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Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores

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01/03/2003 às 00:00
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4. Bem Jurídico Penalmente Protegido nos Crimes de Lavagem de Dinheiro:

A delimitação do bem jurídico protegido pela lei de lavagem de dinheiro é bem difícil, uma vez que a prática deste delito lesiona um grande número de bens essenciais, sendo impossível dizer qual deles detêm maior importância.

Para o Direito Penal é indispensável o aspecto social do bem jurídico, devendo ser um bem imprescindível para a convivência humana em sociedade. A partir do momento que o crime de lavagem de dinheiro para ser típico deve possuir (como elementar do tipo) um crime precedente considerado grave, então qualquer bem jurídico que se definir como único a ser protegido pela lei de lavagem de dinheiro pode prejudicar a sua real finalidade: preventiva dos próprios delitos anteriores.

Em um primeiro momento, juntamente com as primeiras aparições das práticas que configuravam um delito de lavagem de dinheiro, definia-se como sendo o bem jurídico protegido o patrimônio, por aproximar-se este delito do crime de receptação dolosa.

Logo com as primeiras discussões internacionais a respeito do delito de lavagem, que tomou maior dimensão com o tráfico de drogas, acabaram por confundir o bem jurídico do crime precedente (no caso o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins) com o de lavagem de dinheiro, dizendo alguns doutrinadores ser o bem jurídico a saúde pública.

A ordem tributária foi erigida à bem jurídico, defendendo os adeptos desse posicionamento que o delito de lavagem de dinheiro interferia e acarretava prejuízo direto para o mercado econômico quanto à arrecadação do fisco.

Mais tarde, observando a restrição que a posição acima causada, alguns doutrinadores acreditavam ser a ordem sócio-econômica como um todo o bem jurídico protegido. No mesmo sentido, outro posicionamento destacou como sendo o bem jurídico o sistema financeiro como um todo, uma vez que a lavagem de dinheiro causava um prejuízo, não apenas financeira, à ordem econômica internacional como um todo.

Todos estes bens jurídicos são, sem embargos, protegidos pela lei da lavagem de dinheiro, o que ocasionou um outro posicionamento de que o bem jurídico protegido seria a Administração da Justiça, pelo cunho preventivo que a lei representa, a partir do momento que pretende evitar o crime precedente criminalizando-se a conduta que faz dos produtos ilícitos capitais com aparência legal, com lucro certo e sem vestígios dos crimes graves.

A lei de lavagem de dinheiro comporta uma preocupação político - criminal de cunho internacional, na tentativa de se evitar o financiamento e a lucratividade de organizações criminosas (principalmente, não só), bem como de evitar a impossibilidade de obtenção de provas que venham a incriminar os autores dos crimes graves, mesmo dos crimes contra o sistema financeiro.

Ante a dificuldade de se delimitar o bem jurídico protegido pela lei de lavagem de dinheiro os países, sabendo ser obrigatória a procedência ilícita do dinheiro lavado e, portanto, de crime grave, decidiram elencar um rol de crimes que pudessem configurar como elementar do tipo penal de lavagem de dinheiro.

Em uma primeira geração, originada pelas discussões da Convenção de Viena de 1988, o crime precedente ficou sendo apenas o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (talvez influenciada pela explosão lucrativa que o tráfico de drogas gerou por volta dos anos setenta e oitenta). Entretanto, observando que não era apenas esse delito de cunho grave e gerador de lucros exorbitantes, uma segunda geração apareceu ampliando o rol dos delitos precedentes, da qual a legislação brasileira se aproxima; foi adotada por países como a Alemanha, Espanha, Portugal e Brasil, apesar de a lei brasileira ter sido elaborada após a definição da terceira geração dos crimes precedentes.

A terceira geração prefere, por não definir de forma taxativa os delitos elementares do tipo do crime de lavagem, limitar-se a dizer "dos crimes graves", o que facilita muito mais a análise do delito de lavagem de dinheiro quando executado em pais diverso da execução do delito anterior, bem como corresponde, assim, uma verdadeira proposta preventiva político-criminal. Este posicionamento foi adotado pela Bélgica, França, Itália, México, Suíça e Estados Unidos.

O Brasil poderia ter adotado o posicionamento da terceira geração, o que possibilita uma melhor aplicabilidade da lei de lavagem de dinheiro e efetiva função de proteção aos bens jurídicos.

A lei de lavagem de dinheiro possui um bem jurídico complexo.


5. Natureza do Delito:

O delito de lavagem de dinheiro é um crime autônomo, apesar ter como elemento, obrigatoriamente, crime anterior. É autônomo por possuir todos os elementos do tipo, conduta própria e bem jurídico protegido, existe por si só, não dependendo do outro delito para existir (possui uma certa autonomia em relação aos demais tipos ainda que possa se apresentar de forma conectada a um outro tipo). O delito precedente obrigatório é elementar do tipo, frise-se, não o produto lavado não for ilícito não há que se falar em lavagem de dinheiro.

É um crime comum, ou seja, o agente do fato pode ser qualquer pessoa, não uma classe determinada de autores, o agente é indeterminado.

A maioria de seus dispositivos comporta a materialidade do delito, ou seja, caracterizam-no como crime material ou crime de resultado; são aqueles cuja conduta está relacionada com o resultado previsto no tipo, a não ocorrência desse resultado impede a consumação do crime (comporta as condutas comissivas e comissivas por omissão).

Entretanto, apresenta um dispositivo de mera conduta, no artigo 1°, § 2°, inciso II, quando diz: incorre, ainda, na mesma pena quem: II - participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei. Os delitos de mera conduta (ou crimes de atividade) são aqueles, no dizer de Maurach, em que a ação humana esgota a descrição do tipo, ´a própria ação constitui o ponto final do conteúdo típico; o resultado causal da ação, se eventualmente existente, não entra em consideração para o juízo de tipicidade, pois o tipo desses delitos encerra, de forma nítida, um desvalor da ação proibida. (TOLEDO, 1999, p.142).

Os delitos de mera conduta são formais.

Admitem claramente a tentativa às condutas comissivas do tipo penal da lei de lavagem de dinheiro. É um delito permanente. Ambas as condutas principais descritas no tipo penal : "ocultar ou dissimular" admitem a sustentação através do decurso do tempo; viabilizam a sua manutenção ou permanência com o transcurso do tempo.

Como ensina Roxin,

Delito permanente é aquele em que o delito não está concluído com a realização do tipo; senão que se mantêm por vontade delitiva do autor tanto tempo como subsiste o estado ilícito criado pelo mesmo. (ROXIN,1992, p.156).

A jurisprudência brasileira compreende o crime permanente como sendo:

Ocultar coloca o infrator na situação de flagrância, enquanto o objeto permanece escondido, o que patenteia os requisitos para a decretação de prisão preventiva ( STJ, RHC, n. 4.642 -2, rel. Fláques Scartezzini, DJU, de 21.08.95, p. 25.380).

O ato de ocultar coisa proveniente de crime configura, em tese, infração de natureza permanente, e, enquanto não cessar a permanência, entende-se o agente em flagrante delito (artigo 303, CPP_ TJ/MG, HC rel. Higa Nabukatsu, RT620/345).

Por ser um crime permanente não se pode falar da aplicação do Princípio da Anterioridade, artigo 5°, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988. Muito se discutiu a respeito da aplicação deste princípio aos crimes de lavagem de dinheiro no Brasil, uma vez que a lei foi publicada apenas no ano de 1998, o que proibiria a aplicação da mesma para os delitos desta natureza que tivessem sido praticados anteriormente, entretanto, tal argumentação decai por completo quando se trata de crime permanente.


6. Momentos da execução do delito lavagem de dinheiro:

O delito de lavagem de dinheiro possui três momentos de execução. O delito esgota-se e se configura apenas por uma das fases, não sendo necessária as demais para que o crime se consuma, pois é crime permanente, como acima esclarecido.

O primeiro momento é o de "ocultar", conduta descrita no tipo penal da lei brasileira, como na maior parte das legislações estrangeiras também. A ocultação consiste em ´desembaraçar-se´ materialmente de grande quantidade de dinheiro negro ou sujo. Geralmente a ocultação ocorre em localidade distinta de onde foi praticado o crime precedente.

Com a ocultação o bem é destinado a um local que possa ao mesmo tempo, ´camuflar´ o bem, direito ou valor arrecadado de maneira ilícita; é direcionado a locais tradicionais, como os Bancos e Instituições Financeiras, ou não-tradicionais, como Cassinos, Casas de Câmbios, ou, ainda para negócios de condições e natureza variadas, como a aplicação em hotéis, restaurantes, etc.

Exemplos da ocultação são o contrabando de dinheiro, passando-o pela fronteira de outro país, a cumplicidade do próprio pessoal do Banco e Instituições Financeiras que, muitas vezes recusam-se a dar informações devido as grandes quantidades investidas provenientes de dinheiro sujo ou negro [3], quando o autor mistura fundos lícitos com os ilícitos, as aplicações em entidades financeiras realizadas de maneira ilícita, etc.

O segundo momento da execução é o "mascaramento", uma etapa muito meticulosa e de grandes manobras, é a ocultação do produto ilícito mediante a realização de inúmeras transações financeiras. Diferencia-se pelo fato de ser a tentativa de fazer desaparecer o vínculo entre o criminoso e o bem procedente da sua atuação. É, com todas as palavras, a tentativa de se evitar a pegada ou rastro do dinheiro pelas autoridades, ou seja, apagar as pegadas contábeis destes fundos ilícitos através de um complexo sistema de transações financeiras dificultando a detectação desses fundos às autoridades.

Exemplos do mascaramento são a conversão de dinheiro em instrumentos financeiros, a aquisição de bens materiais com dinheiro em espécie, transferência eletrônica de fundos, etc.

Cada operação financeira realizada na fase do mascaramento geralmente ocorre em locais extremamente diferenciados, podendo ser realizado uma aplicação em fundos na Suíça, mais tarde esse dinheiro é trocado por libras em Londres e, posteriormente, investido na compra de imóveis na França ou na Austrália.

A ocultação e o mascaramento fazem parte da continuidade do delito, mantendo o estado de flagrância próprio dos delitos permanentes.

A terceira fase do delito de lavagem de dinheiro é a "integração", quando o dinheiro já lavado volta para reintegrar o mercado financeiro. Nesta fase o dinheiro sujo ou negro já assumiu uma feição legal, uma aparência legal, já não se tem mais como incriminar o autor devido à dificuldade para as autoridades obterem provas, que foram quase que definitivamente destruídas pelas fases anteriores.

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O dinheiro pode ser utilizado no sistema econômico e financeiro como se se tratasse de dinheiro licitamente obtido, há agora uma explicação aparentemente legítima para a riqueza do autor. O dinheiro lavado na economia aparece como investimentos normais, créditos ou investimentos de poupança.

São exemplos claros de integração vendas de bens imóveis, empresas de fachada, empréstimos simulados, a cumplicidade de banqueiros estrangeiros, etc.

Para facilitar, um exemplo de todo o processo do delito de lavagem de dinheiro: um traficante de entorpecentes e drogas afins, arrecada uma quantia equivalente a quinhentos mil reais; abre uma conta fantasma no City Bank para ocultar o dinheiro proveniente do tráfico. Mais tarde retira certa quantia e aplica em fundos em um Banco Suíço, retira outra quantia e investe em turismo na Austrália, fecha a conta fantasma e pega o restante dos investimentos para uma aplicação em Bolsas de Valores, todo este processo é o mascaramento do dinheiro. Posteriormente, integra certa quantia no mercado financeiro brasileiro com a compra de uma casa noturna, como se o dinheiro fosse proveniente de investimentos lícitos e de negócios lucrativos.


7. Elementares do Tipo:

Capítulo I - Artigo 1° - Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

II - de terrorismo e seu financiamento;

III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;

IV - de extorsão mediante seqüestro;

V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão dos atos administrativos;

VI - contra o sistema financeiro nacional;

VII - praticado por organização criminosa;

VIII - de tráfico ilícito de órgãos ou pessoas;

Pena: reclusão de três a dez anos e multa.

Primeiramente, são elementos descritivos objetivos:

*condutas principais Ocultar ou Dissimular;

*objeto material: bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crimes;

*bem jurídico: complexo, por comportar mais de um (como anteriormente discutido_ mantêm-se a preferência pelo bem jurídico Administração da Justiça por possibilitar uma maior absorção de todos os bens jurídicos que se pretende proteger, bem como demonstra a finalidade preventiva da lei);

*resultado: ocultação, dissimulação de produto ilícito, destruição de provas de crime grave precedente, manipulação do sistema financeiro e do mercado econômico por dinheiro sujo ou negro;

*sujeitos da conduta: ativo - qualquer pessoa; passivo - Administração Pública, Justiça Pública, ou, ainda, como preferem alguns doutrinadores difuso, devido a grande dimensão de prejudicados, direta ou indiretamente;

*atribuição: esgota-se com a configuração da tipicidade e ilicitude, impossível a verificação da culpabilidade. É crime material quanto às condutas comissivas e omissivas impróprias (comissivas por omissão) admitindo a tentativa. Quanto à mera conduta, esgota-se pelo simples fato de participar, exaurindo-se neste momento a atribuição.

Quanto aos elementos descritivos circunstanciais, quando o legislador delimita a conduta, não se fazem presentes neste artigo primeiro, caput e incisos.

Elemento normativo, sem embargos, são os crimes taxados pelo legislador brasileiro, de índole jurídica (foram descritos no tipo pelo legislador).

Elemento pessoal é o dolo (psicológico ou intelectual), a conduta ocultar ou dissimular não comporta o elemento pessoal da culpa strictu sensu.

Não possui elementos subjetivos.

Quanto ao parágrafo primeiro do artigo primeiro:

§1° - Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo:

I - os converte em ativos lícitos;

II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros;

As condutas principais continuam sendo ocultar ou dissimular; são condutas - meio todos os verbos dos incisos, que objetivam garantir a ocultação ou a dissimulação.

As modalidades de conduta podem ser diretas, quando o autor do delito de lavagem de dinheiro é o mesmo que o do crime precedente, e indireta, quando é terceiro que pratica o crime de lavagem, ou seja, que não praticou o delito anterior necessário para configurar a lavagem de dinheiro.

O parágrafo segundo do artigo primeiro traz uma conduta indireta em seu inciso primeiro: ´utiliza, a atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo´.

O inciso segundo do parágrafo segundo traz um delito formal de mera conduta "participar", como já ficou esclarecido anteriormente.

A tentativa é punida de acordo com o artigo 14, do Código Penal.

A lei brasileira comporta alguns problemas de relevância, primeiro, descreve como crime precedente o terrorismo, mas não existe uma tipificação do que seja o terrorismo para o Direito brasileiro; segundo, no artigo primeiro, parágrafo quarto, diz que se os crimes descritos nos incisos de I a VI forem praticados por organizações criminosas terão a pena aumentada de um a dois terços, mas ao mesmo tempo, traz o inciso VII, do artigo primeiro dizendo "praticado por organização criminosa", uma verdadeira incoerência; terceiro, no parágrafo quinto do artigo primeiro traz como causa de diminuição de pena a delação premiada, já descrita em lei própria, sendo então sem grande função este parágrafo.

São estas as explicações a serem feitas a respeito das elementares do tipo do delito de lavagem de dinheiro.

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Sobre a autora
Cláudia Fernandes dos Santos

bacharel em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Cláudia Fernandes. Lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3838. Acesso em: 19 abr. 2024.

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