Artigo Destaque dos editores

Os contratos de compra e venda, de doação e de permuta entre ascedentes e descendentes

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

I - INTRODUÇÃO

Ao longo de nossa história, o legislador sempre foi muito precavido quando o negócio jurídico envolve ascendentes e descendentes.

No intuito de preservar o interesse dos demais descendentes não envolvidos no negócio, o legislador cria limitações à legitimação dos contratantes, impondo-lhes que observem requisitos adicionais, não exigíveis nos contratos em geral. Tudo sempre embasado na mesma premissa: a preservação da legítima dos demais herdeiros.

O Código Civil de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916) determinava que quando houvesse mais de um descendente, a necessidade de uma autorização deste(s) para a compra ou venda do ascendente para um dos descendentes.

O novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-01-2002) tem idêntica previsão, dispondo que além dos descendentes não envolvidos no contrato, também, agora, o cônjuge deverá anuir, sob pena de anulabilidade do negócio.

Semelhantes restrições são impostas nos contratos de doação e de permuta.

Neste passo, o presente trabalho tem por escopo abordar estes contratos, quando envolverem descendentes e ascendentes, analisando-se as restrições impostas pela legislação.


II - Dos contratos entre pais e filhos

II. 1. Aspectos gerais

O Código Civil de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), no seu artigo 1.132, in verbis, estabelecia:

"Art. 1132. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam."

Também no respeitante ao contrato de troca, assim ficou disposto:

"Art. 1164. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - É nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes.".

Sob a mercê destes dispositivos legais, o Supremo Tribunal Federal formulou, inclusive, a Súmula 494, que apontava o prazo prescricional de 20 (vinte) anos para a anulação da venda de bens do ascendente para o descendente, sem o consentimento dos demais filhos. [1]

Ao tratar do contrato de doação entre pais e filhos, o Código de 1.916 ordenou:

"Art. 1171. A doação dos pais aos filhos importa adiantamento da legítima."

Com o novo Código Civil (Lei 10406/02, de 11-01-2002), a sistemática não muda. As mesmas restrições são encontradas nos contratos de compra e venda, de doação e de permuta. Com efeito, o artigo 496, in verbis, reza:

"Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido".

Parágrafo único: Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória."

Cria-se aqui uma inovação. Outrora fazia-se mister apenas o consentimento dos demais descendentes. Hoje, pela nova redação, além deste consentimento, também o cônjuge há de anuir.

Seguindo a mesma tendência, no respeitante ao contrato de troca assim ficou disposto.

"Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante."

Outra vez a nova legislação cria a necessidade não só da anuência dos descendentes, como também, do outro cônjuge.

Respeitante à doação, o artigo 544, in verbis, disse:

"Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança."

Conforme Débora Gozzo [2], no Brasil sempre vigeu as proibições que hoje estão estampadas, sobretudo, no artigo 1.132, do Código de 1.916. As ordenações Manuelinas (1.521) e Filipinas (1.603), ambas com aplicação no Brasil colônia, já continham disposições neste sentido.

A mesma autora [3] ensina que são poucos os países que possuem dispositivos iguais aos do Brasil. Cita o exemplo de Portugal, cujo artigo 877 veda a venda de pais e avós aos filhos e netos, sem o consentimento dos demais.

Em outros países, como na Argentina (art. 1.359, do CC), no Chile (art. 1.796 do CC) e no Equador (art. 1.726,do CC), são vedadas as vendas entre pais e filhos enquanto perdurar a menoridade deste. Finda a menoridade, o contrato poderia ser realizado normalmente.

Contudo, por haver citado alguns códigos da Europa, cabe salientar que tanto o francês, quanto o alemão e o italiano, não adotam a proibição questionada [4].

Ora, por que, então, nosso legislador cria essa legitimação extraordinária para os contratos de compra e venda entre ascendentes e descendentes, na contramão das legislações alienígenas?


III. 2. Fundamentos para a existência das limitações

A doutrina, sempre partindo da mesma premissa, traz vários apontamentos para existência dos ditos artigos.

J.M. Azevedo Marques [5] e Washington de Barros Monteiro [6] entendem que a razão da existência destes impedimentos é evitar-se o prejuízo das legítimas.

J.M. de Carvalho Santos [7] também trilha por essa tendência.

Pontes de Miranda tem outra visão, conquanto dentro da mesma vertente. Reconhecendo que o Código não veda as doações, mas sim as vendas e compras, o que se visa é impedir simulação de doações e, por conseguinte, ultrapassar-se as legítimas. [8]

Débora Gozzo [9], por seu turno, sustenta que:

"O objetivo do legislador pátrio foi o de evitar a desigualdade dos quinhões hereditários, ou seja, da legítima, que é aquela porção de bens do de cujus, reservada, por lei, aos herdeiros descendentes ou ascendentes, correspondente à metade de seus bens".

Caio Mário da Silva Pereira [10] segue mesma tendência:

"Não podem os ascendentes vender ao descendente, sem que os demais descendentes expressamente o consintam. Com essa proibição, pretendeu a lei resguardar o princípio da igualdade das legítimas contra a defraudação de que resultaria de dissimular, sob a forma de compra e venda, uma doação que beneficiaria a um, em prejuízo dos outros."

No mesmo diapasão está Maria Helena Diniz [11], entendendo que o legislador visou evitar as fraudes contra a legítima dos demais herdeiros.

De fato, parece esta ser a intenção do legislador: evitar as fraudes às legítimas dos herdeiros, com a possibilidade de se contemplar um ou uns, em detrimento dos demais.

Neste passo, considerar-se-á pontualmente as limitações criadas pela lei, no que toca aos negócios jurídicos havidos entre descendentes e ascendentes.


III. 3. Da doação

Para uma grande maioria, a doação é um contrato (Orlando Gomes [12], Maria Helena Diniz [13]). Tanto é assim que nosso Código a colocou no rol dos contratos.

Para outros, a doação não tem natureza contratual, pois, em algumas situações, o consentimento do donatário não se verifica.

O próprio Código Civil francês não alista a doação como contrato, apenas a considerando como forma de aquisição de propriedade. [14]

Contudo, mostra-se prevalente a primeira tese, a qual permite definir "doação" como um "contrato pelo qual uma das partes de obriga a transferir gratuitamente um bem de sua propriedade para o patrimônio da outra, que se enriquece na medida em que aquele empobrece." [15]

Essa é, inclusive, a interpretação autêntica do contrato de doação, previsto no artigo 1.165, do Código Civil de 1.916, in verbis, que prevê:

"Art. 1165: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outro, que os aceita."

A mesma definição é encontrada na Lei 10.406/02, que dispõe:

"Art. 538: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra."

III. 3.1. Doações inoficiosas

A lei impõe certas limitações ao doador. Neste desiderato, o artigo 1.176, do Código Civil de 1.916:

"Art. 1176: Nula é também a doação quanto à parte, que exceder a de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."

E, no mesmo diapasão, o artigo 549, da Lei 10.406/02:

"Art. 549: Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."

Sendo assim, o doador disporá de duas partes de seu patrimônio. Uma que se denomina parte disponível, à qual o oferente poderá dar o fim que lhe aprouver; e uma outra parte, denominada legítima, que deve ser resguardada em favor de seus herdeiros.

Tem-se, destarte, que não se admite a doação inoficiosa, qual seja, aquela doação em que o doador, no momento da liberalidade, excede a legítima dos herdeiros. Não se concebe que alguém doe além do que poderia dispor em testamento.

O conceito da inoficiosidade é ditado pelo parágrafo único, do artigo 1.790, do Código de 1.916:

"Considera-se inoficiosa a parte da doação, ou do dote, que exceder a legítima e mais a metade disponível."

Cumpre mencionar que o Código Civil de 2.002 não traz texto expresso, com igual ou semelhante redação.

Legítima, então, é a parte de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio do doador, cabível aos seus herdeiros necessários, que pelo Código Civil vicejante, perfazem os descendentes, os ascendentes e os cônjuges.

Visando proteger o interesse dos herdeiros, preceituou o legislador, no artigo 1.171, do Código de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1.916), que a doação dos pais aos filhos importa em adiantamento da legítima.

Igual preceito restou lançado no Código Civil de 2.002, agora no artigo 544, que prescreve:

"Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança."

Nos dizeres da lei, quando o ascendente doa ao descendente, em vida, isto representa adiantamento daquilo que lhe caberia na herança.

Sobreleve-se, apenas, que o ascendente não necessita do acordo dos demais para doar a um descendente, ao contrário do que ocorre na compra e venda e na permuta, pois, na hipótese da doação, já há a presunção de adiantamento de legítima.

Logo, a doação de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais, não é nula. O caso é da conferência prevista no artigo 1.786 [16], do Código Civil de 1.916, com idêntica redação do artigo 2.002 [17], da Lei 10.406/02; trazendo o ato realizado de doação para a colação dos bens doados.

Por assim dizer, quando um descendente recebe em vida doação um bem de seu ascendente, deverá declarar nos autos do inventário essa doação, e isso lhe será contado como adiantamento da parte que lhe caberia na herança.

Portanto, tem-se que a doação de ascendente para descendente importa em adiantamento da legítima. Deste modo, quando da abertura do inventário, o herdeiro contemplado com a doação é obrigado a trazer à colação, nos autos do inventário, os bens e dotes que recebeu.

Colação é, então, o ato pelo qual os herdeiros necessários, beneficiados em vida com doações do de cujus¸ declaram, no inventário, tudo aquilo que receberam, para que sejam conferidas e resguardadas as respectivas legítimas.

A finalidade desta colação está prevista na própria lei. O artigo 2.003, do novo Código Civil, assim a considera:

"Art. 2003: A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados."

Caso já não os tenha, o donatário deverá trazer à colação o valor correspondente em dinheiro.

Em havendo negativa na apresentação destes bens, incorrer-se-á em sonegação, a qual tem resultado previsto no novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-01-2002), pelo artigo 1992:

"Art. 1.992: herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia."

Neste particular, repita-se, a doação de pai para filho não é nula ou anulável. Ela é válida. Nula seria tal doação se o filho donatário fosse contemplado com a totalidade dos bens, em prejuízo dos demais descendentes, ou mesmo na parte em que excedesse o disponível do doador. [18]

O que se reclama na doação entre ascendentes e descendentes é que tal seja declarada nos autos do inventário, quando da colação. Caso o bem doado ao herdeiro seja mais valioso que o quinhão hereditário a que faria jus, haverá necessidade de conferência e redução. A propósito, eis o artigo 2.007, do novo Código Civil:

"Art. 2007: São sujeitas à redução as doações em que se apurar excesso quanto ao que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade."

Por outro lado, poderão operar-se doações de ascendentes para descendentes, sem que se dê a ulterior conferência, por intermédio da colação. Concorde, Maria Helena Diniz [19]:

"O pai poderá fazer doações a seus filhos, que importarão em adiantamento da legítima, devendo ser por isso conferidas no inventário do doador, por meio de colação, embora o doador possa dispensar a conferência, determinando, em tal hipótese, saia de sua metade disponível, calculada conforme o Código Civil, art. 1.722, contanto que não a excedam, porque o excesso será considerado inoficioso, e portanto nulo."

Portanto, não está sujeito à colação imóvel recebido em doação por filho, se o pai doador determinou que fosse retirado de sua parte disponível o objeto da liberalidade, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo. [20]

No mesmo sentido, Rogério Marrone de Castro Sampaio [21], para quem é possível a dispensa da colação, e, por conseguinte, que a doação beneficie um filho em detrimento dos demais, desde que o doador inclua o ato de liberalidade dentro de sua parte disponível na herança. [22]

Outrossim, convém lembrar que à luz do artigo 2.011, do novo Código Civil, que

"as doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente também não estão sujeitas à colação." [23]

Por assim dizer, quando um descendente recebe uma doação de seu pai, em face dos serviços que lhe prestou, esta doação não se sujeita à colação, uma vez que se reveste de caráter remuneratório, e não se configurando um verdadeiro donativo.

III. 3. 2. Partilha em vida

O artigo 1.089, do Código de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), e o seu correspondente artigo 426, do novo Código Civil, rezam que

"não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva."

Contudo, os artigos 1.776, do antigo Código, e 2.018, do novo, pontificam:

"É válida a partilha feita pelo pai, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários."

Deste modo, o ascendente poderá dispor da partilha de seus bens, ainda que em vida, desde que não ferindo a legítima dos herdeiros.

Sendo assim, é lícito e legítimo que já se faça a partilha, em vida, confiando previamente o quinhão sucessório aos herdeiros, sempre, contudo, respeitando a legítima que cabe a cada um destes, dispensando-se, inclusive, futura colação em inventário.

Outrossim, da parte que lhe é disponível, poderá o compartilhante confiá-la a quem lhe aprouver, pois a lei prevê apenas e tão-somente que seja preservada a parte legítima.


III.4. Compra e venda

O contrato de compra e venda vem a ser, como ensina Caio Mário da Silva Pereira [24], o contrato em que uma pessoa (vendedora) se obriga a transferir a outra (compradora) o domínio de uma coisa corpórea ou incorpórea, mediante o pagamento de certo preço em dinheiro ou valor fiduciário correspondente.

Diz o artigo 1.132, do Código Civil de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), que o descendente não pode vender ao ascendente, sem que os outros descendentes consintam. Na mesma esteira, o artigo 496, do novel Código (Lei 10.406. de 10-01-2002), diz ser anulável essa venda, se não houver o consentimento dos demais descendentes, bem como do cônjuge, dispensando-se a outorga uxória se o casamento for regido pelo regime da separação total de bens.

J. M. de Azevedo Marques [25], nos idos de 1.929, comentou o artigo 1.132, acima citado, da seguinte forma:

"Há que interpretar scientifcamente, para evitar absurdo e contradicções, esse texto do nosso código civil, de harmonia com os axiomas do Direito.

Elle é reprodução da Ordenação do Reino, Liv. 4, tit. 12, que dizia:

‘Para evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou neto, nem a outro descendente. Nem outrosi faça com os sobreditos troca, que desigual seja, sem consentimento dos outros filhos, netos ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito vendedor.’"

Aliás, o mesmo J. M. Azevedo Marques [26], pontifica que:

"Essa proibição não recai exclusivamente sobre o contracto de compra e venda e é extensiva a todos os contractos entre pais e filhos, desde que nelles seja possível verificar a lesão entre descendentes quaesquer."

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Em vários acórdãos [27], nossa jurisprudência orientava-se no sentido de ser nula de pleno direito, não gerando nenhum efeito, a venda de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais.

Mas, será que essa venda é, deveras, nula? Ou seria meramente anulável? A nova teoria dos negócios ineficazes teria pertinência ao caso em comento?

III.4.1. Do vício que fulmina a compra e venda entre ascendentes e descendentes, sem o consentimento dos demais herdeiros

Uma questão de grande relevância é saber se a compra e venda, feita de ascendente para descendente, sem autorização dos demais herdeiros e do cônjuge, seria ato nulo, anulável ou meramente ineficaz? Outrossim, como ficaria a posição de um terceiro que posteriormente adquirisse o bem do descendente?

Para que um negócio jurídico seja válido, requer-se agente capaz, objeto lícito, e forma prescrita ou não defesa em lei, exigências do artigo 81, do Código de 1.916.

O artigo 104, do Código de 2.002, praticamente repete os dizeres, apenas adicionando quanto ao objeto que, além de lícito, tem de ser determinado ou determinável. [28]

Deste modo, o negócio será válido quando atender a esses requisitos, e inválido no caso contrário. [29]

A invalidade, segundo Zeno Veloso [30], é o gênero, do qual decorrem as espécies de atos nulos e anuláveis. Haveria, ainda, uma classe intermediária, denominada de nulidade relativa.

Convém tecer alguns comentários sobre suas diferenças.

Em síntese, se a norma violada for de natureza imperativa, cogente, estaremos diante de um vício essencial, que poderá acarretar nulidade absoluta ou nulidade relativa. Por outro lado, se a norma violada for de natureza dispositiva, estaremos aí diante de um vício que, embora também seja essencial, poderá acarretar anulabilidade. O ato nasce válido, eficaz, mas possui defeito, vício que, se for apresentado oportunamente em juízo pelo prejudicado, poderá ser tornado ineficaz, desconstituído.

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga [31] ensina:

"A distinção entre as nulidades absolutas e as relativas vem esteada, igualmente, na natureza da norma infringida e nos fins tutelares da norma violada. Se a norma transgredida tiver natureza cogente e tutelar interesse predominantemente público, a nulidade poderá ser considerada absoluta. ‘Vício dessa ordem deve ser declarado de ofício, e qualquer das partes pode invocar...’ Se a norma violada tiver natureza cogente e tutelar interesse predominantemente de parte, a nulidade será relativa e, por isso, o vício poderia ser sanado."

Antônio de Pádua Ribeiro é do mesmo pensar, lecionando que a nulidade absoluta vicia interesse coletivo, e a anulabilidade e a nulidade relativa, fulminam interesse da parte envolvida no negócio. [32]

E completa:

"O critério que distingue a nulidade relativa da anulabilidade repousa, ainda, na natureza da norma. Se ela for cogente, a violação produzirá nulidade relativa. É o caso da ilegitimidade processual provocada pela falta de representação, assistência ou autorização. ‘Sendo imperativa a norma que ordena a integração da capacidade, não pode o Juiz tolerar-lhe o desrespeito. Como ela visa a proteger o interesse da parte, a conseqüência é que o vício poderá ser sanado. Daí decorre a faculdade de o Juiz proceder de ofício, ordenando o saneamento pela repetição ou ratificação do ato, ou pelo suprimento da omissão.’"

A nulidade decorre de um negócio que ingressou no mundo jurídico, com disposições que ferem a ordem pública e o interesse geral.

A nulidade absoluta afeta todos e pode ser reconhecida de ofício. Já na nulidade relativa ou na anulabilidade, embora o ato seja viciado, somente os interessados é que podem buscar sua decretação.

Ao passo que a nulidade protege interesses gerais, a anulabilidade visa interesses privados, individuais, de uma das partes que figuram no negócio jurídico

Também, a pretensão para a ação de nulidade é imprescritível, sendo que a da anulabilidade prescreve em tempos variados e fixados pela lei.

Outrossim, a nulidade absoluta é insanável, deveras irremediável; sendo certo que a anulabilidade pode ser suprida.

No tocante aos interessados em requerê-la, a nulidade absoluta, dada sua gravidade, pode ser alegada pelo juiz, ex oficio, pelo Ministério Público, e, sobretudo, pelos interessados. Já a nulidade relativa ou mesmo a anulabilidade podem ser deduzidas somente pelos interessados, sendo vedado o reconhecimento de ofício e a representação do Ministério Público neste diapasão.

E, sobretudo, o ato nulo não produz efeitos; já o ato anulável produz efeitos enquanto não for anulado.

Quanto à ineficácia do ato, implica em dizer que este é válido, apenas não surtindo efeitos entre algumas pessoas.

Pois bem, o Código Civil de 1.916 não esclarecia que tipo de vício atingiria o negócio havido entre pais e filhos, sem o consentimento dos demais herdeiros. Deste modo, a primeira vista, a nulidade seria absoluta.

Débora Gozzo [33], mesmo ante a literalidade do artigo comentado, já era proselitista de tese oposta. Para ela, a nulidade em questão não se revestia de caráter absoluto:

"Esclareça-se que, no campo doutrinário, a invalidade do contrato ora em estudo encontraria melhor respaldo na teoria da nulidade relativa, que é um tipo de nulo que não é absoluto. Ela entra em cena quando houver infração à norma de ordem pública, mas que se refira a interesses privados; só as pessoas titulares desses interesses é que podem pleitear em juízo a decretação da nulidade do negócio. Destarte, somente os descendentes que não anuíram é que poderão pleitear em juízo a decretação da sua nulidade, muito embora a infração cometida pelos contraentes seja à norma cogente. Ademais, se aceito esse entendimento, a ilegitimidade do vendedor (ascendente) poderia ser sanada posteriormente à realização do contrato, como acontece com os atos jurídicos meramente anuláveis."

Como já fora demonstrado em parágrafos anteriores, vários acórdãos, contudo, viam na venda de bens, com ferimento do então artigo 1.132, do Código Civil de 1.916, uma nulidade absoluta. Neste particular, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal assim se manifestou:

"AÇÃO DECLARATÓRIA - Nulidade de escritura pública de compra e venda de ascendente a descendente. Falta de anuência dos demais herdeiros necessários. Inteligência do art. 1.132, do CC. Sentença anulatória do ato, confirmada, unânime. A venda de imóvel de ascendente para descendente, sem a prévia, simultânea ou posterior anuência dos demais herdeiros necessários, é nula de pleno direito, ex vi do art. 1.132, do CC. (TJDF - AC 1999.01.1.025843-9 - (138.097) - 1ª T. - Rel. Des. Eduardo de Moraes Oliveira - DJU 06.06.200106.06.2001)" [34]

Caio Mário da Silva Pereira comunga desta opinião: [35]

"Interdizendo a lei este contrato ("não podem"), a conseqüência seria a nulidade, pois quando a lei institui uma proibição, a sua contrariedade tem essa conseqüência. Pela nulidade, aliás, pronuncia-se Sebastião de Souza, sob o fundamento de que a expressa anuência de todos é da própria substância do negócio jurídico."

No entanto, o mesmo autor, embora reconhecesse a nulidade do ato, não via nenhum interesse público relevante em jogo. Logo, propugnava que apenas os herdeiros interessados poderiam alegar o vício. Entendia-a, então, como nulidade relativa.

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o ato é meramente anulável:

"Inobstante, farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação, circunstância sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter como lícita a avenca (STJ - REsp 74.135 - RS - 4ª T. - Rel. Min. Aldir Passarinho Junior - DJU 11.12.200112.11.2001)) [36]".

J.M. Carvalho Santos [37] é adepto desta corrente. Pontifica que a nulidade é relativa, não podendo ser alegada senão pelos herdeiros prejudicados.

Contudo, essa discussão parece ter chegado ao fim, com a recente redação proposta pelo Código de 2.002 (Lei 10.406, de 10-01-2002). Este recita:

"Art. 496: É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido."

Preconiza Ênio Santarelli Zuliani, in "O novo Código Civil" [38] que:

"O novo Código, em termos de contrato ou da venda de ascendente a descendente, rende-se, mais uma vez, ao poder da interpretação judiciária. O art. 1.132 do Código atual reprime, com a nulidade, esse tipo de negócio, sem consentimento dos demais descendentes, uma abertura para legalizar injustiças diante de recusa inexplicável (ou por capricho) de um filho para uma alienação com preço real, portanto, verdadeira ou eficaz.".

E continua:

"A jurisprudência, sensível ao drama familiar, alterou o sentido da norma e passou a considerar como ‘anulável’ e não ‘nula’ a compra e venda realizada nessas condições, pois o comprometimento da eficácia dependeria da prova da simulação ou de eventual prejuízo dos demais filhos. O TJRJ (Ap. 3.670/2001, Des. LAERSON MAURO, in Seleções Jurídicas ADV/COAD, de set./2001, p. 71) não reconheceu a nulidade em uma situação semelhante, o mesmo ocorrendo com o STJ (REsp 74.135/RS, Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, RT 789/180 e Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, nº 10, p. 117, verbete nº 1.071): Não obstante farta discussão doutrinária e jurisprudência, adota-se a corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez, por preço inferior ao valor dos bens." [39]

Deste modo, embalado pelas tendências jurisprudenciais, o legislador civilista entendeu ser "anulável" a venda forjada entre ascendentes e descendentes, sem o consentimento destes não envolvidos no negócio. Ademais, exige-se, agora, além do assentimento dos descendentes, também a concordância do outro cônjuge.

Sem embargo, em que pese essa disposição, parece que a melhor interpretação do dispositivo é considerar tal alienação meramente ineficaz em relação aos que não consentiram, permanecendo válido o ato entre os demais envolvidos na relação e, notadamente, perante terceiros.

III.4.2. A teoria da ineficácia do negócio jurídico

A teoria da ineficácia já ganha espaço nos nossos Tribunais. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já decidiu que:

"Se o marido renuncia a herança, sem assentimento da mulher, com quem é casado sob regime da comunhão universal de bens, tal negócio jurídico dispositivo não é nulo nem anulável, mas ineficaz, assim como o é a conseqüente adjudicação do quinhão hereditário a terceiro." [40]

O Tribunal mineiro faz coro a este entendimento:

"Encontra-se, hoje, superado o entendimento de que a fraude contra credores torna o ato anulável e a fraude à execução o torna nulo. Na realidade, a alienação é apenas ineficaz em face dos credores" (Carlos Roberto Gonçalves, Sinopses Jurídicas – Direito Civil – Parte Geral, 5. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 117) [41]

A teoria da ineficácia é praticamente pacífica, hodiernamente, no tocante à fraude contra credores, e mormente na fraude à execução [42].

Humberto Theodoro Júnior [43], comentando esta teoria, leciona:

"No entanto, aos poucos está se esboçando uma corrente modernizadora nos tribunais que se torna permeável à lição dominante na doutrina mais atual, que se bate pelo deslocamento da figura da fraude contra credores do campo da nulidade para o da ineficácia."

Deste modo, a venda fraudulenta é ineficaz perante o credor prejudicado, mas válida entre o devedor e o terceiro adquirente. Eis as lições de Gelson Amaro de Souza [44]:

"Como se vê, não se trata de nulidade e nem de anulabilidade, mas tão-somente de ineficácia em relação ao credor e tão-somente em relação a este, sendo ato perfeito e eficaz com relação a qualquer outra pessoa, até mesmo outros credores que ainda não tinham demanda pendente por ocasião da venda ou oneração."

A teoria dos atos ineficazes foi incorporada, por exemplo, pela Lei de Falências (Decreto-Lei nº 7661, de 21-06-1945), cujo artigo 52 reza que os atos ali alistados, "não produzem efeitos relativamente à massa", mas são válidos entre os demais envolvidos no negócio.

Ademais, a penhora de bem imóvel não registrada no Serviço de Registro Imobiliário, tal como impõe o artigo 659, § 4º, do Código de Processo Civil (Lei 5869, de 11-01-1973) não é nula ou anulável, mas meramente ineficaz perante terceiros. [45]

E tal teoria parece ser absolutamente aplicável ao caso em tela. A venda de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais, não atinge diretamente normas de interesse público. Antes, leva em consideração apenas o interesse de alguns dos herdeiros. Não há, repita-se, predomínio de interesse público, pois qualquer ato que contrarie interesse público será nulo e não apenas ineficaz.

No caso, a situação ainda é mais branda, não se tratando sequer de ato anulável. A ineficácia de que se diz é somente relativa e em relação aos herdeiros que não consentiram, e sempre condicionada à vontade deste em tomar a iniciativa para a declaração de ineficácia.

Via de conseqüência, a venda de bens entre ascendentes e descendentes, sem que os demais consintam, é meramente ineficaz perante estes.

Como já exposto, o que a lei visa é burlar a fraude da legítima. A problemática reside, portanto, na proteção à fraude.

Ora, mas não são meramente ineficazes os atos praticados em fraude à execução e fraude contra credores?

Logo, a doutrina e a jurisprudência têm admitido que em se tratando de negócio fraudulento, o mesmo é meramente ineficaz.

E a venda de ascendente a descendente nada mais é do que uma fraude à legítima dos demais herdeiros. Se fraude é, a solução deve ser, então, a mesma daquela havida na fraude à execução e na fraude contra credores: a declaração de ineficácia do ato, perante os herdeiros que não anuíram.

Ademais, entendemos que o simples fato de não ter existido a concordância dos demais herdeiros, não retiraria, de per si, a validade do negócio.

Reclama-se, ao nosso ver, entre outros requisitos, que seja demonstrado o prejuízo, como, por exemplo, de que o bem tenha sido alienado por valor inferior ao de mercado. Neste sentido, repise-se julgamento do STJ:

"Inobstante, farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação, circunstância sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter como lícita a avenca (STJ - REsp 74.135 - RS - 4ª T. - Rel. Min. Aldir Passarinho Junior - DJU 11.12.200112.11.2001)) [46]". – Não há grifos no original.

Deste modo, a venda em questão não é automaticamente nula, ou sequer anulável. Faz-se necessário demonstrar que se trata de negócio simulado, em que a alienação se deu por valor inferior ao valor de mercado. Sim, impõe-se demonstrar o prejuízo causado aos demais herdeiros, no tocante às suas legítimas.

É imprescindível, pois, que se prove o consilium fraudis entre o alienante ascendente, e o comprador descendente.

A fraude deve ser provada. Jamais se presume. Gelson Amaro de Souza [47], comentando o assunto, na pendência da fraude à execução, assim ponderou:

"O equívoco ao que se pensa é saliente, pois a própria expressão fraude já está contida no elemento subjetivo e deste é necessariamente integrante. Cumpre, então, demonstrar tanto o seu elemento objetivo, como o subjetivo. A fraude de execução, pelas conseqüências jurídicas que produz a ponto de autorizar a constrição de bens de quem não é devedor e nem executado, jamais poderá ser presumida, senão devidamente provada." – grifou-se.

O que a lei visa é vedar as doações simuladas entre ascendentes e descendentes. Neste passo, cabe àqueles preteridos no negócio provar o consilium fraudis, uma vez que a boa-fé deve ser presumida. Sem tal prova, a compra e venda entre pais e filhos, sem o consentimento do cônjuge ou dos demais herdeiros, será perfeita e acabada.

Principalmente no que toca a terceiro, caso o descendente comprador tenha, posteriormente, alienado esse imóvel a um terceiro, o máximo que se exigiria é que em sendo declarado ineficaz o ato, reportasse-o como doação inoficiosa, e fosse o valor equivalente trazido à colação.

Isso se o bem "vendido" não constasse da legítima do "alienante". Neste caso, pensamos, sequer a colação far-se-ia mister.

O terceiro, inegavelmente de boa-fé, não pode ser prejudicado pelos atos dos anteriores alienantes, notadamente por questões de suporte particular, de nenhuma repercussão pública.

Como se viu no tópico "III. 2. Fundamentos para a existência das limitações", a razão da existência destes impedimentos é evitar-se o prejuízo das legítimas. Mas nunca causar prejuízo a terceiros.

Ademais, ver-se-á em tópico específico, logo abaixo, que em caso de falta de consentimento de um dos herdeiros, é possível o suprimento judicial, desde que:

"uma vez provada a seriedade do negócio e a idoneidade das partes." [48]

Ora, se restar configurado que o negócio é sério, respeitando-se os valores de mercado, sem prejuízo às legítimas, o ato é perfeito e acabado.

Neste desiderato, se o bem já foi vendido a um terceiro, e declarada ineficaz a venda, o herdeiro contemplado com a "doação simulada" deverá trazer o valor do bem à colação, para ulterior partilha.

Isto porque, o terceiro eventualmente adquirente não poderá ser prejudicado com essa declaração de ineficácia.

III.4.3. Da doação de dinheiro para compra de bens

A jurisprudência tem abalizado a tese de que se houve doação de dinheiro para descendente, por parte do ascendente, com vistas à aquisição de um bem, a hipótese não é de compra e venda, mas sim de doação.

Em tempo, já se decidiu, inclusive, que

"O fornecimento de dinheiro a filho menor para a compra de imóvel não se equipara à venda de descendente a ascendente. Nesse caso, a hipótese seria de doação de numerário pelo pai ao filho, sendo certo que o momento oportuno para se discutir o caráter da doação, se a mesma foi inoficiosa ou não, ou, ainda, se a doação não foi do pai, mas do avô, ainda não surgiu, o que somente ocorrerá com a abertura da sucessão do último." [49]

Em situação análoga, o mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo ratificou esse posicionamento, decidindo que:

"Dinheiro dado a filho para pagamento de prestações de compra de imóvel, não vulnera o artigo 1.132 do Código Civil, pois haveria apenas doação e não alienação." [50]

III.4.4. Quem são os descendentes?

A lei, perdoada seja a insistência, quis resguardar a igualdade de direitos entre os herdeiros, evitando a simulação de vendas, as doações de parte ou de todo patrimônio para um ou alguns herdeiros, em detrimento dos demais. [51]

Mas, quem deve ser considerado descendente, para o fim de prestar consentimento?

Parece que a melhor resposta é considerar como descendentes os filhos de qualquer natureza, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção. Isto se mostra pacífico da exegese do artigo 227, § 6º, da Constituição Federal [52].

Completa Caio Mário da Silva Pereira [53], que:

"São os herdeiros necessários ao tempo do contrato."

Via de conseqüência, os herdeiros que devem anuir são os descendentes em linha reta, existentes na época do contrato.

Caso o descendente tenha falecido, deixando filhos, estes deverão anuir por representação ou estirpe.

Sim, pois se o que se veda é a fraude à legítima, os herdeiros por representação também são herdeiros, e têm o direito de preservá-la.

Interessante julgado consta do Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo, nº 889/311, que diz que o termo descendente, contido no artigo 1.132, do Código Civil, abrange, necessariamente, o genro e a nora, sob pena de fraudar-se o preceito legal proibitivo.

No mesmo sentido Agostinho Alvim [54], embasado em Dias Ferreira, lecionando que embora genro e nora não sejam descendentes, a venda deve ser proibida sem a anuência destes.

Justifica-se a inclusão da esposa, enquanto necessária para a outorga do consentimento da venda (art. 496, da Lei 10.406, de 10-01-2002), uma vez que, com a nova sistemática do Código Civil, ela também é herdeira necessária.

Deste modo, apenas os herdeiros necessários, hoje, cônjuge e descendentes, teriam legitimidade para propor a ação de anulação do negócio jurídico.

Sob outro enfoque, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu, através de acórdão da lavra da 5º Câmara de Direito Civil, que

"não se aplica ao enteado a proibição do artigo 1.132, do Código Civil."

Débora Gozzo [55] esposa a idéia de que sob os mesmos argumentos que se veda a compra e venda aos genros e noras, também se estenderia a proibição ao noivo ou noiva do descendente, desde que o casamento se realize. Mas, se o casamento não for celebrado, não haveria impedimento.

Caso o descendente seja menor, deverá ser-lhe nomeado curador especial, uma vez que seu interesse, necessariamente, estará em conflito com o interesse de seu genitor, que, a princípio, exerce o poder familiar, e deveria representar o seu filho.

Isto é o que se depreende dos artigos 142, § único, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.078, de 13-07-1990), com mesma redação dada pelo artigo 387, do antigo Código, e do artigo 1.692, do Código iminente [56].

Neste passo, o artigo 154, II, do antigo Código Civil, diz que as obrigações assumidas pelos incapazes, sem os seus curadores, seriam anuláveis.

No caso de descendente interditado, ser-lhe-á nomeado curador especial, em sendo seu curador o próprio pai, pólo envolvido no negócio jurídico de compra e venda.

III.4.4.1. Dos nascituros

Interessante é a situação do nascituro. De redação a princípio confusa, os artigos 4º, do Código Civil de 1.916, e o artigo 2º, do Código Civil de 2.002, ordenam:

"A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro."

Assim, percebe-se que, sob o aspecto formal, o legislador deu personalidade jurídica ao nascituro, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, mas somente com o nascimento com vida adquirirá a personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permanecem em estado potencial. [57]

Não se pode olvidar e confundir, contudo, com o fato de a lei salvaguardar desde a concepção os direitos do nascituro. Ao ente que está em vida intra-uterina é concedida uma expectativa de direito, portanto, antes do nascimento, o nascituro não é titular de direitos subjetivos, todavia a ordem jurídica lhe confere a sua proteção.

A Constituição Federal assegura especial proteção ao nascituro, quando garante proteção à gestante (art. 201, III). No mesmo sentido o Estatuto da Criança e do Adolescente no seu art. 8º. [58]

Muitos direitos já têm sido reconhecidos aos nascituros. Por exemplo, há julgados que lhes garantem acesso à prestação alimentar [59].

Maciça doutrina e jurisprudência admitem que o nascituro tenha os direitos de personalidade reconhecidos. Contudo, a anuência para a compra e venda de um imóvel é um direito tipicamente patrimonial.

E, como dito por Maria Helena Diniz [60] anteriormente, o nascituro apenas terá direitos patrimoniais se nascer com vida.

Assim, é de se entender que não se faz necessária a autorização do nascituro para a compra e venda de um imóvel dos ascendentes aos descendentes.

III. 4.5. Das formalidades para o consentimento

Ademais, não se faz mister nenhum tipo de formalidade especial para o consentimento, embora se exija que seja expresso e inequívoco; a anuência tácita é inadmissível [61].

E o cônjuge do descendente que anui, também precisa dar seu consentimento?

Julgando caso deste porte que lhe foi trazido, o Tribunal de Justiça de São Paulo [62], com base nas lições de Pontes de Miranda, decidiu pela tese negativa. Com efeito:

"Como preleciona o Doutor Pontes de Miranda, "discute-se, para o assentimento, no caso do Código Civil, art. 1.132, precisa o descendente, que é casado, do assentimento do outro cônjuge. A solução que deu a 2ª Turma do STF foi no sentido negativo. O assentimento do art. 1.132 é personalíssimo. Nada tem com os atos de disposição praticados pelo cônjuge, razão para que não se possa invocar o art. 242, I, do CC."

E o referido acórdão conclui:

"De outra parte, a proibição constante do artigo 235, I, do mesmo Código, incide exclusivamente sobre os bens dos cônjuges, não dos ascendentes."

III.4.6. Do suprimento judicial do consentimento

Caberia suprimento judicial em face da recusa dos interessados em consentirem?

A lei nada diz quanto a esta hipótese. Nem o Código Civil de 1.916, nem tampouco a Lei 10.406/02. Ao contrário do que ocorria com as Ordenações Manuelinas e Filipinas, que assim dispunham:

"E não lhe querendo dar o consentimento, o que quiser fazer a venda, ou troca, no-lo fará saber; e sendo-nos informado da causa, porque a quer fazer, e da causa, porque os filhos, ou descendentes não querem dar consentimento, Nós lhe daremos licença que a possa fazer, parecendo-nos justo."

Contudo, em acórdão de lavra do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, ficou assentado:

"Possível o suprimento judicial do consentimento do descendente ou de seu cônjuge para a alienação de bens do ascendente a um dos descendentes, desde que a recusa seja imotivada, uma vez provada a seriedade do negócio e a idoneidade das partes." [63]

Na Revista dos Tribunais 607/166, há acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no mesmo diapasão. Segundo esse Tribunal:

"A proibição do artigo 1.132, do Código Civil, não é uma restrição ao jus disponendi. Desde que a venda seja séria e o justo preço seja pago, nada obsta à realização do negócio. Se um descendente, injustificadamente, nega o seu consentimento, pode o juiz supri-lo."

III.4.7. Venda a interposta pessoa

Visando à burla da lei, pode ocorrer que o ascendente venda o imóvel a um terceiro, e este, então o repasse, também mediante um contrato de compra e venda, ao descendente.

Com isso ter-se-ia a simulação de um contrato de compra e venda de ascendente a terceiro, mediante interposta pessoa, sem o consentimento dos demais herdeiros.

A lei nada fala no respeitante, razão pela qual alguns entendem ser lícita tal venda.

Entretanto, já decidiu oTribunal do Paraná [64]:

"Pior do que a venda realizada diretamente de ascendente para descendente, sem a autorização expressa dos demais herdeiros, e, portanto, nula de pleno direito, seria se a venda, realizada por interposta pessoa, com o intuito de burlar a Lei, para, assim, desatender as suas exigências, com o fim de beneficiar algum herdeiro, merecesse interpretação diferenciada e mais amena, enquadrando-se em ato anulável. O que se reprime é a intenção de fraudar a Lei, não a simulação em si. (TJPR – ApCiv 0113148-2 – (20491) – Curitiba – 4ª C.Cív. – Rel. Des. Dilmar Kessler – DJPR 03.06.2002)

Tendo resultado comprovado pelas circunstâncias ter ocorrido simulação na venda de ascendente a descendente, por meio de interposta pessoa, sem o consentimento dos demais descendentes, a sua anulação se impõe. [65]

Destarte, resta concluir que a compra e venda de ascendente a descente, mediante interposta pessoa, sem a anuência dos filhos, e desde que demonstrada o consolium fraudis¸ é ineficaz, como o é a venda realizada diretamente entre descendente e ascendente.

J.M. Carvalho Santos [66] alerta, com acerto, que não se impede que o descendente venha, posteriormente, adquirir do terceiro, bem que anteriormente pertenceu ao seu ascendente. O que se veda é a fraude, o negócio simulado. Neste sentido:

"A nulidade da venda, ainda quando feita por interposta pessoa, não impede, todavia, que sempre e em qualquer hipótese, seja válida a aquisição que o filho venha a fazer de bens que pertenceram a seus pais. Nada disso. Tudo depende das circunstâncias, pois muitas vezes a aquisição é feita por acaso, sem ter sido propositada a alienação que o descendente fez ao terceiro, para o fim de servir-se deste como interposta pessoa."

III.4.8. Compra e venda de cotas sociais e de bens de sociedades.

As restrições quanto à compra e venda entre ascendentes e descendentes englobam todos os bens e direitos passíveis deste negócio jurídico, entre as partes.

Por esta razão, a venda de uma sociedade comercial, ou cotas desta sociedade, de um pai para seu filho, demanda a anuência dos demais descendentes, além da esposa, salvo no caso do casamento ser regido pelo regime da separação total de bens. Tudo isto à luz da nova disposição do artigo 496, do Código Civil de 2.002.

Quanto à obrigatoriedade desta anuência também ser exigível na venda de sociedades comerciais, assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça [67]

"VENDA DE ASCENDENTE A DESCENDENTE - Nulidade. Prescrição. Quotas de sociedade comercial. A venda de ascendente a descendente, sem interposta pessoa, é nula; a pretensão prescreve em vinte anos, contado o prazo da data do ato. Inclui-se entre os atos proibidos a transferência de quotas sociais. (STJ - REsp 208.521 - RS - 4ª T. - Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar - DJU 21.02.200002.21.2000)"

Deste modo, tem-se que a alienação de cotas sociais de pai para filho, demanda anuência dos demais descendentes e do cônjuge, salvo, repita-se, no caso do consorte, se o regime for da separação total de bens.

Interessante, entretanto, é a posição do cônjuge do empresário. A codificação civil moderna reclama que a venda de ascendente para descendente, hodiernamente, necessita da outorga dos demais filhos, bem como do cônjuge.

Todavia, a redação do artigo 978, da Lei 10.406, de 10-01-2002, cria uma aparente contradição. Com efeito, dispõe o mencionado artigo:

"Art. 978. O empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real."

Logo, o empresário casado poderá alienar ou hipotecar os imóveis que são próprios da empresa, sem necessidade da outorga de seu cônjuge. É uma clara exceção à regra da impossibilidade de alienação de bens imóveis sem a autorização do cônjuge.

Porém, se de um lado a lei dá ao empresário essa prerrogativa, de outra banda impõe a anuência conjugal se a venda for realizada aos descendentes.

Cremos, portanto, que os artigos são compatíveis, não havendo discrepância entre eles.

Havendo alienação de bem imóvel, próprio da empresa, não se perfará necessária a outorga uxória ou marital. Se, contudo, essa mesma venda for realizada a um dos filhos, então, impor-se-á a dita outorga.

III.5. Troca e permuta

Embora semelhante à compra e venda, a troca e permuta desta se distingue porque a contraprestação da primeira é em dinheiro, e na troca, em outro bem.

O Código Civil de 1.916, pregava que:

"Art. 1164: Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - É nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes."

Seguindo a mesma tendência, no respeitante ao contrato de troca, assim ficou disposto no novo Código Civil:

"Art. 533: Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante."

Destarte, seria vedada a troca de bens entre ascendentes e descendentes, se os valores a serem objeto desse contrato forem desiguais. Contudo, se os bens permutados forem de igual valor, ou se os valores forem complementados em dinheiro ou em outros bens, de modo a se manter a igualdade das valias, é perfeita a troca entre pais e filhos, mesmo sem o consentimento do cônjuge ou dos descendentes.

Repita-se, para que a troca seja declarada ineficaz é indispensável a prova da desigualdade de valores. Não feita esta prova, por parte dos demais descendentes ou cônjuge, a troca é perfeita e acabada.

III.6. Hipoteca, penhor e anticrese.

Débora Gozzo [68] afirma que esta proibição não pode se estender à hipoteca. Discordamos, contudo.

A hipoteca, assim como o penhor e a anticrese, são direitos reais de garantia, pelos quais o bem dado em garantia fica sujeito, por vínculo real, ao cumprimento da obrigação.

Deste modo, se o devedor principal não cumpre com sua obrigação, o bem dado em garantia responderá pela dívida, podendo excutir o bem em hasta pública, após o devido processo de execução judicial.

Assim, poderá um ascendente garantir a dívida de um descendente, hipotecando, empenhando, ou dando em anticrese um bem seu. Isso porque essa garantia pode ser prestada pelo próprio devedor, ou por terceiros.

Neste diapasão, um bem do ascendente poderia ser dado em garantia da dívida de um descendente. Em não sendo honrada a dívida, este bem garantidor poderia ser excutido.

Ter-se-ia, então, a perda de parte da propriedade do ascendente, em favor de apenas um descendente.

Isso, ao nosso sentir, feriria a legítima dos demais herdeiros.

Contudo, o mais determinante à nossa posição, é a redação do artigo 1.420, do Código Civil brasileiro:

"Art. 1420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca."

Somente aquele que pode alienar livremente seu bem, poderá dá-lo em garantia.

Via de conseqüência, ao ascendente é vedado alienar seu bem ao descendente, sem que os demais herdeiros consintam, bem como seu cônjuge.

Logo, por igual razão ser-lhe-ia vedado dar em garantia os seus bens, em favor de um descendente, sem que os demais, além do consorte, anuam expressamente.

III.7. Aspectos processuais

Outro aspecto de relevo é saber-se quem tem legitimidade para propor a ação anulatória. E a resposta parece ser somente os interessados, quais sejam, os descendentes que não anuíram, e, atualmente, ao cônjuge preterido.

A ação, com carga eminentemente desconstitutiva, com rito ordinário, terá como foro o domicílio do réu ascendente.

Isso porque a ação em tela é de direito pessoal, pois se pleiteia a nulidade de escritura pública de compra e venda, por ineficácia antecedente. O objeto do pedido é a declaração de ineficácia da compra e venda, formalizada em escritura pública. E, em face disto, por ser a ação de direito pessoal, deve acompanhar a regra do art. 94 do Código de Processo Civil.

Não se aplica, portanto, a regra do artigo 95, do Código de Processo Civil, que remete a ação ao local onde o bem imóvel se localiza.

Com essa tese comunga Débora Gozzo [69], que vê no domicílio do ascendente o foro único, independentemente da situação do bem.

Também não é necessário que todos ajuízem a ação. Basta que um o faça, e o efeito da declaração da ineficácia atingirá os demais descendentes.

No pólo passivo, o litisconsórcio é necessário e unitário, impondo-se o chamamento do ascendente e do descendente envolvido no negócio jurídico, além do adquirente do imóvel

Caso haja o terceiro interposto, também este deverá ser chamado à lide.

III.7.1. Prescrição

O prazo prescricional, previsto na Súmula 494 Supremo Tribunal Federal [70], é de 20 (vinte anos), contados da data da compra e venda.

Essa postura do Supremo decorre do momento em que foi haurida a súmula, na vigência do antigo Código Civil, que se pautava no artigo 177, que previa prescrever as ações pessoais em vinte anos.

Aliás, é bom que se diga, essa Súmula 494 veio cancelar anterior posicionamento sinóptico, também do Supremo, que entendia ser o prazo prescricional da referida anulação de quatro anos. [71]

Ocorre, porém, que o novo Código Civil, no seu artigo 205, diz que "a prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor."

Por conseguinte, tem-se que o prazo prescricional para as ações pessoais não se perfaz mais em 20 (vinte) anos, como regra geral, mas sim em 10 (dez) anos.

Concordemente, entendemos que, doravante, os prazos prescricionais para as ações de declaração de ineficácia das alienações de descendente para ascendente, serão de 10 (dez) anos.

No caso do descendente menor, o prazo prescricional somente correrá após atingir a maioridade. E no do cônjuge, nos termos do artigo 197, II, do Código Civil de 2.002, não corre esse prazo na constância do casamento.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior

advogado sócio do escritório Zanoti e Almeida Advogados Associados; doutorando pela Universidade Del Museo Social, de Buenos Aires; mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos; pós-graduado em Direito Contratual;pós-graduado em Direito das Relações Sociais; professor de Direito Civil e coordenador da pós-graduação da Associação Educacional Toledo (Presidente Prudente/SP), professor da FEMA/IMESA (Assis/SP), do curso de pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – UEL, da PUC/PR, da Escola Superior da Advocacia, da Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo. Os contratos de compra e venda, de doação e de permuta entre ascedentes e descendentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3859. Acesso em: 23 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos