Com a recente discussão a respeito do PL 4330/04 e com a grande possibilidade de que ele seja realmente aprovado pelo congresso nacional, começou-se a ouvir algumas vozes que pregam a sua inconstitucionalidade[1]. Mas será que a lei que prevê a terceirização, em especial da atividade-fim de uma empresa é, de fato, inconstitucional?
Para que se responda isso, ainda mais em um breve texto que tem a pretensão de ser lido, devem ser analisados apenas alguns parâmetros.
Primeiro não se pode negar e é corrente, que o valor médio salarial dos terceirizados é inferior ao dos contratados de forma direta. A terceirização da atividade-fim não garante o padrão salarial dos empregados contratados diretamente. Antes pelo contrário, é fato a redução significativa no ganho dos trabalhadores terceirizados em empresas de telecomunicações, por exemplo, que exercem trabalho ligado à atividade-fim. O mesmo ocorre com as subcontratações havidas pelos bancos privados, que terceirizam parte de sua atividade-fim, ao arrepio do artigo 17 da lei 4.595/65[2], às empresas de cobrança e de captação de clientes. Estes empregados são contratados por um salário, na média, inferior em 50% o salário dos empregados bancários, já bastante defasado nos últimos anos.
Depois, a terceirização da atividade-fim cria (o que a terceirização de atividade-meio já faz com bastante generosidade), empregados de segunda categoria dentro da mesma empresa. Ora, se o objeto a ser perseguido pelos trabalhadores é o mesmo, a inclusão interna e a sensação de pertença devem ser as mesmas. Se o trabalho destina-se a garantir o acúmulo de dinheiro nas mãos do tomador dos serviços, como justifico que dois trabalhadores que geram exatamente a mesma quantidade de riqueza, ou seja, que exerçam as mesmas atividades recebam salários diversos? Quanto a isso, chamo a atenção para a Declaração da OIT sobre os Princípios de Direitos fundamentais, havida na 86a Sessão da entidade em Genebra na Suíça, em seu item 2, letra “d”, repudia toda e qualquer forma de discriminação em matéria de emprego[3], o que, aliás, é o que faz a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5o, cabeça[4], bem como a CLT em seu artigo 461[5].
De outro lado, não há, pela legislação nacional, espaço para dupla exploração da “mais valia”. Isso quer dizer que como é inerente ao contrato de emprego a sujeição, a exploração econômica do empresário sobre o empregado, o limite para que isso ocorra deve levar em conta o que preceitua a Constituição federal. E é nesta mesma constituição, em seu artigo 7o, cabeça[6], que consta os limites interpretativos em matéria laboral. Se toda e qualquer alteração legislativa e, se serve para os legisladores, em razão da harmonia dos poderes, serve para os juristas, deve vir para a melhoria da condição social dos trabalhadores, é evidente que toda e qualquer interpretação deve ter por objetivo a melhoria da condição social do trabalhador. De que forma há melhoria na condição social (e não apenas econômica) do trabalhador quanto está ele sujeito à dupla exploração da “mais valia”? Quando está ele exposto à dupla subordinação? Quanto ele se sujeita a dois senhores? Esta dupla exploração da “mais valia”, dupla subordinação e dupla sujeição aplica-se perfeitamente à terceirização, em razão de que, pelo que preceitua o artigo 6o, cabeça, e parágrafo único, da CLT[7], a subordinação jurídica é estrutural e envolve não apenas ordens diretas mas ordens estruturais envolvendo não só a atividade-fim, mas igualmente e pelos mesmos motivos, a atividade-meio da empresa tomadora.
Ainda, se é direito dos trabalhadores “relação de emprego”, nos exatos termos do inciso I do artigo 7o da CF/88, e se os incisos sujeitam-se ao “caput”, como justificar que uma lei possa garantir tamanho retrocesso, em situação onde haja dupla exploração da “mais valia”, dupla subordinação e dupla sujeição? Ou seja, como pode haver dois senhores, quando a regra, aquela prevista na época da aprovação da Constituição, era a contratação direta, sem intermediários, nos termos dos artigos 2o e 3o da CLT[8]? A lei da terceirização altera, por via transversa, sem legitimação democrática, a Constituição. E o pior é que, para a doutrina (v. Bonavides), as normas de direitos sociais são, assim como as que prevêem os direitos e deveres individuais e coletivos, cláusulas pétreas. Ora, uma lei que autoriza a subcontratação de trabalhadores, uma vez aprovada, “revogará” em parte o que preceitua o artigo 7o, I, primeira parte, da CF/88, e o fará por “quorum” simples, dando à CF/88 a hierarquia de lei ordinária, retirando seu caráter de fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico nacional[9].
Por fim, não podemos perder de vista que a Constituição é fruto do processo de entendimento comunicativo. Há uma presunção de que os deputados eleitos atuaram sem as sujeições aos poderes administrativos e do dinheiro e que os debates da assembléia nacional constituinte foram abertos a todos em igualdade de condições, com os mesmos espaços para deliberações, reuniões e acessos. Este debate fruto do processo comunicativo de formação da constituição é que é a regra quanto à forma de se ler e interpretar a constituição. E mesmo nos casos em que a Constituição autoriza a ação estratégica/instrumental (meios/fins), a forma, nestes casos, de interpretação destas situações devem ter por conta o processo de formação da Constituição, comunicativo. Se faz parte do processo comunicativo as ações de coordenação e de entendimento, ainda que se tenha uma situação em que haja sujeição (como por exemplo a relação de emprego), a forma que se deve ler esta relação é com base no entendimento, inclusão do outro e democracia, comunicativa portanto. Isso, aliás, está escrito nos artigos 1o, III e IV[10], 3o, I, III e IV[11] e 4o, II[12], sem falar do preâmbulo, sem função vinculante conforme o STF, que assegura os direitos sociais, a igualdade a justiça como valores supremos[13].
Se a terceirização, no mundo fático, cria dois tipos de empregados dentro do mesmo campo de trabalho e se permite a dupla exploração da “mais valia”, dupla subordinação e dupla sujeição, é ela, então inconstitucional.
Tirem suas conclusões!
[1] http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-Terceirizar-atividade-finalistica-e-inconstitucional-e-atinge-direitos-fundamentais-/4/33268 - acesso 14 de abril de 2015, às 17h49min.
[2] Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.
[3] http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/international_labour_standards/pub/declaracao_oit_293.pdf - acesso 14 de abril de 2015, às 17h59min.
[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...).
[5] Art. 461 - Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.
[6] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
[7] Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio. (destaco para bem demonstrar).
[8] Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
§ 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.
§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.
[9] Os direitos sociais dos trabalhadores foram pensados sob a lógica da contratação direta. Relação empregado-empregador. Isso porque esta era a regra na época. Não se tinha como parâmetro, salvo exceções, os contratos triangulares de emprego/trabalho, como por exemplo, a terceirização. É por isso que alterar, por via legislativa, este “binômio” empregado-empregador, é alterar por via transversa a Constituição federal. Note-se que a mutação constitucional, que bem poderia ser invocada aqui, limita-se à própria Constituição, no caso da parte trabalhista, ao que consta do artigo 7, caput, melhoria da condição social dos trabalhadores.
[10] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (...).
[11] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[12] Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
II - prevalência dos direitos humanos; (...).
[13] “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.