Artigo Destaque dos editores

A argüição de descumprimento de preceito fundamental e o entendimento do Supremo Tribunal Federal

Exibindo página 2 de 3
01/03/2003 às 00:00
Leia nesta página:

III – Legitimidade ativa para propositura da ADPF:

No que se refere à legitimação ativa para a propositura da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o artigo 2º da Lei nº 9.882/99 conferiu tal legitimidade aos mesmos sujeitos aptos a propor a ação direta de inconstitucionalidade.

Assim, nos termos do art. 103 da Constituição Federal, são legitimados ativos para propositura de dita ação:

I - o Presidente da República

II - a Mesa do Senado Federal;

III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou a Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

V - o Governador de Estado ou o Governador do Distrito Federal;

VI - o Procurador-Geral da República;

VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;

IX - Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Decisão proferida pelo Ministro Carlos Velloso negou seguimento a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, em que o propositor não figurava entre os legitimados ativos acima referidos, reconhecendo-lhe a possibilidade de solicitação ao Procurador Geral da República para ver proposta pretendida ação constitucional. Verbis:

"ADPF N. 11-SP* DECISÃO: - Vistos. Trata-se de argüição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido liminar, proposta por FÁBIO MONTEIRO DE BARROS FILHO, com fundamento no art. 102, § 1º, da Constituição Federal e na Lei 9.882/99, na qual requer "a intervenção do STF, na qualidade de guardião da Constituição e do Estado de Direito, na forma da Lei 9.882, com a concessão de medida liminar" visando à "a) Suspensão do bloqueio de bens do requerente e suas empresas, para que possa desenvolver suas atividades, se necessário for para que o mesmo ofereça garantia real nos autos da ação civil pública proporcional a sua responsabilidade" (fls. 12/13), bem como "b) Suspender a sentença falimentar da CONSTRUTORA IKAL LTDA., até ao final da ação civil pública, em face da indisponibilidade de seus bens, créditos e valores depositados em conta corrente" (fl. 13). Autos conclusos nesta data. Decido. A argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ser proposta pelos legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (Lei 9.882/99, art. 2º, I), mas qualquer interessado poderá solicitar ao Procurador-Geral da República a propositura da argüição (art. 2º, § 1º). Assim posta a questão, porque o autor não é titular da legitimatio ad causam ativa, nego seguimento ao pedido e determino o seu arquivamento. Publique-se. Brasília, 30 de janeiro de 2001. Ministro CARLOS VELLOSO - Presidente - * decisão publicada no DJU de 6.2.2001". – Informativo 216.

Tal decisão foi objeto de recurso:

"Iniciado o julgamento de agravo regimental contra decisão do Min. Carlos Velloso, então Presidente, que negara seguimento à ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental por falta de legitimidade ativa ad causam, já que o autor não figura entre os legitimados para propor ação direta de inconstitucionalidade (Lei 9.882/99, art. 2º, I: "Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade;"). Após os votos dos Ministros Sydney Sanches, relator, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Nelson Jobim, Maurício Corrêa, Ilmar Galvão, Carlos Velloso, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence no sentido do desprovimento do agravo, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Marco Aurélio. ADPF (AgR) 11-SP, rel. Min. Sydney Sanches, 15.8.2002.(ADPF-11)" – Informativo 277.

Cabe ao STF, em manifestações futuras, determinar se, tal qual ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade, alguns dos legitimados ativos para a propositura da ADPF estariam sujeitos à exigência de pertinência temática. Esta seria a relação de afinidade entre o ente propositor da ação e o seu objeto institucional, que o Pretório Excelso entende ser condição objetiva para a legitimidade ativa ad causam das ações ajuizadas por Mesa de Assembléia Legislativa dos Estados e do Distrito Federal, por Governador de Estado e do Distrito Federal, Confederação sindical e entidade de classe de âmbito nacional, no atinente ao controle normativo abstrato. Tal exigência é criticada pela doutrina, pois, como salienta Gilmar Ferreira Mendes:

"Cuida-se de inequívoca restrição ao direito de propositura, que, em se tratando de processo de natureza objetiva, dificilmente poderia ser formulada até mesmo pelo legislador ordinário. A relação de pertinência assemelha-se muito ao estabelecimento de uma condição de ação – análoga, talvez, ao interesse de agir -, que não decorre dos expressos termos da Constituição e parece ser estranha à natureza do processo de controle de normas". [5]

Determinava o inciso II do art 2º da Lei 9882/99 a legitimidade de "qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público" para a propositura da argüição. Tal dispositivo foi vetado, sob o fundamento de que um acesso individual, direto e tão amplo ao Pretório Excelso afigura-se incompatível com o controle concentrado de constitucionalidade, tal qual concebido no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, implicaria considerável elevação do número de feitos a serem apreciados pela Corte Suprema.

O veto do referido inciso da Lei 9882/99 foi alvo de críticas por dados setores, que apontavam para o caráter progressista da amplitude da legitimação ativa para a propositura da ADPF, verdadeira democratização do acesso ao Supremo Tribunal Federal. Estar-se-ia, assim, a consagrar a participação efetiva do corpo social no processo de controle de constitucionalidade. Assim, restariam concretizados dois princípios constitucionais, quais sejam, o princípio democrático e o princípio do acesso ao judiciário (art.5º, XXXV, CF/88), corolário do devido processo legal.

A questão deve ser analisada com ponderação. De fato, é inegavelmente louvável a possibilidade de participação da sociedade nas questões atinentes ao controle de constitucionalidade. Contudo, uma conseqüência gravosa da legitimação universal, nos termos do vetado inciso II do art.2º da Lei 9882/99, seria uma inevitável "inflação processual" na Corte Suprema, devido ao aumento do volume de feitos a serem apreciados. Assim, seria faticamente impossível a uma corte que conta com onze ministros, atender de maneira satisfatória a tamanha demanda social. Se o STF atualmente encontra-se sobrecarregado, a situação seria ainda mais grave caso fosse conferido tão amplo acesso ao Supremo Tribunal Federal.

André Ramos Tavares aponta a existência de mecanismos aptos a minimizarem os efeitos da sobrecarga processual, v.g., pela determinação da análise efetiva das questões consideradas relevantes. Poderia ter o legislador franqueado a todos os lesados pelo ato do poder público o acesso ao STF, desde que a questão apontasse notas de relevância:

"Por fim, acentue-se que, quanto à possível sobrecarga das funções jurisdicionais, exercidas pelo Supremo Tribunal, existem alguns mecanismos dessa argüição incidental, tal como a relevância, que permitem evitar um completo afrouxamento da jurisdição constitucional abstrata". [6]

Não obstante a restrita legitimidade ativa para propor a ADPF, o art. 6º, §1º da lei regulamentadora da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental trouxe a possibilidade de participação de setores da sociedade no processo de controle de constitucionalidade, podendo o relator ouvir as partes no processo, requisitar informações adicionais, designar peritos ou comissão de peritos para emitirem pareceres sobre a questão, bem como fixar data para declarações em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria. A importância da participação da sociedade nos processos que envolvam a interpretação da Constituição já foi apontada pela doutrina alemã. Neste norte, afirma Peter Häberle que:

"Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indiretamente ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição." [7]


IV – Possibilidade de manipulação dos efeitos da decisão proferida:

Outra questão controvertida na doutrina é a possibilidade de manipulação dos efeitos da decisão proferida em sede de ADPF. Nos termos do art. 11 da Lei 9882/99, estaria o Pretório Excelso, em dadas situações, autorizado a restringir os efeitos da declaração, bem como fixar o momento a partir do qual estaria tal decisão revestida de eficácia.

Assim, em situações excepcionais ou por um imperativo de interesse público, estaria o Supremo autorizado a "flexibilizar", fundamentadamente, o postulado da nulidade da lei inconstitucional, determinando o momento de produção dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, bem com determinando a produção de efeitos ex nunc de tal declaração. Tal possibilidade permitiria adequar a produção dos efeitos da decisão, compatibilizando-a aos ditames da realidade fática e às exigências circunstanciais. Nesse sentido, assevera o Ministro Sepúlveda Pertence que:

"A alternativa radical da jurisdição constitucional ortodoxa entre a constitucionalidade plena e a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por inconstitucionalidade da lei com fulminante eficácia ex tunc faz abstração da evidência de que a implementação de uma nova ordem constitucional não é um fato instantâneo, mas um processo, no qual a possibilidade de realização da constituição - ainda quando teoricamente não se cuide de preceito de eficácia limitada - subordina-se muitas vezes a alterações da realidade fática que a viabilizem" (RECrim 147.776-8, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Há na doutrina o entendimento de que a Lei 9.882/99 ao prever a possibilidade de restrição de alguns efeitos da decisão proferida na argüição de descumprimento de preceito fundamental estaria afrontando o Texto Magno. Ressaltam que os efeitos desta decisão são inegavelmente matéria constitucional. Assim, tendo-se em vista a supremacia constitucional e o postulado da nulidade da lei incompatível com a Constituição, advogam pela inadmissibilidade da possibilidade de manipulação dos efeitos da argüição, ainda mais por determinação da legislação infraconstitucional. Estaria a lei regulamentadora da ADPF violando princípios basilares do ordenamento jurídico, como o da nulidade da lei inconstitucional e o princípio da segurança jurídica, deixando à prudente discricionariedade do STF em certas hipóteses determinar o momento de eficácia da inconstitucionalidade, comprometendo ainda o princípio da separação entre os poderes [8]

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal:

"No tocante ao art. 11 ("Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."), o Min. Néri da Silveira votou pelo indeferimento da medida cautelar por considerar que, cuidando-se de processo de natureza objetiva, não há norma constitucional que impeça o legislador ordinário autorizar o STF a restringir, em casos excepcionais, por razões de segurança jurídica, os efeitos de suas decisões. ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 5.12.2001.(ADI-2231)"– Informativo 253.


V – Da inconstitucionalidade da lei regulamentadora da ADPF:

A Lei 9.882/99 tem suscitado especulações e discussões no cenário jurídico nacional. Além das divergências de caráter doutrinário, apontam alguns inarredável inconstitucionalidade em dados dispositivos do texto legal. O inteiro teor de Lei regulamentadora da ADPF e, em especial o parágrafo único do artigo 1º, o § 3º do artigo 5º, o artigo 10, caput, e seu §3º, e o artigo 11 foram impugnados por intermédio da Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 2231, impetrada perante o Supremo Tribunal Federal pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. In verbis:

"Iniciado o julgamento de medida liminar em ação direta ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra a íntegra da Lei 9.882/99 - que dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental -, e em especial, contra o parágrafo único, inciso I, do art. 1º, o § 3º do art. 5º, o art. 10, caput e § 3º e o art. 11, todos da mesma Lei. ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 5.12.2001.(ADI-2231)" – Informativo 253.

Dentre outros argumentos apontados para a caracterização da inconstitucionalidade da Lei 9882/99, alegam os impetrantes da referida ADIn que tal norma jurídica não teria aptidão para instituir hipóteses de controle abstrato de constitucionalidade. Somente a Constituição Federal, no entendimento dos impetrantes, teria o condão de instituir controle abstrato de constitucionalidade, não o legislador ordinário. Destarte, apontam um vício formal de constitucionalidade na lei 9882/99, por ter ampliado a competência do Pretório Excelso via lei ordinária, hierarquicamente inferior à Carta Magna.

Assim,

"O Min. Néri da Silveira, relator, em face da generalidade da formulação do parágrafo único do art. 1º, considerou que esse dispositivo autorizaria, além da argüição autônoma de caráter abstrato, a argüição incidental em processos em curso, a qual não poderia ser criada pelo legislador ordinário, mas, tão-só, por via de emenda constitucional, e, portanto, proferiu voto no sentido de dar ao texto interpretação conforme à CF a fim de excluir de sua aplicação controvérsias constitucionais concretamente já postas em juízo ("Parágrafo único - Caberá também argüição de descumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição;"). Conseqüentemente, o Min. Néri também votou pelo deferimento da liminar para suspender a eficácia do § 3º do art. 5º, por estar relacionado com a argüição incidental em processos em concreto ("A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada."). ADInMC 2.231-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 5.12.2001.(ADI-2231)" – Informativo 253.

O Ministro Néri da Silveira votou pelo deferimento de liminar, visando à suspensão da eficácia do art. 5º, §3º da Lei 9882/99. A inconstitucionalidade de tal preceito já foi apontada anteriormente por Thomas da Rosa de Bustamante. Em sua lição:

"Não cremos ser possível a concessão de medida liminar deste teor, por uma simples razão: a manutenção do sistema difuso de controle de constitucionalidade no direito brasileiro. Ora, a possibilidade de suspensão de todos os feitos com base numa medida liminar chega perto do absurdo, pois pretende atribuir efeito vinculante a uma decisão que sequer é definitiva (a referente à concessão da liminar).

A propósito, a própria possibilidade de atribuição de efeito vinculante à decisão já é em si questionável, uma vez que, em tese, não caberia à norma de estatura infraconstitucional dispor sobre os efeitos de outra de índole superior.

A regra jurídica do artigo 5º, parágrafo 3º, padece de inconstitucionalidade, pois suprime a jurisdição de todos os órgãos jurisdicionais, esvaziando o instituto do controle incidental de inconstitucionalidade, implicitamente contemplado na Constituição Federal de 1988.(...) Noutros termos, a possibilidade de suspensão ou interrupção de processos ou mesmo de efeitos de decisões judiciais que pronunciassem pela inconstitucionalidade de uma regra jurídica somente poderia ser veiculada caso houvesse, anteriormente, uma Emenda Constitucional modificando o controle de constitucionalidade incidental ou pelo menos restringindo-o expressamente." [grifos nossos]. [9]

No tocante à alegada inconstitucionalidade do art. 11 da Lei 9882/99, vide o item anterior, referente à produção de efeitos da decisão proferida em sede de ADPF.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Reinaldo Daniel Moreira

Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Reinaldo Daniel. A argüição de descumprimento de preceito fundamental e o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3856. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos