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Autonomia da vontade e/ou autonomia privada?

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21/04/2015 às 08:44
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3 – LIMITAÇÕES À AUTONOMIA DA VONTADE E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Em relação ao atual ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seus arts. 1º[1], IV, e 170[2], promove a livre iniciativa, especialmente quando é prevista a liberdade contratual, além do que seu art. 5º[3], II, serve também como fundamento constitucional da autonomia da vontade. George Marmelstein (2013, p. 102) relata que mesmo a Constituição Brasileira sendo “tão generosa ao proclamar direitos”, não há “nenhum dispositivo que consagre claramente o direito à autonomia privada”, mas menciona, como “fonte normativa para a proteção da autonomia da vontade, o art. 5º, II”.

Contudo, a autonomia privada encontra fronteiras em normas legais e na ordem pública. De acordo com Maria Helena Diniz (2011, p. 42): “É preciso não olvidar que a liberdade contratual não é ilimitada ou absoluta, pois está limitada pela supremacia da ordem pública, que veda convenções que lhe sejam contrárias e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contraentes está subordinada ao interesse coletivo”.

Constata-se que na esfera do direito civil, o princípio da autonomia privada é restringido pelo dirigismo contratual, que regula as medidas restritivas do Estado visando à supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses individuais dos contratantes, com o propósito de administrar o equilíbrio contratual, prevenindo abusos e de proteger os economicamente mais fracos, conciliando sempre os interesses da sociedade.

Novamente, Maria Helena Diniz (2011, p. 45): “O Estado intervém no contrato, não só mediante a aplicação de normas de ordem pública (RT, 516:150), mas também com a adoção da revisão judicial dos contratos, alterando-os, estabelecendo-lhes condições de execução, ou mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-se em princípios de boa-fé e de supremacia do interesse coletivo, no amparo do fraco contra o forte, hipótese em que a vontade estatal substitui a dos contratantes, valendo a sentença como se fosse declaração volitiva do interessado.”

Assim, a nova postura estatal de tomar a responsabilidade para si e intervir nos contratos, podendo modificá-los, rescindi-los e até definir uma solução diferente do acordado, decorre da mudança axiológica sofrida pelo direito civil. Os princípios da autonomia privada e da força obrigatória dos contratos tiveram sua abrangência reduzida pela boa-fé, a função social do contrato e a equidade entre as partes.

Há que se destacar também que, com a promulgação da Constituição de 1988, inicia-se em nosso ordenamento o fenômeno chamado de Constitucionalização do Direito Privado, o que significa dizer que os princípios básicos do direito privado partem do Código Civil para a Constituição, pilar central do ordenamento. Nas palavras de Francisco Amaral (2008, p. 52): “Os valores fundamentais do Direito em geral e do civil em particular, como a justiça, a segurança, a liberdade, a igualdade, o direito à vida, a propriedade, o contrato, o direito de herança, etc., saem do seu habitat natural, que era o Código Civil, e passam ao domínio do Texto Constitucional que, além de reunir os princípios básicos da ordem jurídica, também estabelece os direitos e deveres do cidadão e organiza a estrutura político administrativa do Estado.”

Sobre esse momento, a opinião de Carmem Lúcia Silveira Ramos (1998, p. 10-11) é pertinente: “Ao recepcionar-se na Constituição Federal temas que compreendiam, na dicotomia, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema do Direito Civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada à sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o casamento, tornando-se plural quanto à sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias específicas, como o consumidor, e inseriu-se a preocupação com a justiça distributiva.”

Eros Belin de Moura Cordeiro (2009, p. 222), a partir da concentração de capital e da massificação da sociedade, fenômenos do século XX determinantes à caracterização da fragilidade do ser humano, alerta que “a ‘socialização’ do direito civil pode servir de alavanca para um redimensionamento do direito civil, que deixa de ser garantista de interesses de certa classe e passa a proteger os interesses da pessoa concreta, inserida em determinado contexto social. Em outras palavras: o sujeito do direito civil clássico cede espaço para a pessoa, centro do direito civil contemporâneo. Tal ordem de ideias, cujos vetores centrais são a pessoa humana e a solidariedade social, é que foram cristalizadas na ordem constitucional brasileira inaugurada em 1988.”

Antes, reputava-se a dignidade sob uma perspectiva individual, como um imperativo a sociedade. Protegia-se o homem frente ao Estado, mas não se falava em proteção mútua às suas dignidades. Por tais razões Anderson Schreiber (2005, p. 54-5) comenta: “O Estado passa a intervir em defesa dos mais vulneráveis, limitando e redimensionando a atuação privada. Mas a consagração da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social como princípios fundamentais das Constituições Contemporâneas passa a sujeitar o exercício de qualquer situação jurídica subjetiva – e, sobretudo, das situações subjetivas patrimoniais – ao respeito dos múltiplos aspectos da personalidade de todos aqueles sobre os quais este exercício possa se refletir. A própria liberdade e a autonomia privada passam a estar, em si, condicionadas ao atendimento da dignidade da pessoa humana, subvertendo o esquema axiológico do liberalismo burguês.”

Promulgada em 1988, a Constituição Cidadã prevê uma proteção heterogênea à autonomia privada. Quando pertinente às liberdades existenciais, como as de comunicação e expressão, de religião, de associação e de profissão, entre outras, por uma lado existe um amparo constitucional acentuado, pois esses são direitos tidos como indispensáveis para a dignidade humana, ainda que em caso de conflito, podem ser ponderadas com outros direitos e princípios constitucionais. Por outro lado, menos intensamente quando se trata de relações de caráter exclusivamente patrimonial.

Importante a opinião de Daniel Sarmento (2005, p. 209) quando ensina que: “...é evidente que se trata de uma autonomia fortemente limitada por uma série de outros valores constitucionais e interesses públicos, e que pode ser objeto de restrições legislativas, desde que proporcionais. E, naturalmente, tal autonomia também se sujeita ao controle judicial, fundado em regras jurídicas cogentes ditadas pelo legislador com fundamento na Lei Maior, em cláusulas gerais interpretadas à luz da normativa constitucional ou, ainda, na aplicação direta dos princípios da própria Constituição.”

Depreende-se, portanto, que a autonomia privada possui também um caráter constitucional, entretanto isso não significa que ela não é passível de intervenções. Pelo contrário, tais intervenções devem ser tidas como naturais e em alguns casos como imprescindíveis, tendo em vista a irregularidade econômica e social atual. A prioridade é promover interesses relevantes à sociedade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observa-se atualmente o advento de um novo paradigma de Estado, o da pós-modernidade. Enquanto ciência social, o direito está conectado às transformações civis, econômicas e políticas, portanto, relacionado à própria vida humana. Assim, quando suas fontes, instrumentos e metodologia se tornam obsoletos e insuficientes, ocorre a necessidade de adequar as estruturas aos novos questionamentos que se apresentam.

Nesse patamar, evidenciam-se as mutações observadas no Direito Civil, pilar fundamental do direito por excelência, que vem cada vez mais sendo relido à luz da Constituição Federal, criando um Direito Civil Constitucional, atribuindo aos conteúdos clássicos uma nova relação axiológica.

O princípio da autonomia da vontade, que, no liberalismo, fundia-se com a concepção de soberania absoluta dos particulares, agora, inclusive, recebe nomenclatura diversa. Começa-se a utilizar o termo autonomia privada, como forma de demonstrar a superação desse dogma do arbítrio ilimitado e supremo.

A autonomia privada eleva-se à condição de direito fundamental e é, ao mesmo tempo, delimitada por outros direitos fundamentais.

Sendo assim, depreende-se que a autonomia da vontade, convertida em autonomia privada, prossegue como um princípio do direito privado, mas com um aspecto renovado, que se ajusta ao momento contemporâneo globalizado, plural e hipercomplexo.


REFERÊNCIAS

AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

_________ A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas estrutural e funcional. Revista de Informação Legislativa, v. 26, n. 102, p. 207-230, abr./jun. 1989. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/181930>. Acesso em: 27 set. 2014.

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Notas

[1]Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

[2]Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços de seus processos de elaboração e prestação;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

[3]Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

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Sobre a autora
Fernanda Cadavid Ratti

Acadêmica de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC, campus de Joaçaba(SC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RATTI, Fernanda Cadavid. Autonomia da vontade e/ou autonomia privada? . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4311, 21 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38318. Acesso em: 2 nov. 2024.

Mais informações

Orientador:Roni Edson Fabro-Mestrando em Direitos Fundamentais Civis da UNOESC. Mestre em Relações Internacionais para o MERCOSUL. Especialista em Direito Civil e em Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da UNOESC Joaçaba(SC). Advogado

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