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(In)constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos instituída pela Lei nº 12.711/12 e para membros do Ministério Público ou para Magistratura

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3. Ações Afirmativas 

Em síntese, ações afirmativas são políticas públicas ou privadas visando assegurar a concretização do princípio da igualdade material ou substancial, garantindo-se proteção às minorias vulneráveis em face da maioria - maioria inerente ao princípio majoritário nas democracias - como fundamento de legitimidade material do Estado Democrático de Direito.

As situações desfavoráveis a que podem estar submetidos alguns grupos de pessoas, que as tornam vulneráveis, podem advir de diferentes situações, como ocorre com os deficientes, indígenas, afrodescendentes, mulheres, idosos, crianças, dentre outros grupos que possam ser identificados como vulneráveis. Daí a justificativa sociológico-política para as Ações Afirmativas de Cotas para Deficientes, por exemplo. Espécie do gênero Ações Afirmativas.

Chamo a atenção para um detalhe importante consistente na relação de gênero e espécie entre as Ações Afirmativas Lato Sensu e o Sistema de Cotas, e, ainda, para o caráter mais específico do Sistema de Cotas Raciais.

Explico: As Ações Afirmativas são, essencialmente, Políticas Públicas ou Privadas destinadas a promover a igualdade substancial, ou material, através da discriminação positiva, mediante tratamento favorável e diferenciado, de pessoas que estejam em situação desfavorável na sociedade, geralmente experimentando discriminação e estagnação social, a fim de garantir o acesso dessa pessoas aos bens sociais. Como exemplo de ação afirmativa lato sensu pode-se apontar o art. 7º, inciso XX, da Constituição Federal, que protege constitucionalmente o mercado de trabalho da mulher.

Por sua vez, o Sistema de Cotas para Raciais, configura-se em subespécie de Ação Afirmativa, o que não altera ou afeta o seu fundamento de validade e aplicação prática.

O principal e mais equivocado argumento que se opõe às ações afirmativas, especialmente em relação ao sistema de cotas, é o critério da meritocracia pura. A mínima reflexão derruba este argumento que se constitui em discurso repugnante e falacioso.

Defende-se a ideia que os processos seletivos a cargos públicos e a universidades devem ser baseados no critério exclusivo da meritocracia pura, a fim de selecionar os melhores. O famoso ditado “que vença o melhor!”.

Contudo, não se leva em consideração as condições ofertadas a cada um dos agentes envolvidos na disputa. Segundo Daniel Sarmento[5], a expressão “ação afirmativa” surge em uma executive order do Presidente Kennedy em 1961, e ganha força no governo Lyndon Johnson, que se estende de 1963 a 1969. Este afirmava: “você não pega uma pessoa que foi tolhida por correntes e a liberta, a põe na linha de partida de uma corrida e então diz – ‘você está livre para competir com os outros’ – e ainda acredita que está sendo totalmente imparcial.”.

A identificação de situações desiguais a que submetidos os agentes concorrentes deu origem a Teoria do Impacto Desproporcional (disparate impact doctrine), questão pioneiramente levantada no Brasil pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, que dita que a verificação da desigualdade material deve ser aferida com foco no resultado da situação fática, e não no tratamento jurídico-formal estabelecido na norma.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de declarar a constitucionalidade da adoção de cotas raciais para ingresso em universidades – ADPF 186-DF – o que demonstra o acerto e conformidade jurídica deste tipo de ação afirmativa com o ordenamento jurídico.


4. Destinatário das Ações Afirmativas

Edilson Vitorelli, citando Rogério Nunes dos Anjos Filho, denuncia a existência de confusão conceitual entre as expressões “minorias” e “grupos vulneráveis”, apontando a necessidade de diferenciação e definição destes termos. Ainda Edilson Vitorelli[6], citando, desta feita, Muniz Sodré, conceitua minoria da seguinte forma:

“Vulnerabilidade jurídico-social, pois não é institucionalizada pelas regras do ordenamento vigente, possui identidade em constante estado de reconstrução e luta contra o poder hegemônico mediante estratégias discursivas. Em síntese, minoria não é algo que se define por números, mas pela participação efetiva na sociedade e nos órgãos de poder.”(grifei).

Embora a definição conceitual de minoria já tenha sido inclusive debatida no âmbito da ONU até a década de 80, o debate restou abandonado por parte de Órgãos Oficiais, tarefa que coube a doutrina finalizar, e que sobreleva pontuar, conforme supracitado.

Nesse vértice, o grupo que detém o poder em um Estado (poder político, social e econômico), mesmo sendo numericamente menor, não se apresenta vulnerável e, portanto, não se enquadra no conceito de minoria.

Minorias, assim, não é um conceito relacionado necessariamente a quantidade numérica, de forma que é possível afirmar que grupos numericamente superiores, que não gozem de acesso aos bens sociais, podem ser classificados como grupos vulneráveis, como minorias.

Conquanto haja quem pretenda distinguir minorias de grupos de vulneráveis, entendo desprovida de relevância prática essa distinção, razão pela qual utilizarei o termo minoria como sinônimo de grupos vulneráveis

Dessa forma, considerando que as ações afirmativas são políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio da igualdade material às minorias vulneráveis, ineludivelmente, este é o público destinatário delas.


5. Da Constitucionalidade das Cotas Raciais em Concursos Públicos

Os principais argumentos contrários à constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos, mesmo para aqueles que são favoráveis às cotas com outros critérios como o social, são:

1) concurso público não seria sede para a concretização da igualdade material ou da justiça social, pois o seu objetivo, constitucionalmente fixado, seria o de selecionar os melhores e mais eficientes agentes públicos em razão do princípio da eficiência que rege a administração pública, e, por isto, não seria meio adequado para a efetivação de políticas públicas afirmativas;

2) o concurso público deve assegurar o princípio democrático de acesso aos cargos e funções públicos, o que seria prejudicado com a reserva de cotas raciais.

Ora, se o concurso público busca sempre a seleção dos melhores a fim de concretizar o princípio da eficiência (art. 37, caput, CF/88) e, por isto, as cotas raciais em concursos públicos não seriam compatíveis com a constituição, o que dizer, então, a respeito das cotas para deficientes físicos.

É possível dizer que nos concursos públicos em que há a reserva de cotas a deficientes físicos estar-se-ia sempre garantindo, prioritariamente e exclusivamente, a seleção dos melhores tecnicamente? Com o devido e merecido respeito à capacidade profissional das pessoas portadoras de necessidades especiais, é evidente que a resposta deve ser negativa.

Diante do choque entre o princípio da eficiência e o princípio da igualdade – em sentido material – deve sempre prevalecer o primeiro? Seria esta a solução apontada pelo supraprincípio da proporcionalidade quando instado a orientar a atividade ponderativa do intérprete diante da colisão entre valores com envergadura constitucional? A par de opiniões em contrário, entendo ser óbvio que não!

A reserva de cotas em concursos públicos para deficientes físicos exsurgiu exatamente da necessidade de se tratar desigualmente os desiguais na exata medida em que se desigualam, como forma de assegurar a igualdade substancial dessas pessoas consideradas vulneráveis, diante das condições materiais desfavoráveis em que se encontram comparativamente à ampla concorrência.

Disto, nota-se que este primeiro argumento – a garantia e prevalência do princípio da eficiência - é mais um argumento falacioso para tentar justificar a impossibilidade de cotas raciais em concursos públicos e, por conseguinte, deve ser descartado.

Por outro lado, o argumento da inconstitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos por suposta ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos também é inválido, porém apenas parcialmente. Parcialmente porque há casos em que este princípio constitucional deve preponderar, uma vez que nesses casos sequer há choque com o princípio da igualdade, conforme adiante será demonstrado.

Ressalte-se que as cotas raciais não impedem o acesso da ampla concorrência aos cargos públicos, e que elas obedecem ao princípio da temporariedade da mesma forma como ocorre com toda e qualquer ação afirmativa – até que se as situações de injusta desigualdade desapareçam e tornam-se desnecessárias.

Outrossim, o referido argumento de ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos, entendido e aplicado de forma irrestrita, constitui-se apenas em forma dissimulada e transmudada do já referido argumento falacioso da meritocracia pura, e deve ser rejeitado pelos mesmos motivos já apontados em relação a este.

Contrario sensu, este argumento não é totalmente equivocado, pois há situações em que a presença de preconceito racial não ameaça ou dificulta o acesso a cargos públicos por parte da população negra, fazendo com que o fundamento de validade e justificação da exigência de cotas raciais desapareça.

E quais seriam essas situações em que mesmo se admitindo a existência de preconceito racial este seria indiferente na disputa? Em concursos públicos cujos critérios de avaliação sejam exclusivamente objetivos, o que afasta a possibilidade de subjetivismos e parcialidades (espaços onde surgiriam oportunidades para a discriminação racial).

Nesses casos, os verdadeiros obstáculos e desequilíbrios na disputa adviriam apenas, muito possivelmente, de diferenças sociais (condições materiais desiguais – pobres e ricos), e não raciais, o que poderia, em tese, justificar eventuais cotas sociais.

Portanto, afigurar-se-ia inconstitucional e injustificável o critério de discriminação positiva baseado na cor da pele em certames cujos critérios avaliativos sejam exclusivamente objetivos. Por isto, a afirmação da validade parcial do argumento de ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos.

Agora, para retornar à questão do preconceito racial como obstáculo ao acesso a cargos públicos de relevante poder decisório, o que justificaria a exigência de cotas raciais, relembre-se as conclusões a que chegou o sociólogo Carlos Antonio Costa Ribeiro a respeito da existência de obstáculos de ordem racial no acesso às classes mais altas da sociedade, o que restou ratificado pelo Censo do Poder Judiciário efetivado pelo Conselho Nacional de Justiça recente no ano de 2014 – apenas 1,4% dos juízes são negros.

Soma-se à circunstância apontada no parágrafo supra a inegável existência de preconceito racial velado ou dissimulado existente em nossa cultura combinada e agravada pela insegurança jurídica, que atinge os candidatos negros, decorrente da existência de fases e critérios subjetivos em concursos públicos, tais como provas orais e entrevistas pessoais, estas últimas cuja existência nos dias de hoje apresenta-se injustificável sob o ponto de vista constitucional.

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Todos que já se submeteram a provas orais e a outras fases subjetivas de avaliação, em que o candidato é identificado, sabem a insegurança jurídica que representa o subjetivismo existente nestas fases/avaliações, que, com muita frequência, constituem-se em espaços para o arbítrio puro dos examinadores.

Além disso, há jurisprudência assente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 70, §1º, da Resolução nº 75 de 12/05/2009, que regulamenta concursos públicos no âmbito da magistratura que preceitua que não é possível a revisão, em sede de recurso, da nota e dos critérios de avaliação de provas orais – critérios esses que não existem e/ou não são declarados na maioria dos concursos.

 Transcrevo o aludido dispositivo:

“Art. 70. O candidato poderá interpor recurso, sem efeito suspensivo, no prazo de 2 (dois) dias úteis, contado do dia imediatamente seguinte ao da publicação do ato impugnado.

§ 1º É irretratável em sede recursal a nota atribuída na prova oral.” (Grifei).

Isto dificulta ainda mais a possibilidade de sindicabilidade dos atos administrativos das bancas examinadoras em provas orais de caráter inegavelmente subjetivo, o que contribui para o aumento da possibilidade do cometimento de arbitrariedades em avaliações de natureza subjetiva em que o candidato fica à frente de seus examinadores e à mercê de critérios de avaliação não revelados e irrecorríveis.

Conquanto a vulnerabilidade decorrente do subjetivismo das avaliações referidas acima atinja a todos os candidatos, independentemente da cor ou classe social, a combinação desse subjetivismo irrecorrível com o reconhecimento da existência de racismo velado na cultura da sociedade brasileira, especialmente nas classes mais altas, conforme apontado nos estudos do multicitado sociólogo e no Censo do Poder Judiciário - CNJ, refletem e explicam o porquê do inexpressivo número de juízes negros – 1,4% do total em todo o país.

A par do exemplo da magistratura, é evidente que este é só um exemplo, e ninguém há como negar que essa proporção também possa ser verificável em outras carreiras ou áreas profissionais se perscrutados os seus dados em relação ao número de integrantes que as compõe, como, por exemplo, no âmbito do Ministério Público.

Diante desse quadro, feliz o elogio feito pelo Procurador Geral da República – Janot – ao apreciar Procedimento de Controle Administrativo nº 1283/2014-11, instaurado no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP -, ao Ministério Público do Estado da Bahia pela iniciativa pioneira de reservar cotas raciais para negros no Concurso Público para Provimento de Cargos de Membros do Ministério Público, considerando a relevância deste cargo para a sociedade, assim como o resultado positivo dessa iniciativa para toda a coletividade.

Não se deve pretender a resolução de todos os problemas sociais da população negra ou parda através do emprego das cotas raciais para acesso a cargos públicos, como se fosse a Panacéia - na mitologia grega Panacéia (ou Panacea em latim) era a deusa da cura, filha de Asclépio e neta de Apollo. O termo Panacéia também é muito utilizado com o significado de remédio para todos os males - que irá resolver todos os problemas sociais referentes ao racismo no Brasil.

Contudo, é um ótimo passo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que reconhece seus defeitos e distorções atacando as causas que perpetuam as desigualdades e injustiças, com vistas à construção de uma sociedade democrática não só do ponto de vista formal, mas também material e substancial.    


Notas

[1] BARBUJANI, Guido, A invenção das raças. Ed. Contexto, 2007, p. 156. Apud Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 34.

[2] Apud VITORELLI, op. Cit, p. 36.

[3] Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 45-46.

[4] Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 56.

[5] Sarmento, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In Piovesan, Flávia; Martins de Souza, Douglas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. Apud: Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição.

[6] Apud VITORELLI, op. Cit, p. 25.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Mendonça de Freitas

Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça Substituto do Estado do Acre. Ex-analista Judiciário da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Aprovado em 6 (seis) concursos de Analista Judiciário em Tribunais Federais, 4 (quatro) concursos de Técnico Judiciário de Tribunais Federais, Ex-Agente de Polícia Científica, ex-servidor do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Paulo Henrique Mendonça. (In)constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos instituída pela Lei nº 12.711/12 e para membros do Ministério Público ou para Magistratura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4310, 20 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38167. Acesso em: 26 abr. 2024.

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