Capa da publicação Direito administrativo para céticos: do modelo de clipes ao de negócios e a republicização
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Direito administrativo para céticos

01/09/2017 às 10:23
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A partir da teoria dos antagonismos, o artigo traça as diferenças do modelo administrativo de clipes e o de negócios, fala das crises de concepção e concretização do interesse público e da republicização do Estado como melhor forma de consolidação dos interesses públicos.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Administrativo para Céticos. Teoria dos Antagonismos. Modelo Administrativo de Clipes. Modelo Administrativo de Negócios. Republicização Estado.


INTRODUÇÃO

Com avaliação crítica de elementos e ideias, com menção a tópicos de Direito Administrativo, e apontamentos de aspectos positivos e negativos, o presente artigo aborda as principais idéias da Teoria dos Antagonismos, as diferenças do modelo Administrativo de Clipes e o de Negócios, no primeiro momento, e as crises de concepção e concretização do Interesse Público e Republicização do Estado como melhor forma de consolidação dos interesses públicos, em um segundo momento.


DIREITO ADMINISTRATIVO PARA CÉTICOS - DOS CLIPES AO DOS NEGÓCIOS E A REPUBLICIZAÇÃO

As atuais análises do operador de Direito voltam-se mais na modelagem dos princípios norteadores do ordenamento jurídico do que para os institutos jurídicos. Analisa-se muito mais o princípio da segurança jurídica, e.g., do que o instituto de nulidade em um caso concreto. Contudo, essa forma de análise tende a substanciar e a evoluir em uma teoria dos antagonismos, pois a solução de conflitos não está na aplicação direta de institutos ou princípios. Diante do caso concreto, é possível o administrativista identificar o que se pode aplicar, como por exemplo, se é plausível a incidência do direito de regras ou direito de princípios. Em um determinado momento, o operador deverá pesar se aplicação de um determinado instituto ou princípio é melhor do que aplicação de seu oposto, a fim de um estabelecimento mais concreto de justiça.

Nesse sentido do antagonismo, analisa-se o direito administrativo dos clipes (DAC) como aquele pelo qual a Administração trata direitos e deveres em papel, tende a ter mecanismos de auto-preservação dos agentes públicos, fazendo burocracia para alcance de direitos, não toma conta do tempo, custos e resultados. Contrário a isso, o direito administrativo dos negócios (DAN) foca nos resultados, no tempo e nos recursos escassos, em que se praticam atos opostos como aumento da informalidade nos procedimentos, o desejo de acordos plausíveis a conflitos, etc. O direito administrativo dos negócios é adequado aos momentos de crise política e econômica, e baseia-se em máximas como a continuidade do serviço público, eficiência, parcerias com o setor privado, etc.

Nota-se que as reformas na administração pública tentadas na década de 90 foram para mudança do DAC para o DAN, a fim de tornar as regras formalistas mais leves, como a criação do pregão como modalidade de licitação, por exemplo. Houve à época, desestatizações de investimento, a fim de atrair o incentivo privado, e as desestatizações de gestão, feitas para o Terceiro Setor, instituições privadas com atividades sociais; Setor Autônomo, entidades criadas por lei, com recursos de contribuições legais, sem vínculo formal com a Administração; e por fim o Setor Espelho, entes de regime privado nascidos como extensões informais dos órgãos públicos, a fim de apoiá-los. A crítica a esse regime de desestatização consiste no desvio de recursos e fuga do regime administrativo construído pela Constituição, considerada frágil por Carlos Sundfeld e sustentada pelos órgãos de controle.

Embora o DAC seja criticado pelos administrados e por governantes, há ainda resistência e crescimento de seus regulamentos e formalidades, pois em um juízo antagônico no caso concreto, melhor é negar um pedido em caso de dúvida ou demorar por prudência, por exemplo. O DAC possui apoiadores no cotidiano administrativo e judicial, os quais carecem de incentivo e bloqueiam as ações práticas de DAN. O caráter bipolar do direito administrativo também deve ser levado em conta, pois um pólo não será sempre dogma a ser tomado em qualquer caso concreto, o que torna o DAN mais atrativo ao desenvolvimento efetivo do direito administrativo.

Sistematização do interesse do Estado, o Interesse Público, “bem geral”, de natureza do governo, vive duas crises em sua noção: endógena, crise de aplicação do conceito de interesse público, em que o princípio da legalidade não é suficiente para sua interpretação e aplicação com o crescimento do aparato burocrático, e a crise exógena, crise de justificação, imposta por fatores externos que afetam o confinamento do poder decisório central administrativo. Os precedentes da crise exógena estão diante da crescente fragmentação social, da emergência de fontes supranacionais de conflito, da sobreposição de interesses privados e públicos. As organizações privadas assumem atividades que deveriam estar a cargo do Poder Público ou este se utiliza de mecanismos de direito privado para intervir no mercado, e na amplitude maior dos interesses que demanda a tutela do Estado, maior que os interesses da coletividade submetida ao Poder Público.

O Direito concebe o interesse público como predominante sobre o interesse privado, consagrado na lei, mas pela análise mais sistemática, deve-se focar como um elo de mediação de interesses privados dotados de legitimidade. Não há viabilidade da noção de interesse público ser universal, absoluto e singular por causa dos processos de internacionalização e fragmentação social, além da impossibilidade do caráter autoritário do Estado. Agora, o conceito de público compreende-se pelo conjunto indeterminado e desterritorializado de consumidores diante de normas supranacionais, na qual não há homogeneidade social, e por isso, decorre a noção de que os interesses públicos são heterogêneos. Pelas diversas sociedades pluralistas existentes, há uma pluralidade de interesses públicos, na qual antes de poder declará-los, devemos encontrá-los, conforme entendimento de Giorgio Piva, e se nota que a discricionariedade faz-se importante em momentos de vários interesses concorrentes. Nos contratos administrativos feitos com particulares, e.g., há o dever de a administração cumprir cláusulas econômicas, sendo atendido o interesse particular e conseqüentemente o público também. Os interesses primários podem se chocar e deverá ser aplicado conforme o caso, como exemplo da concorrência entre preservação do ecossistema e o assentamento de famílias agricultoras. Portanto, perante as transformações vividas pela sociedade, não prevalece de forma absoluta o direito público sobre o direito privado, e conseqüentemente não há um interesse público uno. É necessário, por fim, avaliação qualitativa dos legítimos interesses individuais para obtenção no caso concreto do interesse público, conforme ensina José Eduardo Faria.

A nova visão de interesse público faz com que a Administração não exerça mais o papel de hermeneuta autoritário do que seja ou não de interesse da coletividade. À luz das mudanças do papel da Administração, há transformação do aparato administrativo de intérprete autoritário do interesse público para mediador de interesses públicos, a fim programar e efetivar esses interesses. A permanência do Estado, quanto à segurança dos interesses difusos, é imprescindível para assegurar o não aniquilamento dos interesses de indivíduos excluídos dos grupos de interesse especial. Mesmo à luz de novas perspectivas, os princípios centrais do regime jurídico-administrativo – a supremacia do interesse público e a indisponibilidade deste não podem ser abandonadas. Na transferência ao particular de determinado serviço público, o Poder Público deve ainda reforçar seu papel regulatório, sob pena de abandono dos interesses públicos difusos.

Imperativa se faz a republicização do Estado como melhor maneira de pensar a reforma do Estado, para superação dos pressupostos conformadores do Estado Moderno, protegendo os interesses que não assegurados pela configuração social e econômica vigente. Esse processo seria marcado pela assunção da função primacial do Estado como tutor e viabilizador das necessidades e direitos daqueles que não encontram guarida na representação e articulação de certos grupos de interesses. Significa o reconhecimento da existência e legitimidade de inúmeros interesses privados transindividiuais. Aqui, a legitimidade da ação do poder público depende da capacidade de demonstrar o porquê de uma ação desigual no sentido de privilegiar um interesse público em detrimento de outro. A descontaminação da esfera pública dos interesses especiais e até mesmo os particularísticos fazem parte do componente central desse processo, pois ainda há submissão do serviço público a interesses privados. O Estado deve implicar seus recursos e sua capacidade regulatória e decisória para um intenso intervencionismo indireto, e excepcionalmente ser direto, na produção de bens e execução do serviço público. Em um Estado republicizado, há existência efetiva de controle público apto a preservar os interesses públicos difusos envolvidos numa dada situação. Esse processo também é ligado à participação direta dos indivíduos, no exercício do poder político, não se reduzindo apenas a mecanismos de representação política, mas deve se envolver a possibilidade de intervenção na formulação de políticas públicas, alocação de recursos e edição de normas.

A complexidade dos conflitos sociais e o poder de pressão dos diversos interesses existentes na sociedade reforçam a necessidade de mediação e de decisão do poder político. A nova configuração do Estado, decorrente do processo de republicização, planeja um novo modelo de Administração Pública, pautado no fortalecimento regulador do Estado, na permanente transparência e motivação nas mediações dos interesses públicos, e na sujeição da atividade estatal aos controles judicial e social. Os entes reguladores autônomos - agências reguladoras - é o eixo de indicação dos lineamentos do novo paradigma de Direito Administrativo, na qual corresponde à necessidade do poder político constituir espaços em que sejam possíveis a articulação e a mediação de interesses, mais próximo as necessidades do Estado e da sociedade contemporânea.


CONCLUSÃO

Conforme visto, o administrador, a fim do alcance de justiça, deverá pesar se a aplicação de um determinado instituto ou princípio é melhor do que aplicação de seu oposto, pois as atuais conjunturas do Direito, em sua operação, norteiam mais na modelagem de princípios do ordenamento jurídico do que para os institutos jurídicos.

Em duas vertentes, há o direito administrativo dos clipes, em que a Administração trata direitos e deveres em papel, tende a ter mecanismos de autopreservação dos agentes públicos, fazendo burocracia para alcance de direitos, não toma conta o tempo, custos e resultados; e por outro lado, há o direito administrativo dos negócios, em que se foca nos resultados, no tempo e nos recursos escassos, no qual se pratica atos opostos como aumento da informalidade nos procedimentos, o desejo de acordos plausíveis a conflitos, etc, sendo adequado em momentos de crise política e econômica, e baseia-se em máximas como a continuidade do serviço público, eficiência, parcerias com o setor privado, etc.

Apesar de o direito administrativo dos clipes demonstrar maior força e controle do Estado nos procedimentos públicos, o direito administrativo dos negócios se torna mais propício em momentos em que se exige maior celeridade nos procedimentos administrativos, com maior informalidade, e maior eficiência em meio à crise econômica e política do país. Foi o que se tentou nos anos 1990, com a mudança do Direito Administrativo dos Clipes para o Direito Administrativo, como por exemplo a criação de mais uma modalidade de licitação, o pregão, atração de incentivo privado aos investimentos públicos, desestatizações de gestão, feitas para o Terceiro Setor, instituições privadas com atividades sociais, etc.

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O interesse público vive duas crises em sua noção, uma endógena, crise de aplicação do conceito de interesse público, em que o princípio da legalidade não é suficiente para sua interpretação e aplicação com o crescimento do aparato burocrático, e a crise exógena, crise de justificação, imposta por fatores externos que afetam o confinamento do poder decisório central administrativo. Nessa esteira, conclui-se que não há viabilidade da noção de interesse público ser universal, absoluto e singular por causa dos processos de internacionalização e fragmentação social, além da impossibilidade do caráter autoritário do Estado, em que Público consiste, atualmente, pelo conjunto indeterminado e desterritorializado de consumidores diante de normas supranacionais, na qual não há homogeneidade social, e por isso, decorre a noção de que os interesses públicos são heterogêneos.

À luz dessas transformações vividas pela sociedade, a Administração não tem para si o papel de hermeneuta autoritário do que seja ou não de interesse público, e não prevalece de forma absoluta o direito público sobre o direito privado, diante das crescentes parceiras público-privadas com contrapartidas dos dois polos contratantes. De todo modo, na transferência ao particular de determinado serviço público, o Poder Público deve reforçar seu papel regulatório, sob pena de abandono dos interesses públicos difusos, sendo imprescindível esse papel do Estado.

Como melhor forma de reforma do Estado, se traz a ideia de republicização do Estado, para superar os pressupostos conformadores do Estado Moderno, protegendo interesses não assegurados pela configuração social e econômica vigente. Vale ressaltar que nesse cenário o Estado garantiria a existência e legitimidade de inúmeros interesses privados daqueles que não encontram representação e articulação de certos grupos de interesses. Assim, conforme supramencionado, há efetiva existência de controle público apto a preservar os interesses públicos difusos envolvidos numa situação em concreto, ainda, com participação indireta dos indivíduos, no exercício do poder político, não apenas na representação política, mas também na possibilidade de envolvimento na formulação de políticas públicas, alocação de recursos e edição de normas, entre outras formas de efetiva participação do cidadão.


REFERÊNCIAS:

SUNDFELD, Carlos Ari. Que Direito Administritivo? In: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros/Direito GV, p. 85-92, 2012.

MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Capítulos IV e V. In: MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação Estatal e Interesses Públicos. São Paulo: Malheiros, p. 144-211, 2002.

TANAKA, Sônia Yuriko Kanashiro et al. Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2008.

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Sobre o autor
Rafael Justiniano

Estudante na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JUSTINIANO, Rafael. Direito administrativo para céticos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5175, 1 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39251. Acesso em: 28 mar. 2024.

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