O novo CPC visto por um advogado

20/04/2015 às 22:40
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Aviso aos defensores apaixonados do novo CPC. Este não é um texto laudatório do mesmo.

Acabei hoje minha primeira leitura do novo CPC. Não consultei absolutamente nada do que foi escrito por outros juristas sobre o texto. Advogado atuante na área Cível há 25 anos, preferi fazer minha própria leitura crítica do CPC. Não me agrada assumir os preconceitos de outros profissionais cujas leituras podem ter sido menos cuidadosas que a minha.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi a incapacidade dos autores do projeto de fazer uma distinção entre os atos processuais e os suportes dos mesmos. Apesar do novo CPC dedicar uma seção e vários artigos para regular os atos eletrônicos (art. 193 a 199), o texto faz referência à internet, recursos tecnológicos, videoconferências, transmissão de dados e à natureza digital ou eletrônica dos atos processuais em dezenas outros artigos. Citarei aqui aqueles que me chamaram a atenção: art. 193, art. 236 §3o., art. 257 II, art. 263, art. 270, art. 285, art. 287, art. 334 §7o., art. 340, art. 367 §4o., art. 385 §3o., art. 411 II, art. 422 §1o. e §3o., art. 425 §2o., art. 439, art. 453 §1o., art. 460 §3o., art. 461 §2o., art. 464 §4o., art. 465 III,  art. 477 §4o., art. 513 III, art. 522 parágrafo único, art. 712,  art. 741, art. 745, art. 746 §2o., art. 755 §3o., art. 837, art. 854, art. 876 III, art. 879 II, art. 880 §3o., art. 882, art. 886 IV, art. 887 §2o., art. 892, art. 915 §4o., art. 927 §5o., art. 930, art. 937 §4o., art. 943, art. 979, art. 1007 §3o., art. 1018 §2o., art. 1019 III e art. 1029 §1o., todos do novo CPC.

Desde os primórdios da história escrita, os atos jurídicos vem sendo praticados e registrados. Eles já tiveram diversos suportes: tabuletas de argila, couro, folha de chumbo ou de cobre, papiro e papel. O antigo CPC fazia distinção entre documentos públicos e privados (quando regulava meios de provas), mas não dizia qual seria o suporte dos atos processuais. Estava implícito que o mesmo seria o papel. Os atos poderiam ser datilografados, impressos e até mediante a aposição de carimbos que eram preenchidos à mão pelos servidores.

Identificar o ato ao seu suporte não me parece uma boa técnica processual. O novo CPC nasceu com um fetiche textual e, pior, sob o domínio de uma ideia fixa que me parece ridícula: a de que o atual estágio de desenvolvimento tecnológico não pode ser superado. Não só pode como será. O que virá depois do processo digital é uma incógnita, mas não uma impossibilidade técnica. Portanto, ao identificar atos ao seu suporte o novo CPC nasceu velho e pode estar condenado a envelhecer rapidamente (pois é sabido que os progressos da tecnologia são hoje mais rápidos do que eram há 25 anos, quando eu comecei a advogar).

O fetiche do ato eletrônico, da videoconferência, da internet domina o texto do novo CPC. E no entanto, o texto contém alguns anacronismos evidentes. Este é o caso, por exemplo, a citação por rádio (art. 256 §2o.). Há outros que já entram em vigor tendo caído em desuso. Este é o caso da anacrônica citação através de publicação em jornal (art. 257 parágrafo único), do anúncio em jornal nas ações possessórias (art. 554 §3o.) e da publicação de edital na imprensa em caso de leilão (art. 887 §4o. e §5o.). Os jornais já migraram para a internet. Alguns deles deixaram de circular de forma impressa. Os atos nestes casos não serão praticados como definidos. Só poderão ser praticados pela internet.

O anacronismo mais delicioso do novo CPC, entretanto, é outro. Obviamente estou a me referir do livro de registro rubricado pelo Juiz que conterá o compromisso tomado do tutor ou curador designado (art. 759 §1o.). Porque não produzir um arquivo digital indexado por número de processo e nome contendo os termos assinados e digitalizados?

O novo CPC aboliu quase todos os incidentes que eram prescritos no CPC que ainda está em vigor. As matérias referentes aos mesmos deverão ser levantadas na defesa ou dentro dos próprios autos pelas partes. Não está claro se o Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica (art. 133 a 137) será processado ou não em apartado, pois os bens dos sócios e dos responsáveis são sujeitos à execução (art. 790, II e VII) o que, pelo menos em tese, permitiria ao exequente requerer a execução contra os mesmos nos próprios autos. Também não está claro como e onde serão executadas as indenizações processuais e multas que podem ser impostas às partes pelo Juiz no curso da ação de conhecimento, no cumprimento da sentença, na execução de título extra judicial e na fase recursal.

A tutela antecipada pode ser requerida a qualquer tempo. Há qualquer tempo pode ser revogada. O processamento do pedido é feito nos próprios autos (na primeira instância e, conforme o caso, na segunda instância). As medidas que visam assegurar o cumprimento das mesmas são expedidas nos próprios autos. Isto parece indicar que as indenizações por danos processuais e as multas referidas no parágrafo anterior poderão ser cobradas nos próprios autos independentemente da fase em que o processo se encontre. A possibilidade de revogação da tutela antecipada e, em alguns casos, da redução de multas a critério do Juiz causa séria insegurança jurídica.

O pedido deve ser interpretado (art. 322 §2o.). Num primeiro momento isto me causou bastante estranhamento, pois a norma parece permitir ao Juiz atribuir ao autor mais do que ele pediu ou algo diferente do que foi pedido desde que a interpretação leve em conta o “conjunto da postulação”. Isto, porém, não poderá ocorrer. O art. 492 impede o Juiz de proferir decisão diversa da pedida ou condenar o réu em objeto superior ou diferente do que foi pedido. Além disto, o art.  1013 § 2o. II faz referência expressa ao julgamento da apelação quando for decretada a nulidade da sentença que não for congruente com os limites do pedido ou da causa de pedir. Portanto, os pedidos devem ser interpretados mas o poder conferido ao Juiz não é elástico como parece dar a entender o referido art. 322 §2o.

Não me agrada a técnica utilizada no art. 337 do novo CPC. O texto faz referência expressa a várias matérias que devem ser levantadas pelo réu na sua defesa, muitas das quais correspondem a incidentes processuais prescritos no CPC que ainda está em vigor. O que me causou estranhamento foi a possibilidade outorgada ao Juiz de conhecer de ofício (ou seja, independentemente de alegação da parte) de quase todas as defesas processuais e preliminares (art. 337, §5o.). A obrigação imposta ao réu deixa de existir, pois sua incúria pode ser corrigida pelo Juiz. Se não for, o processo pode virar uma piada de mal gosto. Posso imaginar algumas destas situações.

Suponhamos, por exemplo, que uma determinada ação pode ser fulminada pela coisa julgada e que o advogado réu não alegue a questão na contestação apesar de ter juntado cópia fiel da sentença de mérito em pedido idêntico anteriormente formulado pelo autor. Se o Juiz consultar rapidamente os autos, como quase sempre ocorre, ele não tomará conhecimento deste fato prejudicial ao pedido. O autor, que pode não ter interesse no reconhecimento da coisa julgada, faz de conta que a outra sentença transitada em julgado não está nos autos. O processo seguirá seu curso e poderá até ser desnecessariamente instruído. Somente quando for julgado o Juiz proferirá decisão sobre a questão prejudicial. Mas se ele se omitir o réu que não alegou a matéria na defesa poderá interpor recurso de apelação invocando nulidade da sentença que deixou de dar valor à coisa julgada idêntica anterior.

Ainda na hipótese acima, suponhamos que o réu alegue em contra-razões que a matéria não pode ser apreciada pelo Tribunal porque não foi apreciada pela primeira instância. O art. 1009 §1o., permite o conhecimento das questões “resolvidas na fase de conhecimento” que não estavam sujeitas à agravo. Não pode o Tribunal conhecer de questões que não foram decididas pelo Juiz a quo. Apenas para efeito de argumentação, suponhamos agora que o apelante requeira o reconhecimento da coisa julgada pela segunda instância e que o apelado não exija que suas contra razões tenham efeito dúplice (art. 1009, §1o.). O que deveria fazer o Tribunal? Anular a sentença e devolver os autos ao Juiz de primeira instância sem que tenha sido feito pedido para tanto (e sem poder conhecer matéria não decidida pela primeira instância) ou reconhecer a validade da coisa julgada com supressão de instância?

Aparentemente moderno o novo CPC vai gerar várias discussões bizantinas. Se o leitor crê que o exemplo acima é muito sofisticado, mostrarei agora como alguns conceitos mal definidos podem geral discussões intermináveis. O autor é conferido o direito de optar pela não realização de audiência de conciliação (art.  319, III). O art. 334 diz que o Juiz designará audiência. O §8o. permite ao Juiz punir a parte que não comparecer a audiência. O que deve prevalecer neste caso: o poder do Juiz de designar audiência e punir a parte que não comparecer ou o direito da parte de não comparecer na audiência que desde logo afirmou que não queria que fosse realizada? Suponha agora que o Juiz puna a parte apesar dela ter afirmado que não queria a realização da audiência.

O novo CPC não diz como e quando esta punição será executada. O novo CPC também não permite a interposição de Agravo contra esta decisão, pois a lista do art. 1015 é exaustiva e o capitulo que trata da audiência e da referida pena não diz expressamente que é cabível agravo (art. 1015 XIII). Em tese a parte somente poderá impugnar a decisão injusta e onerosa quando da Apelação, mas então já terá desembolsado o equivalente a uma multa indevida. Um leitor atento diria, neste momento, que o próprio Juiz poderia ser punido (art. 143). Onde e quando o Juiz seria punido? Nos próprios autos a requerimento da parte? Não, pois o Juiz não é parte naquela ação, além disto ele é obviamente suspeito para apreciar questão que lhe afeta pessoalmente. Onde a outra ação seria proposta? Pior, como pode o Juiz ser punido por, sem dolo ou fraude, ter exercido um poder lhe conferido pelo art. 334 caput e §8o.? O novo CPC é bonitinho e… ordinário.

Há sérias incongruências neste novo CPC. Uma delas é a questão da distribuição do onus da prova. A regra geral é prescrita no art. 373, mas as partes podem fazer convenções sobre a matéria (art. 373, §3o.). Ao Juiz é conferido o poder/dever de modificar o onus de prova (art. 373, §1o.), desde que o faça em decisão fundamentada. É obvio que o Juiz poderá contrariar a decisão das partes e a regra geral de distribuição do encargo probatório. Esta sua decisão estará sujeita a Agravo (art. 1015, XI). Que ganho há para a celeridade do processo neste caso? Nenhum. Muito pelo contrário, o novo poder atribuído ao Juiz poderá atulhar os TJs de Agravos, pois as partes poderão requerer a inversão do onus sempre que entenderem que o mesmo é necessário forçando o Juiz a decidir sobre a questão. Qualquer que seja a decisão a mesma prejudicará uma das partes dando origem a Agravos.

Sob o pretexto de moralizar o processo, o novo CPC prevê penas para os autores, para os réus, para os exequentes, para os executados e para os recorrentes. Não fiz um inventário exaustivo das penas que podem ser impostas, mas percebi que elas são várias. Tantas que certamente dificultarão e muito o exercício do direito de ação e do direito de defesa consagrados na CF/88 (art. 5o., XXXV e LV). O princípio da boa fé deveria ser a regra geral, pois a CF/88 garante a presunção de inocência (art. 5o.,LVII). Mas o CPC inverteu a regra. Em alguns casos a má fé da parte é presumida e a pena pode ser aplicada pelo Juiz sem que a mesma tenha direito a Agravo (o novo CPC, como vimos, parece permitir que a pena seja imediatamente cobrada nos próprios autos), cabendo ao punido provar quando da Apelação que agiu de maneira correta e que seu ato foi mal interpretado pelo todo poderoso Juiz de primeira instância. Advogado há 25 anos, não fiquei nada satisfeito com estas modificações. Os abusos judiciais, que já eram comuns, tendem a aumentar (especialmente nos casos em que ocorrer grande desequilíbrio econômico entre os demandantes).

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O caso do art. 287 é exemplar. A norma cria uma obrigação para a parte: a inicial deve ser acompanhada de procuração com endereço eletronico e não eletronico do advogado. Digamos que o advogado não coloque o endereço eletrônico na sua procuração. O Juiz manda o causídico emendar a inicial  na forma do art. 321, pois um dos documentos indispensáveis referidos no art. 320 (a procuração) não contém um elemento considerado obrigatório pelo art. 287 (o endereço eletronico do advogado). O que ocorreria se a inicial não fosse emendada? É obvio que o Juiz poderia indeferir a inicial, mas neste caso a parte estaria sendo punida por causa de uma infração cometida por seu defensor. A confusão entre advogado e parte neste caso é evidente e, pior, o CPC permitiria ao Juiz cassar o direito constitucional de ação da parte (art. art. 5o., XXXV) por causa de uma obrigação acessória que depende de um terceiro (seu defensor).

Além de não gostarem das partes e dos princípios constitucionais que tutelam o Processo Civil, os autores do novo CPC parecem não gostar dos advogados. O art. 235 garante a parte, ao MP e a Defensoria Pública representar o Juiz ao Corregedor ou ao CNJ. Esta garantia não foi estendida ao advogado, muito embora o Estatuto da OAB confira ao mesmo o direito de reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento” (art. 7o., XI, da Lei 8906/1994). Pode o CPC restringir o poder/dever atribuído ao advogado pelo seu Estatuto?

Mais um exemplo de desprezo pelos advogados pode facilmente apontado no novo CPC. O art. 107 traz uma lista exaustiva de direitos atribuídos aos causídicos. Mas esta lista não é identica a que consta do Estatuto da OAB (art. 7o., da Lei 8906/1994). Com base no poder lhe conferido pelo art 139, pode o Juiz impedir o advogado de exercer as prerrogativas profissionais não garantidas pelo art. 107 do novo CPC? A discussão pode parecer irrelevante, mas certamente acabará sendo feita em razão do autoritarismo manifesto de milhares de Juízes de primeira instância. O Juiz é suspeito se for inimigo ou amigo do advogado que atua no processo (art. 145 I). Se o Juiz restringir os direitos do advogado àqueles que estão prescritos no art. 107 do novo CPC o incidente de suspeição poderá ser ajuizado pelo advogado prejudicado?

Estas são apenas algumas das questões levantadas pela minha primeira leitura do novo CPC. Em breve voltarei ao assunto para apontar outros defeitos e algumas virtudes do mesmo.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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