O Estado brasileiro é pródigo na cobrança das obrigações do cidadão. Esse rigor, contudo, não existe quanto às obrigações do poder público para com o particular. O exemplo mais gritante dessa cultura nacional está nos precatórios: as dívidas que municípios, estados e a União fazem de tudo para não pagar.
No último dia 25, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), colocou um ponto final na farra do descumprimento dos débitos judiciais, cujo atraso vem aumentando progressivamente, na mesma proporção do valor global da dívida. Nos últimos 26 anos, o Estado decretou, unilateralmente, sucessivas moratórias no pagamento de precatórios. A primeira estabelecida pelo constituinte da Carta de 1988 (ADCT, art. 33) e a última promulgada por meio da Emenda Constitucional 62 de 2009 (ADCT, art. 97).
Ao concluir o julgamento da modulação dos efeitos da decisão proferida nas ADIs 4.357 e 4.425, que praticamente aniquilou a chamada “Emenda do Calote”, o STF fixou o prazo improrrogável até 31 de dezembro de 2020, para que todo o estoque da dívida judicial dos Estados e dos Municípios, incluindo os novos precatórios a serem expedidos até o final desse prazo, seja irremediavelmente quitado.
A partir dessa data, nenhum ente público poderá encontrar-se em mora no cumprimento dessas dívidas, que voltarão a ser pagas, a partir de janeiro de 2021, de acordo com o regime geral previsto no art. 100 da Constituição da República, ou seja, dentro do exercício financeiro seguinte àquele em que tiver sido expedida a ordem de pagamento pelo Judiciário.
Além do seu caráter preventivo em relação a outras eventuais moratórias, essa decisão é também dotada de um forte conteúdo pragmático. Os esforços empregados pelos ministros da Suprema Corte para obtenção, entre si, de um amplo consenso no Plenário em torno de uma única proposta de modulação, fruto de vários ajustes recíprocos nos respectivos votos, revelam muito mais que uma preocupação institucional. Mostram acima de tudo compromisso com a sociedade de não mais tolerar, de agora em diante, as conhecidas justificativas, frequentemente apresentadas pelos gestores públicos para deixar de honrar os precatórios.
É claro que esse compromisso não foi firmado sem qualquer vantagem para os Estados e Municípios. Muito pelo contrário. Ao modular a decisão que havia proferido em 14 de março de 2013, o STF acabou perdoando a diferença da correção monetária entre julho de 2009 até o dia 25 de março de 2015, período no qual o Índice de Preços ao Consumidor Amplo — Série Especial (IPCA-E) variou 37,91%, enquanto a Taxa Referencial (TR), empregada na atualização dos precatórios no mesmo período e julgada inconstitucional pelo próprio STF, variou apenas 3,57%.
Só esse desconto compulsório imposto pelo STF sobre o patrimônio dos credores conferiu uma redução do montante global da dívida de mais de R$ 35 bilhões, mantendo-a nos atuais R$ 97 bilhões, segundo última apuração do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Além desse desconto, o STF ainda permitiu que metade das disponibilizações orçamentárias para pagamento de precatórios possa ser utilizada pelas entidades devedoras para quitação dos débitos por meio de acordos diretamente celebrados com os credores, com deságio de até 40% do valor dos créditos, o que, na prática, permitirá aos devedores abater mais 20% do valor total do estoque.
Esses enormes descontos, entretanto, embora evidentemente prejudiciais aos credores, legitimam o compromisso do STF de tratar o assunto daqui por diante com tolerância zero. Fixou-se que os devedores têm que equacionar seus orçamentos já a partir de janeiro de 2016, para aumentar, tanto quanto necessário for, o percentual da Receita Corrente Líquida a que alude o § 2° do art. 97-ADCT. As amortizações mensais devem corresponder ao volume de recursos efetivamente compatíveis com a liquidação integral de todos os precatórios pendentes de pagamento até o final do exercício de 2020, sob pena de imposição coercitiva das correspondentes medidas sancionatórias. Entre elas o sequestro das importâncias devidas.
O fato de o STF ter atribuído competência ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de fiscalizar o repasse dos recursos das entidades devedoras aos Tribunais de Justiça, monitorando os pagamentos e propondo medidas concretas e necessárias para assegurar a liquidação total dos precatórios vencidos até 2020, reforça o compromisso subjacente à decisão proferida no último dia 25 de março.
Cumpre ao STF, a partir de agora, velar fielmente pelo cumprimento de sua própria decisão, não permitindo que em nenhuma hipótese o devedor, por mais razoável que pareça a sua justificativa, deixe de honrar as quantias devidas para a satisfação integral da dívida.
Afinal, os ministros da Corte Suprema não poderão se esquecer da grande cota de sacrifícios que impuseram aos credores ao estabelecer as premissas de sua decisão, suprimindo substancial parte de seus legítimos direitos após anos a fio no aguardo do cumprimento de decisões passadas há décadas em julgado, somente admitidos na expectativa de colocar um ponto final na inadimplência dos precatórios.
Espera-se o mesmo do Supremo caso o Congresso Nacional venha novamente a adotar legislação que altere a expectativa da sociedade de terminar a novela dos precatórios no final de 2020. Seja impondo inconstitucionalmente novos sacrifícios aos credores, seja buscando contornar ou mitigar a obrigação dos entes públicos de liquidar os débitos judiciais pendentes até o final desse prazo —, como já se ouve murmurar nos bastidores políticos.