Sumário. 1. Introdução. 2. Dimensão analítico-conceitual: 2.1. O mandado de segurança como garantia fundamental. 2.2. Jurisdição e competência. Critérios definidores de competência. 3. Dimensão empírica. 3.1. A orientação jurisprudencial firmada pelo STJ. 3.2. Análise crítica dos julgados citados. 3.3. O posicionamento da doutrina nacional sobre o tema. 4. Dimensão dogmático-normativa. 4.1. O exame da adequação à luz da hipossuficiência financeira dos jurisdicionados. 4.2. Considerações acerca dos princípios da aderência do juiz ao território e da duração do processo em tempo razoável. 5. Conclusão.
1. Introdução
O presente artigo versa sobre o acesso à justiça, tema que tem merecido destaque nas últimas décadas, e que ainda consiste no grande desafio do direito processual contemporâneo.
O significado da expressão “acesso à justiça” vem sofrendo importante modificação ao longo da história. De um estágio em que a falta de acesso à justiça sequer era concebida como um problema, tal direito passou a ser progressivamente reconhecido, passando por um período em que era aceito sob um viés estritamente formal, até alcançar o status da mais importante garantia fundamental[1].
Parte-se de uma acepção de “acesso à justiça” incompatível com qualquer concepção reducionista, capaz de associar tal direito tão-somente à mera possibilidade de manifestação de uma postulação perante o Judiciário. É isso também. Mas não é só. Não basta que se garanta a “porta de entrada” do cidadão aos tribunais[2]. Uma noção acertada de acesso à justiça traz consigo a necessidade de observância dos direitos fundamentais em sua máxima efetividade.
O acesso à justiça deve ser encarado como o requisito fundamental de um sistema jurídico que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. E isto significa, entre outras coisas, reconhecer que as técnicas processuais servem a funções sociais[3].
O Superior Tribunal de Justiça tem entendido, em jurisprudência consolidada, que, do ponto de vista territorial, o mandado de segurança deve ser impetrado no foro do lugar onde a autoridade exerce suas funções. Como, em geral, coincidem os domicílios do impetrante e da autoridade coatora, tal regra parece ser adequada para a definição do juízo competente na ação mandamental.
Todavia, nos casos em que o impetrante possui domicílio diverso do domicílio funcional da autoridade coatora, a aplicação da referida regra impõe ao impetrante o ônus de ajuizar a ação fora do seu domicílio, o que consiste numa maior dificuldade para a defesa dos cidadãos.
Nesse contexto, partindo da hipótese de que o entendimento jurisprudencial firmado em nosso ordenamento jurídico, com a devida vênia, não observa o princípio da proporcionalidade, propomos uma alteração no modo de distribuição de competência territorial nas ações mandamentais. Ao invés de o ajuizamento se dar necessariamente no foro do domicílio funcional da autoridade coatora, defendemos a possibilidade de o impetrante optar por ajuizar a ação em seu próprio domicílio.
2. Dimensão analítico-conceitual
Antes de adentrarmos ao exame do direito positivo e da práxis jurisprudencial, é necessário que sejam feitos alguns esclarecimentos conceituais com o fim de viabilizar uma fundamentação racional e controlável do presente trabalho.[4]
2.1. O mandado de segurança como garantia fundamental
Por se tratar de meio assecuratório de outros direitos, o mandado de segurança figura no sistema jurídico como verdadeira garantia constitucional. Alguns autores costumam afirmar que sua previsão no rol dos direitos fundamentais implica importantes consequências práticas.
Além de efetivar sua estabilidade no ordenamento jurídico, uma vez que o poder constituinte derivado reformador não poderia abolir tal direito, a previsão do mandado de segurança enquanto garantia constitucional exerce, para parte da doutrina, com a qual concordamos, forte influência hermenêutica sobre toda a regulação de tal instituto.
Conforme advertido por Luiz Guilherme Marinoni, é necessário perceber que, ao figurar o mandado de segurança como garantia fundamental, além de sua dimensão negativa, deve-se encarar o mandado de segurança como instrumento de toda a carga hermenêutica positiva, a exigir que o intérprete sempre lhe confira o mais amplo e eficaz alcance, a maior eficácia possível.
Elimina-se, com isso, a possibilidade de outorgar qualquer interpretação ao procedimento do mandado de segurança que possa limitar, inviabilizar ou neutralizar sua utilização. Mais do que isso, torna-se inconstitucional qualquer negligência do Estado em conferir a este instrumento a mais ampla, irrestrita, eficaz e adequada aplicação.
No que diz respeito ao Poder Judiciário, significa que aos juízes não se permite adotar interpretações que possam limitar ou inviabilizar a utilização do mandado de segurança. O mesmo vale em relação ao modo de preenchimento de lacunas por parte dos juízes.
A garantia constitucional do mandado de segurança impõe ao Poder Judiciário o dever de conferir a interpretação mais favorável ao seu cabimento, tramitação e efetivação. Por esse prisma, mostram-se insustentáveis todas as interpretações tendentes a amesquinhar o instituto em exame[5].
Não é isto que se percebe, contudo, na prática. Ao definir a competência territorial do mandado de segurança no foro do domicílio funcional da autoridade coatora, nega-se tal eficácia maximizada ao mandado de segurança, em nítida incompatibilidade com os princípios do acesso à justiça e da legalidade.
2.2. Jurisdição e competência. Critérios definidores de competência.
As situações de conflito decorrem da interação entre os seres humanos e da frustração inevitável das diversas expectativas e interesses individuais. É essa a causa de existência do direito[6]. Neste contexto, o direito tem por finalidade precípua conferir segurança às relações sociais[7], uma vez que a simples regulamentação das relações e previsão de direitos não se mostra suficiente para que haja a necessária estabilização social.
A experiência histórica demonstrou que um dos fatores de insegurança e instabilidade social consistia na utilização da força para a satisfação das pretensões individuais, ainda que legítimas. Por isso, proibiu-se a imposição unilateral da vontade por mão própria, ou, para utilizar a conhecida expressão, proibiu-se que se fizesse justiça pelas próprias mãos.
Como alternativa à autotutela, o Estado chamou para si a responsabilidade de solucionar os conflitos sociais, passando a exercer monopólio sobre esta função, que se denominou jurisdicional. Com o fim de viabilizar o exercício da função jurisdicional, o ordenamento jurídico estabelece regras de divisão de atribuições denominadas de regras de competência. O conceito de competência se refere, portanto, à divisão do trabalho entre os órgãos investidos de jurisdição. Competência é a medida de jurisdição.
Vários são os critérios de determinação da competência no processo civil.
A Constituição Federal inicia a distribuição da função jurisdicional entre o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, e as Justiças Militar, Eleitoral, Trabalhista e a Justiça Federal comum, sendo residual a competência da Justiça Estadual.
Segundo o critério objetivo, determina-se a competência com base nos elementos objetivos da demanda, quais sejam, as partes, a causa de pedir e o pedido. À competência determinada em função das partes que figuram no processo, denomina-se competência em razão da pessoa. À competência fixada a partir da causa de pedir, por sua fez, é chamada de competência em razão da matéria. Por fim, a competência fixada a partir do (valor do) pedido é denominada de competência em razão do valor da causa. Considera-se, neste caso, apenas o conteúdo econômico do pedido.
O critério territorial é aquele que leva em consideração um lugar para a determinação da competência. A regra geral de competência territorial é a do foro do domicílio do réu, nos termos do art. 94 do CPC. A justificativa de tal regra é simples. Consagrou-se o entendimento de que é demasiada regalia permitir ao autor a propositura da ação no local em que bem entender, pois isso poderia causar grandes sacrifícios ao réu, a quem devem ser asseguradas condições de defender-se sem maiores dificuldades[8]. Obviamente, esta regra pressupõe que as partes se encontrem em uma situação de igualdade, de paridade de armas.
Outro deve ser o desfecho nos casos em que há diferença de condições entre as partes, ou seja, se uma delas, diante da outra, for considerada hipossuficiente. Nesse contexto, e com um claro fim de viabilizar maior acesso à justiça, a Constituição Federal previu que, nas causas em que a União for parte, o jurisdicionado poderá optar, segundo sua conveniência, por ajuizar a ação em seu próprio domicílio (art. 109, § 1º)[9].
A divisão de competência pelo critério funcional é aquela que leva em consideração a função a ser exercida por cada juiz ou juízo no âmbito de um mesmo processo. Em outras palavras, diferentes juízes/juízos poderão exercer funções jurisdicionais num mesmo processo, desde que respeitados os limites de sua competência, que se refere a certos atos ou conjunto de atos. Em regra, o critério funcional de distribuição de competência se refere a um determinado juízo dentre os da mesma competência territorial. Eventualmente, porém, até mesmo juízes com jurisdição em outras circunscrições judiciárias poderão funcionar num mesmo processo. É o que ocorre quando há necessidade da prática de atos por meio de carta precatória.
3. Dimensão empírica
A dimensão empírica da pesquisa, na perspectiva de Alexy, tem como foco o exame do direito positivo. Incumbe-se da descrição do direito legislado e, sobretudo, do prognóstico da práxis jurisprudencial[10].
A atual Lei de regência do mandado de segurança (Lei nº. 12.016/2009) não traçou quaisquer critérios definidores de competência. A lei anterior também não o fez. Coube à jurisprudência fazê-lo. Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça tem entendido, há mais de duas décadas, que, do ponto de vista territorial, a competência para o julgamento do mandado de segurança deve ser definida em função da sede da autoridade apontada como coatora.
3.1. A orientação jurisprudencial firmada pelo STJ
3.1.1. REsp nº 257.556/PR[11]
O caso teve início com a impetração de mandado de segurança perante o Juízo da Comarca de Jacarezinho/PR, local onde residiam os Impetrantes, em decorrência de suposta prática de ato ilegal por parte de Comandante da Polícia Militar do Estado do Paraná, sediado na capital do Estado, e responsável pela condução de concurso público para o preenchimento de vagas em Batalhão de Polícia Militar daquela localidade.
Julgado procedente o mandamus em primeiro grau, e confirmada a decisão pelo Tribunal de Justiça local, o Estado do Paraná interpôs o recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça.
Reafirmando o posicionamento tradicional da Corte, o Ministro relator sustentou que o mandado de segurança não poderia ter sido impetrado perante o Juízo da Comarca de Jacarezinho, não obstante os Impetrantes ali residirem e o concurso em questão se destinar a preencher cargos naquela localidade. Isso porque a competência do mandado de segurança deve ser firmada segundo a categoria, qualificação e hierarquia funcional da autoridade coatora. Transcreveu, então, a ementa do RESP 101.102/PR, publicado no DJU de 05/05/1997.
3.1.2. REsp nº 101.102/PR[12]
O caso teve início com a impetração de mandado de segurança perante o Juízo da Comarca de Londrina, apontando-se como ato coator decisão que impediu a frequência do Impetrante a curso de formação de soldados da Polícia Militar, proferida pelo Chefe do Centro de Recrutamento de Soldados da Polícia Militar do Estado do Paraná, sediado em Curitiba, com atribuição de organizar os processos seletivos de ingresso na corporação.
Concedida a segurança, o Estado do Paraná interpôs apelação. O Tribunal de Justiça local negou provimento à apelação, sob o argumento de que não prospera a alegação formulada pelo Apelante de incompetência do Juízo de 1º grau, que processou e julgou o mandado de segurança.
O Estado do Paraná interpôs, então, recurso especial, que foi provido, sob o argumento de que em mandado de segurança a competência para o processamento e julgamento é definida segundo a categoria, qualificação e hierarquia funcional da autoridade coatora.
No REsp 101.102/PR, faz-se alusão ao CC 4.489/93, publicado no DJU de 14.10.1996.
3.1.3. CC nº 4.489/93[13]
O caso decorreu da impetração de mandado de segurança contra ato do Coordenador Regional de Pessoal do Instituto Nacional do Seguro Social, perante o Juízo Federal da 14ª Vara/MG, suscitado no conflito negativo.
Dado por incompetente, este Juízo remeteu os autos à Justiça do Trabalho (13ª Junta de Conciliação e Julgamento de Belo Horizonte), que suscitou o conflito de competência. Não constam, no relatório ou no voto, as razões pelas quais ambos os Juízos se deram por incompetentes. No julgado, o STJ decidiu pela competência do juízo federal, ao argumento de ser “irrelevante a matéria discutida no ‘mandamus’“.
É exatamente a este ponto que queremos chegar. O julgado em exame já não trata mais de um conflito de competência relativo ao aspecto territorial, como ocorreu no REsp 257.556/PR, que versava sobre um conflito de competência envolvendo juízos estaduais de comarcas diversas. Agora, o conflito versa sobre competência constitucional entre juízo federal e juízo trabalhista, o que indiscutivelmente não se confunde.
3.2. Análise crítica dos julgados citados
A leitura dos julgados nos permite chegar a duas conclusões, que se seguem.
Em primeiro lugar, entendemos, com a devida vênia, que o Superior Tribunal de Justiça vem proferindo decisões sobre a competência territorial no mandado de segurança com argumentação demasiadamente frágil e insuficiente.
Em verdade, as decisões aqui examinadas nos parecem inegavelmente tautológicas, circulares, ou seja, repetem na conclusão o que se firmou como premissa: “é consagrado que, no mandado de segurança, a competência se firma em função da sede da autoridade coatora, logo, o foro competente para processar e julgar o mandamus é o foro da autoridade coatora”.
Nenhum julgado explica, ainda que genericamente, o motivo pelo qual o foro competente deva ser o do domicílio funcional da autoridade coatora e por que não o do impetrante. Não se expõe um argumento sequer para embasar a decisão pela competência do foro da autoridade coatora, ou, em sentido contrário, para explicar por que não o foro do Impetrante.
Em segundo lugar, não se encontra nos julgados uma distinção clara dos critérios funcional e territorial de definição de competência. Trata-se tudo em bloco, sem a devida sistematização, como se a mesma coisa fosse. Há nítida confusão classificatória em torno dos critérios de fixação de competência. Num momento, a Corte trata de competência fixada em razão do lugar, referindo-se a precedente aparentemente semelhante (RESp 257.556 e RESp 101.102). A partir daí, os julgados passam a tratar de conflito de competência decorrente de outro critério, qual seja, o critério constitucional de distribuição de competência, também denominado por alguns autores de “espécies de jurisdição”. Insistimos: trata-se tudo como se fosse uma só coisa, como se não houvesse diferenças entre os casos.
3.3. O posicionamento da doutrina nacional sobre o tema
Dentre a literatura pesquisada, todos os autores[14] que tratam sobre o tema seguem o entendimento de que a ação mandamental deve ser ajuizada no local onde a autoridade coatora exerce suas funções. Entretanto, nenhum deles expõe argumentos suficientes a sustentar tal posicionamento.
Restringem-se a afirmar a tese, como se fosse provida de uma onticidade que implicitamente a justifique, prescindindo, assim, de fundamentação. Confrontando os objetos naturais com os objetos culturais, Calmon de Passos adverte, acertadamente, para um ponto de distinção entre ambos: enquanto aqueles, cuja existência independe de nós, possuem uma natureza que lhes são próprias, estes, criados pelo homem, exigem que se esteja sempre a questionar-lhes o porquê e o para que de sua existência, por resultarem sempre de uma atuação humana carregada de intencionalidade. O que se quer dizer, com isso, é que o homem, em seu agir, está sempre a optar por uma alternativa entre várias, decisão esta que traz sempre uma valoração por parte do sujeito[15].
Em outras palavras, a escolha do juízo competente no mandado de segurança não é uma escolha neutra. Há, por trás disto, uma valoração por parte de quem decide e que deve ser levada em consideração. Neste contexto, repito, aqui, a observação feita por Cappelletti na introdução de sua obra: “nenhum aspecto de nossos sistemas jurídicos modernos é imune à crítica. Cada vez mais pergunta-se como, a que preço e em benefício de quem estes sistemas de fato funcionam”[16].
4. Dimensão dogmático-normativa
É sabido que não há falar em interpretação de normas de modo apartado de sua aplicação em casos concretos. Não se interpretam normas abstratamente. Por se firmar como espécie normativa, tal afirmativa vale integralmente aos princípios, que exigem seu manejo sempre à luz de um caso concreto.
Tomaremos como suporte fático o caso extraído do RESp 257.556/PR, em que um candidato ao cargo de soldado da Polícia Militar do Estado do Paraná impetrou mandado de segurança contra ato praticado por Comandante da PM/PR, sediado na capital do Estado, e responsável pela condução do concurso público, que se destinava a preencher vagas em Batalhão da PM localizado na cidade de Jacarezinho, local onde residia o impetrante.
4.1. O exame da adequação à luz da hipossuficiência financeira dos jurisdicionados
Na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais, a análise do caso há de iniciar-se pelo exame das possibilidades fáticas, tendo-se em vista as máximas da adequação e da necessidade.
O exame da adequação de um meio implica em saber se tal meio é idôneo à proteção do fim pretendido. Aplicada esta assertiva ao caso em tela, o que se está a discutir é se a determinação da impetração do mandado de segurança no foro do domicílio da autoridade coatora consiste num meio adequado à satisfação do direito de acesso à justiça dos jurisdicionados.
A resposta a esta questão exige o conhecimento de informações que nos possibilite avaliar a possibilidade, ou não, de o impetrante ajuizar a ação fora de seu domicílio, informações estas que não se encontram no inteiro teor daquele julgado.
De qualquer modo, não é arriscado afirmar que, no mais das vezes, a necessidade de deslocamento intermunicipal ou interestadual como condição para a propositura da ação é exigência que dificulta o ajuizamento da ação, quem quer que seja o autor desta. A situação fica mais evidente se imaginarmos que o autor da ação seja pessoa pobre. O afastamento de seu domicílio, por mais rápido que seja, implica, em alguma medida, em transtornos financeiros, de variadas ordens: a ausência no trabalho gera a perda dos valores relativos aos dias não trabalhados, o deslocamento para outro município requer gastos extraordinários com transporte, hospedagem etc.
Como afirma Cappelletti, é fato notório que a maior parte das pessoas comuns não conseguem superar as inúmeras barreiras/obstáculos de acesso à justiça antes que possam reivindicar seus direitos judicialmente[17]. Nestes casos, a distribuição da competência territorial do mandado de segurança no foro do domicílio da autoridade coatora viola o princípio da proporcionalidade, por não observar a máxima da adequação.
Em outras palavras, não pode o Estado privar o jurisdicionado de impetrar o mandado de segurança por não ter, o indivíduo, recursos financeiros suficientes para suportar o necessário deslocamento ao foro da autoridade coatora. A violação resta ainda mais nítida se a parte se deslocar para ajuizar a ação e o magistrado conceder-lhe pedido de assistência judiciária gratuita, o que configura manifesta incoerência no sistema jurídico.
Deste modo, entendemos ter o jurisdicionado direito subjetivo de escolher o lugar onde impetrar o mandado de segurança, o que a doutrina tem denominado de forum shopping[18], nos termos do art. 109, § 2º, da CF/88 (“As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”).
Por fim, vale ressaltar que entendemos aplicável o art. 109, § 2º, da CF/88 também aos mandados de segurança impetrados contra autoridades estaduais. Em que pese a literalidade do enunciado normativo mencionar apenas a União, a ratio legis[19] do referido dispositivo constitucional é a de viabilizar o maior acesso possível à justiça por parte dos cidadãos, o que autoriza a sua aplicação por meio de extensão teleológica[20].
Negar a aplicação do art. 109, § 2º, da CF/88 aos casos em que são partes o cidadão e autoridade pública estadual só seria possível numa época em que se identificassem o direito positivo com a literalidade do texto legal, negando-se a atividade interpretativa das leis pelo juiz, bem como o próprio desenvolvimento judicial do Direito[21].
4.2. Considerações acerca dos princípios da aderência do juiz ao território e da duração do processo em tempo razoável
Não há, na tese aqui sustentada, qualquer violação aos princípios da aderência do juiz ao território, bem como ao princípio da duração do processo em tempo razoável.
No que se refere ao primeiro, em que pese a resistência por parte da doutrina, entendemos que há plena possibilidade de expedição de carta precatória sempre que for necessária a prática de atos em lugar diverso daquele onde tramita o mandado de segurança. A própria doutrina que afirma não caber a utilização da carta precatória nos mandados de segurança admite que, se ajuizado contra autoridades sediadas em locais diferentes, caberia ao impetrante escolher ajuizar a ação no foro de uma delas, notificando-se a outra por precatória[22].
Quanto ao segundo, é importante frisar que se, por um lado, é certo que as demandas devem ser solucionadas o mais rapidamente possível, isto não implica na existência de um princípio da celeridade[23]. O processo deve demorar o tempo necessário à solução do caso submetido ao órgão jurisdicional, com a observância de todas as exigências inerentes ao princípio do devido processo legal.
Além disso, é equivocada a alegação de que não seria possível a impetração no foro do domicílio do impetrante com base em comprometimento da celeridade se a consequência da impetração no foro da sede da autoridade coatora inviabilizar o próprio ajuizamento da ação. Em muitos casos, é melhor uma ação relativamente comprometida em sua tramitação do que absolutamente inviabilizada em seu próprio “nascimento”. Vale dizer, antes de analisarmos problemas relativos à celeridade da tramitação ou, mesmo, relativos à efetividade das decisões, é necessário garantir o ajuizamento da ação.
5. Conclusão
Com base no estudo desenvolvido ao longo deste artigo, é possível estabelecer os seguintes tópicos conclusivos:
Com a devida vênia, entendemos que, dentre os julgados analisados, nenhum deles explica, ainda que de modo sucinto, o motivo pelo qual o foro competente no mandado de segurança deva ser o do domicílio funcional da autoridade coatora ou por que não o do impetrante. Não se expõe um argumento sequer para embasar a decisão pela competência do foro da autoridade coatora, ou, em sentido contrário, para explicar por que não o foro do Impetrante.
Em segundo lugar, não se encontra nos julgados uma distinção clara dos critérios funcional e territorial de definição de competência. Trata-se tudo como se a mesma coisa fosse, sem a devida sistematização. Prova disto é que, partindo de julgado em que se discutia a competência em razão do lugar, a corte passou a se referir, em sua cadeia argumentativa, a caso completamente diverso, em que se discutia a competência constitucionalmente definida entre um juízo federal e um juízo trabalhista.
Por todo o exposto, entendemos ter o jurisdicionado direito subjetivo de escolher o lugar onde impetrar o mandado de segurança (forum shopping), nos termos do art. 109, § 2º, da CF/88, o que se aplica, inclusive, às ações mandamentais travadas contra autoridades estaduais, por meio de extensão teleológica.
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