INTRODUÇÃO
Com a ascensão do sistema capitalista e a valorização do sistema mercantil nas relações econômicas, a necessidade de flexibilização dos trabalhos tornou-se incontinenti. Com isso, em meados da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), surgiu a terceirização como mecanismo capaz de solucionar os problemas das relações empregatícias mais vetustas.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, “terceirização é a contratação de serviços por meio de empresa, intermediária entre o tomador de serviços e a mão de obra, mediante contrato de prestação de serviços”. De forma mais abrangente, terceirizar consiste no ato da empresa contratante repassar a execução das atividades-meio para determinadas empresas contratadas, sobre as quais recaem os encargos de responsabilidade pelo aperfeiçoamento da mão-de-obra para o mercado de trabalho.
Em terrae brasilis, não há uma legislação específica que se debruce sobre a terceirização e suas peculiaridades. Até o presente momento, as relações oriundas da terceirização são regulamentadas, no Brasil, pela Súmula 331 do TST. O referido posicionamento do TST floresceu do Enunciado 256, em 1986, o qual viabiliza a contratação por empresa interposta em situações excepcionais, como no trabalho temporário e no caso de vigilância. Com a tessitura socioeconômica dos anos 90 e a crescente diversificação do mercado, fruto da difusão dos conceitos liberais mundo afora, o Tribunal em tela cedeu às pressões e editou a súmula supramencionada, dando permissão ao processo de contratação por empresa interposta, nos casos de trabalho temporário, serviços de vigilância, de conservação e limpeza e dos serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Há exigência, ainda, de inexistência de pessoalidade e subordinação direta para com o tomador de serviços, aplicando a responsabilidade subsidiária a este.
PL 4330/04: HISTÓRICO
O Projeto de Lei 4330/04 tem seu nascedouro ainda no ano de 1998, quando o deputado Sandro Mabel apresentou o PL 4302, que buscava dirimir as principais resoluções referentes ao trabalho temporário e à prestação de serviços. Segundo noticiam Elaine D’Avila Coelho e Marilane Oliveira Teixeira, o referido Projeto
“visava legalizar a locação da mão de obra, de qualquer natureza, por prazo indeterminado, pois ampliaria o prazo de 90 dias previsto na lei para 180 dias, que poderia ser prorrogado mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Mencionado projeto fortaleceria a terceirização, pois permitiria esse tipo de contrato em qualquer atividade, fim ou meio, o “sonho das empresas”.”
Não obstante, tal projeto foi vetado pelo então Presidente da República Lula, pro meio da mensagem n° 389/2003. Com o arrefecimento da pressão das centrais sindicais, o deputado outrora citado apresentou, em 2004, em sessão da Câmara dos Deputados, o PL 4330, cujo cargo-chefe é a prestação de serviços terceirizados. À época, o projeto em comento foi alvo de aclamações pela maioria da bancada da Câmara e recebeu total suporte da CDEIC (Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio) e CTASP (Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público).
Em contraponto, A CUT (Central Única dos Trabalhadores) apresentou, por intermédio do deputado Vicentinho, o PL 1621/07, cujos principais objetivos eram ilidir a terceirização da atividade-fim e estabelecer a responsabilidade solidária às empresas contratantes. Todavia, o projeto sequer foi apreciado. Posteriormente, foi criada a Comissão Especial na Câmara dos Deputados para apreciar as precípuas nuances do projeto, sob a relatoria do deputado Roberto Santiago.
O PL 4330, no entanto, permaneceu suspenso e só veio a ser trazido novamente à pauta durante o segundo mandato da Presidente da República Dilma Rousseff, após a posse da presidência da Câmara pelo deputado Eduardo Cunha, do PMDB-RJ, em 2015.
PL 4330/04: ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS
Equiparação Salarial
O primeiro dos pontos a ser dissecado pelo presente trabalho diz respeito à equiparação salarial. Segundos dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário dos trabalhadores terceirizados é 24% menor que o dos empregados formais.
Desse modo, é de hialina constatação que tal discrepância na remuneração fere os incisos VI, X, XXX e XXXII, do art. 7° da Constituição Federal de 1988, referentes à relação trabalhista compreendida de maneira orgânica e interligada. Em especial, o art. 7°, XXX da CF/88, referente á equiparação salarial, necessita ter seu significado estendido pela CLT, a qual traz, em seu art. 461, a seguinte regra: “Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor, prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade.” Para que a equiparação salarial seja exigida, a CLT enumera alguns requisitos, a saber:
“1) trabalho prestado ao mesmo empregador 2) na mesma localidade 3) entre empregados da mesma função 4) com diferença de tempo na função não superior a dois anos 5) que exerça o trabalho com a mesma produtividade 6) que tenha a mesma perfeição técnica 7) que exista simultaneidade na prestação de serviços.”
Violação aos direitos fundamentais da classe trabalhadora
O segundo argumento utilizado para sopesar a inconstitucionalidade do projeto em comento diz respeito à violação dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
Em que pese o posicionamento das empresas, as quais buscam, com a ampliação da terceirização, maior poderio econômico e redução de gastos, não se pode olvidar que os trabalhadores, e neles estão inclusos os terceirizados, possuem direitos na Ordem Constitucional sedimentada pela Carta da República de 1988. O regime democrático, instituído após um período conturbado da história brasileira, foi defendido para, dentre outros objetivos, estabelecer um regime de paridade, sendo este permeado pela igualdade material, típico das democracias populares e das constituições programáticas, como é o caso da Carta Republicana de 1988. Como defendem Elaine D’Avila Coelho e Marilane Oliveira Teixeira:
“Os objetivos fundamentais do Estado de Direito constam do art. 3º da CRB/88, dos quais destacamos os incisos: I, que assegura a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o III, que assegura a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e o IV, que proíbe a discriminação.
{...} Os princípios da ordem econômica estão arrolados neste artigo e indicam a opção do sistema constitucional pelo equilíbrio na relação entre as classes que interagem no sistema capitalista, pois apesar de reconhecer a propriedade privada (II) e a livre concorrência (IV) e de reconhecer a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica (parágrafo único), também dá à propriedade uma função social (III) e um objetivo, que é a busca do pleno emprego (VIII) e a defesa do meio ambiente e do consumidor (V e VI).”
Dessa maneira, a Ordem Constitucional, embora tenha sido calcada no seio de uma sociedade capitalista, possui características que devem ser ressaltadas para que a dignidade da pessoa humana seja valorizada. É por isso que a vida digna só pode ser alcançada caso a justiça social seja aplicada também às relações empregatícias. Corrobora com tal tese o art. 193, caput, da Constituição Federal, cujo texto afirma que “a ordem social brasileira tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social.”
Além do já mencionado, extrai-se do artigo 7°, XXX, XXI e XXII, e do artigo 8° da CF regras de igualdade material, quais sejam a vedação das diferenças salariais, do exercício de funções e de critérios por motivos de sexo, cor, idade ou estado civil, além da proibição expressa aos atos discriminatórios aos portadores de deficiência e à diferenciação entre trabalho manual, técnico e intelectual. Portanto, qualquer conduta que seja voltada a tratar os trabalhadores de forma diferenciada, sendo nutrida por preceitos discriminatórios, fere não apenas a supremacia constitucional, como também atinge de igual modo os preceitos basilares que circundam a dignidade da pessoa humana. Kant, em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, assim apregoava:
“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.
Responsabilidade subsidiária em detrimento da solidária
O terceiro ponto a ser debatido diz respeito à responsabilidade. No campo do Direito é importante saber quem será o incumbido por indenizar as ações praticadas em afronta aos direitos dos trabalhadores, conferindo-lhes certa segurança jurídica.
Em sede de terceirização, com a adoção da responsabilidade solidária, tanto a empresa prestadora de serviços quanto a tomadora estão vinculadas no cumprimento da obrigação, aparecendo ambas no polo passivo da obrigação. Trata-se de uma responsabilidade direta e imediata. Já na responsabilidade subsidiária, que é indireta e mediata, só se exige da tomadora a indenização quando o devedor principal (a prestadora de serviços) não tiver capacidade econômico-financeira para adimplir o pagamento.
A Súmula 331 do TST dá supedâneo a essa posição, conquanto em seu texto dispõe que haverá responsabilidade subsidiária na terceirização lícita, que ocorrerá quando ambas as empresas, tomadora e prestadora, passarão a figurar no polo passivo da demanda. Todavia, os bens patrimoniais da tomadora somente serão passíveis de constrição para pagamento dos débitos caso a prestadora não os tenha ou não sejam em valor suficiente para cumprir a obrigação. Tal mecanismo, que incorre em ataque direto à dignidade e ao valor social do trabalho, é denominado “benefício de ordem”.
Conforme o exposto, o ônus da prova é do trabalhador, que deve provar que a empresa tomadora incorreu em má escolha quando escolheu determinada prestadora de serviços, sendo este caso de culpa in eligendo, ou comprovar que a tomadora não fiscalizou de forma satisfatória os encargos trabalhistas, sendo constatada a culpa in vigilando.
O PL 4330, a seu turno, estabelece como regra a responsabilidade subsidiária à empresa contratante, ficando-lhe ressalvada a ação regressiva contra a prestadora, conforme o artigo 10. Não obstante, o referido projeto não se manifesta acerca dos limites da terceirização, tornando dispendiosa e, possivelmente, até sem efeito a comprovação da relação empregatícia, porquanto o art. 2°, §2°, do projeto aduz que “Não se configura vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo.”. Elusivo é o pensamento de Dayane Rose Silva, a qual afirma que a tomadora
“continua subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período da prestação de serviços, ficando ressalvada a ação regressiva contra a devedora, a qual gera o dever da empresa terceirizada ressarcir a contratante o valor pago ao trabalhador, despesas processuais acrescidas de juros e correção monetária e indenização em valor equivalente à importância paga ao trabalhador.”
Assim se constata que o terceirizado, além de possuir o ônus da prova em situações como a supramencionada, acaba por ter seu direito de ressarcimento abalado pelo PL 4330. A dignidade humana, a cidadania e os valores sociais do trabalho, fundamentos da República Federativa do Brasil, e os princípios basilares da ordem democrática e igualitária acabam sendo vilipendiados diretamente por tal projeto.
CONCLUSÃO
No ordenamento jurídico a Constituição é a norma responsável por dar fundamento e validade às normas infraconstitucionais. É dizer: deve haver a “vontade de Constituição”, expressão cunhada por Konrad Hesse, em seu livro Força Normativa da Constituição. Ou seja, deve haver o respeito à norma maior do sistema para que qualquer norma possa existir e produzir efeitos na órbita jurídico-política.
Nesse diapasão, é de suma importância fazer o cotejo entre o PL 4330, de autoria do ex-deputado Sandro Mabel, e a Constituição Federal, para que se possa tornar mais claro qual o verdadeiro objetivo colimado na elaboração legislativa em comento. Em suma, os trabalhadores merecem ter seus direitos respeitados, já que são a parte mais frágil da relação empregatícia e possuem menos recursos de defesa, haja vista a predominância da conjuntura neoliberal que permeia o Brasil e que, no mais das vezes, ancora os interesses da classe industrial.
Com o devido resguardo ao primado universal da dignidade da pessoa humana, da igualdade material e dos valores sociais do trabalho é que a classe empregatícia poderá exercer suas funções da maneira mais qualitativa. Além disso, faz-se mister que tanto as tomadoras como as prestadoras de serviço tenham zelo por tais postulados constitucionais, no intuito de regulamentar a terceirização para que se possa impedir que a classe trabalhadora sofra ofensas aos seus direitos individuais e fundamentais por práticas abusivas e atentatórias das grandes empresas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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