Sumário. 1. A Emenda Constitucional nº 39 de 19/12/2002. 2. Epistemologia jurídica e pós-modernidade. 3. Pós-positivismo, Direito tributário e Financeiro. 4. Justiça tributária como elemento transformador entre o Direito tributário e o excesso tributário. 5. Justiça tributária e transformação: o Princípio Constitucional do Justo Gasto do Tributo Afetado. 6. Síntese das idéias expostas.
1. A Emenda Constitucional nº 39 de 19/12/2002.
No apagar das luzes do ano que passou, mais exatamente, no dia 19 de dezembro, a Mesa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgou a seguinte Emenda Constitucional:
"Art. 1º. A Constituição Federal passa a vigorar acrescida do seguinte art. 149-A.
"Art. 149-A - Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.
Parágrafo Único - É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica".
A Emenda Constitucional acima transcrita, por certo suscitará um amplo debate no meio jurídico-tributário, em especial no seio da tradicional dogmática tributária, a respeito de sua constitucionalidade ou não, inclusive, das leis que porventura serão editadas a partir dela. Neste breve artigo, pretendemos ofertar a nossa colaboração para esta fértil discussão, porém, desde já alertando ao caro leitor, que seguiremos por outros caminhos que não o estritamente dogmático, fundando premissas em uma Filosofia da Tributação [1] que arbitrariamente nominamos de pós-moderna e pós-positivista.
Outrossim, sensíveis que somos ao verdadeiro "giro hermenêutico" porque está passando a Ciência do Direito, e, por conseguinte, a Ciência do Direito Financeiro e Tributário, primeiro trataremos ainda que a passos largos, da nova feição da epistemologia jurídica na pós-modernidade, para depois, sobre tal alicerce teórico, lançarmos algumas reflexões sobre as conseqüências da promulgação da Emenda Constitucional nº 39/2002.
2. Epistemologia Jurídica e Pós-Modernidade.
É recomendável para um tratamento adequado do tema proposto, Justiça Tributária e a Emenda Constitucional nº 39/2002, ainda que perfunctoriamente, situarmos a Ciência do Direito Tributário, que antes de ser tributário é Direito, no quadro das ciências sociais da pós-modernidade. Assim o fazendo, por outras linhas, e em outra época, estamos nós novamente invocando as lições de Alfredo Augusto Becker sobre "o sistema dos fundamentos óbvios", só que desta feita, com outros objetivos, que não aqueles que na modernidade animaram o eminente jurista gaúcho.
Bem já nos alertou Boaventura de Souza Santos [2], que estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa ordem científica, na ciência moderna o conhecimento avançava pela especialização, pela busca do racionalismo cartesiano, neste sentido ele era tanto mais rigoroso quanto mais restrito era o objeto sobre o qual incidia, havia uma nítida segregação do saber, por conseguinte, uma compartimentabilização do conhecimento ao mesmo tempo em que imperava uma severa vigilância nas fronteiras das disciplinas, para reprimir o cientista que quisesse transpor tais limites, fazendo do cientista um ignorante especializado. Kelsen, na seara jurídica, foi um dos baluartes deste modelo.
O modelo científico pugnado pela ciência moderna, no campo jurídico, se por um lado produziu um reconhecido avanço racional, por outro, reduziu a complexidade da vida à secura da dogmática, o que a ciência jurídica da pós-modernidade quer superar ao redescobrir o mundo filosófico, ético, sociológico entre outros, em busca de uma prudência aristotélica perdida pela modernidade. A verdade que nos foi revelada, ainda que como legado importante da modernidade, é que os fatos observados pelas ciências têm vindo a escapar ao regime do isolamento até então proposto, os objetos têm fronteiras cada vez menos definidas; são nas mais das vezes constituídos por anéis que se entrecruzam em teias complexas com os dos restantes objetos, a tal ponto que os objetos em si são menos reais que as relações entre eles, como então criar um isolamento prisional para o objeto jurídico tributário?
No caso dos tributos "contribuições sociais", objeto deste estudo, a questão então é dramática, temas como, e.g, a natureza jurídica das contribuições sociais; a destinação do valor arrecadado como elemento que influencia na natureza jurídica ou não; são trabalhados hodiernamente, mediante teorias [3] que buscam explicá-los através de um conhecimento que extrapole os parcos limites de uma dogmática estritamente normativista, indo além fronteiras, ao encontro de uma epistemologia tributária, agregadora, híbrida, plural, lingüística, porém, acima de tudo compromissada com uma postura ética, tanto do fisco quanto do contribuinte. [4]
Neste sentido, o conhecimento jurídico volta a ser uma aventura encantada, uma busca da totalidade, da complexidade, uma superação dos dualismos natureza/cultura, observador/observado, coletivo/individual etc. O universo jurídico pós-moderno não é de delimitação tão-somente, mas, também de mistura, de celebração do cruzamento, do híbrido, do complexo, do plural, do concreto, do retórico. Muito mais do que se ter um objeto jurídico cartesianamente determinado, o que temos hoje, são temáticas, agrupamentos de objetos, relações, galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros, formando um enorme mundo jurídico comunicacional, onde ganha cada dia mais relevo, estudos ao modo de uma "situação comunicativa" tal como pugnada por Jürgen Habermas [5], ou na linha de uma "semiótica jurídica", tão bem capitaneada pelo professor de Direito Tributário da PUC e da USP, Paulo de Barros Carvalho [6].
Falar em linguagem comunicacional, em relações sujeito-a-sujeito, em temáticas como agrupamentos de objeto é reconhecer a complexidade do conhecimento na pós-modernidade, o complexus como bem ensina Edgard Morin [7], significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o jurídico, o político, o filosófico, o sociológico, o psicológico, o afetivo etc), e há um tecido interdependente, interativo, unindo o todo e as partes e as partes entre si, por isso a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Dito isto, releva a importância de que a ciência do direito tributário deva ser encarada sob estas perspectivas da pós-modernidade, para que só assim, possamos alcançar respostas satisfatórias para os problemas tributários que nos afligem no dia a dia. Sentimentos como estes, faz com que juristas como Miguel Reale [8], cheguem a falar num pensamento jurídico conjetural, para significar que o Direito sendo uma das dimensões da vida humana, de sua experiência, não pode deixar de refletir as perplexidades e complexidades conaturais ao ser humano, em cuja atividade individual e coletiva, a flexível conjetura atende mais aos valores existenciais do que a pretensas certezas do racionalismo rigoroso e restrito.
É verdade que a ciência moderna legou-nos, insista-se, um conhecimento funcional do mundo que alargou extraordinariamente a nossa perspectiva de sobrevivência. Todavia, hoje em dia não se trata tão-só de sobreviver, mas, também, de como viver, como não só sobreviver, mas, também, como diminuir a miséria total que assola este país. Para isto, é necessária uma outra forma de conhecimento, compreensivo, íntimo, e que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos. Não se trata mais do espanto medieval perante uma realidade hostil possuída do sopro da divindade, mas, antes de tudo da prudência perante um mundo que, apesar de domesticado, nos mostra cada dia mais a precariedade do sentido de nossas vidas, em meio a um turbilhão de desigualdade social, pobreza [9] e miserabilidade crescentes.
O que acima foi dito, nos remete de imediato à necessidade de uma nova metodologia jurídica, de um novo pensar jurídico, voltado para solucionar os conflitos complexos de uma sociedade pluralista, exigindo, destarte, a consideração na aplicação do direito de conhecimentos que até então eram considerados ajurídicos, como sabiamente aduz o professor Vicente de Paulo Barretto [10], "o direito pós-moderno aparece, então, quando o lemos sob essa nova ótica, não como instrumento de conservação social, mas sim como agente da mudança social.
No próximo tópico veremos como a pós-modernidade veio a se manifestar no direito atual, para só assim entabularmos sugestões de como então deve se portar (s.m.j) o cientista do direito tributário nesta complexa pós-modernidade.
3. Pós-positivismo, Direito Tributário e Financeiro.
Como bem definiu o professor de Direito Constitucional Luís Roberto Barroso [11], os traços característicos do pós-positivismo são basicamente, um conjunto de idéias plurais que ultrapassam os limites de um legalismo estrito do positivismo-normativista, sem recorrer às categorias da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sobressaem também, marcas de uma forte ascensão dos valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos humanos fundamentais, logo, com o pós-positivismo a discussão ética volta ao centro do Direito. O pluralismo epistemológico incide na temática jurídica, fazendo com que surja uma nova hermenêutica, onde mais do que a razão cartesiana do ´sim´ ou ´não´, está presente a ponderação de interesses e a reelaboração teórica, filosófica e prática do estudo do Direito.
No direito tributário atual, o pós-positivismo percute fortemente, em especial, na hermenêutica tributária e na aplicação dos princípios constitucionais tributários frente a uma resolução efetiva dos casos concretos. Princípios como do Justo Gasto do Tributo Afetado [12], da Capacidade Contributiva [13], Transparência Fiscal [14], Moralidade Tributária [15], Solidariedade Fiscal [16], Justiça Tributária, Intributabilidade do Mínimo Existencial, Cidadania Fiscal Unilateral e Bilateral [17], Ética Fiscal Pública e Privada [18], Razoabilidade, [19] Proporcionalidade [20], são princípios cuja materialidade tributária ganha importância decisiva e de destaque, no limiar do Direito Tributário do século XXI.
O Direito Financeiro, ainda que matéria apenas didaticamente separada do Direito Tributário, sofre também o impacto de uma visão pós-positivista e não pode ser visto e estudado de uma forma isolada, compartimentalizada do Direito Tributário e dos outros ramos do Direito e das ciências afins, e quem melhor escreve sobre tal acontecimento é o professor Ricardo Lobo Torres, que em obra já clássica [21], trata com rigor sobre as temáticas da Ética Orçamentária; Legitimidade do Estado Orçamentário; Justiça Orçamentária, Segurança Orçamentária etc., abrindo assim, um novo foco hermenêutico que só vem enriquecer ainda mais a epistemologia jurídica que se inicia pujante no século XXI.
Dentro desta perspectiva, no próximo tópico trataremos da virtude da Justiça Tributária, que é como nós já antecipamos, uma mediania ética entre o Direito Tributário e o Excesso Tributário. É certo que todos os princípios jurídicos acima citados, buscam a implantação de virtudes em nossa vida social tributária, e.g, solidariedade, transparência fiscal, igualdade, justo gasto dos tributos afetados etc; mas o ápice de todos estes princípios, é o Princípio da Justiça Tributária.
A justiça não é uma virtude como as outras, já esclareceu André Comte-Sponville [22], ela é o horizonte de todas e a lei de sua coexistência, "Virtude completa" dizia Aristóteles. Todo valor a supõe; toda a humanidade a requer. Não que ela faça as vezes da felicidade, mas, certamente, nenhuma felicidade a dispensa. Portanto, felizes aqueles que têm fome de justiça tributária, porque nunca serão saciados. Devemos como imperativo existencial, sentir mais fome de justiça tributária, porque só assim faremos justiça tributária, porquanto essa fome, cuja insaciabilidade nos é imanente, é a razão da estatuição de nossos deveres e direitos frente ao fisco brasileiro. Sem dúvida alguma, que a justiça tributária absoluta sempre nos faltará, bem assim também, a justiça como algo absoluto nos é inacessível, porém, é justamente esta falta que nos move a buscá-la, porque como já ensinou Miguel Reale, o homem é o único ser cujo ser é o seu dever-ser. [23]. A justiça tributária como elemento transformador, como sendo uma virtude ética de mediania é o que veremos doravante.
4. Justiça Tributária como elemento transformador entre o Direito Tributário e o Excesso Tributário.
Ética é Justiça já nos ensinou o professor Olinto A. Pergoraro [24]. Portanto, a justiça está no centro de qualquer discussão ética. Viver eticamente é viver conforme a justiça. Tributar e gastar de forma ética é tributar e gastar conforme a justiça tributária. Porém, uma teoria da justiça tributária, centrada exclusivamente no aspecto jurídico dogmático é insuficiente. Daí porque no pós-positivismo, a ordem jurídico-tributária será tanto mais estável e eficiente do ponto de vista social, quanto mais for animada pelas qualidades humanas, afetivas, psicológicas e morais.
Em outras palavras, o princípio da justiça tributária encontra vida, alma e impulso na virtude da justiça. Esta leva o contribuinte virtuoso a viver como cidadão que luta por uma ordem tributária socialmente mais justa. Somos éticos, justos e virtuosos, no espaço social, ninguém é etico para si mesmo; somos éticos em relação aos outros [25], neste sentido, ética tributária é a prática da justiça tributária, ou, comportamento ético tributário é, antes de tudo, comportamento segundo a justiça tributária, e conforme já sabemos, a ética tributária é fiscal privada (contribuinte) e fiscal pública (Estado), ambos, com deveres e direitos na relação jurídico-tributária.
Pensar a ética na tributação, é saber que a ética se preocupa com as formas humanas de resolver as contradições entre necessidade e possibilidade, entre o individual e o social, entre o econômico e o moral, entre o corporal e psíquico, entre o natural e o cultural, e entre a inteligência e a vontade [26]. Solucionar estas aparentes dualidades é uma missão para ética, em especial, para ética tributária que é o meio-termo necessário para superação destas contradições que em síntese, são as contradições do próprio homem.
Justiça é algo que quando realizada produz no ser humano uma mudança interior, uma transformação [27]. Um advogado quando patrocina uma causa justa, o defensor quando defende uma causa justa, e o juiz quando julga de forma justa, produzem justiça e são produzidos pela justiça, uma vez que após a vivência pessoal da justiça, nos transformamos, não somos mais os mesmos, fomos espiritualmente modificados pela justiça. Eis aí um primeiro princípio: a justiça tributária é transformadora!
No dia a dia da luta forense, os profissionais da área tributária aplicam dezenas de vezes as normas tributárias previstas no Texto Constitucional, no Código Tributário Nacional, em leis infraconstitucionais, em resoluções, convênios, portarias etc. Perguntamos, estamos nós observando e aplicando o direito tributário? Claro que sim. Então, estamos nós fazendo justiça tributária? Nem sempre. Só há justiça tributária quando há transformação, mera aplicação do direito tributário não é fazer justiça tributária, eis aí um segundo princípio.
O ser humano é um ser de mudanças, pois nunca está pronto, está sempre se fazendo, física, psíquica, social e culturalmente. O profissional do direito tributário não está infenso a isto, ao aplicar o direito tributário, produz mudanças na sociedade em que vive, todavia, há mudanças e mudanças. Há mudanças jurídicas que não transformam nossa estrutura de base nem de nossa sociedade, são mudanças superficiais, meramente quantitativas, e.g, uma mera demanda tributária, onde um magistrado aplica a lei tributária e apenas conserva o status quo, reconhecendo a legitimidade de determinada lei, que destina os valores de uma contribuição social a tal órgão, mas, não cria mecanismos de aferição do justo gasto deste tributo afetado.
Mas, há mudanças jurídicas, demandas judiciais, doutrinas, decisões etc., que são verdadeiras transformações alquímicas, capazes de dar novo sentido à vida do profissional da área tributária e inclusive, da sociedade em que milita, tamanha a profundidade da experiência vivida. Nesse caso, estamos diante da justiça tributária como dimensão profunda do ser humano, como momento necessário do desabrochar de um novo espaço de paz. É o que se espera no estudo das contribuições sociais, mudanças, mudanças...
É preciso distinguir (não separar!) o direito tributário, enquanto sistema de veículos introdutores de normas jurídicas na dicção de Paulo de Barros Carvalho, da justiça tributária, o primeiro, quer ser racional, seguro, rigoroso e acima de tudo funcional; já a segunda, está mais voltada para aquelas qualidades do espírito humano, tais como, amor, compaixão, solidariedade, transparência, harmonia, que sobejam em muito os enunciados prescritivos da ordem jurídico-tributária. Ambos dialogam entre si, porém, uma coisa é a fonte maior, a justiça tributária, outra é a sua canalização para o aproveitamento jurídico-social, metaforicamente, o cano de água (direito tributário posto) não é a água (justiça tributária) que jorra da fonte. Noutra metáfora, permita-nos o paciente leitor, o direito tributário deve ser como uma vela acessa. O que ilumina é a chama (justiça tributária), não a vela (o direito tributário). O direito tributário (a vela) é o suporte funcional para que a chama (justiça tributária) queime, irradiando luz e calor para toda sociedade. A vela é o direito tributário, e a chama é a justiça tributária, objetivo da prática transformadora, conseqüentemente, da prática ética para nos tornarmos pessoas melhores, logo, contribuintes e entes tributantes mais justos.
Então, saber discernir o direito tributário do excesso tributário, é evitar o excesso e a falta (muitas vezes o simples aplicar o direito tributário é uma falta!), buscando e preferindo o meio-termo, o meio-termo não em relação ao objeto, mas em relação a nós mesmos, só assim estaremos transformando e fazendo justiça tributária, portanto, a virtude da justiça tributária é uma disposição de caráter relacionada com uma escolha transformadora, uma escolha entre dois vícios, um por excesso (excesso de tributação e desconhecimento do justo gasto do tributo afetado) e outro por falta (aplicação positivista exonerativa da tributação), pois nos vícios ou há falta ou há excesso daquilo que é conveniente, ao passo que a virtude da justiça tributária encontra e escolhe o meio-termo, a mediania aristotélica [28], que como já dissemos é transformadora.