainda permite concluir que o legislador deveria conhecer o direito, a Constituição, pois, sob o Estado Democrático de Direito, não se revogam cláusulas pétreas.