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A crise no Iraque e a importância de salvar a ONU para a manutenção do sistema internacional de proteção dos direitos humanos

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6. A construção da concepção atual de direitos humanos

Estabelecidas algumas noções gerais a respeito do contexto histórico da ONU, seu estatuto jurídico, composição e estrutura, passemos ao estudo mais diretamente ligado aos direitos humanos, de forma a estabelecer conexões entre a autuação da organização internacional em questão e o sistema protetivo de tais direitos.

Conforme afirmado acima, em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas adotou por unanimidade a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A Declaração Universal, já foi dito aqui, confirmou o compromisso, anteriormente firmado pela Carta das Nações Unidas, de promover e proteger os direitos humanos, constituindo-se em um dos documentos mais importantes da história da humanidade, além de constituir-se, nas palavras de ZANINI 7, em um "vínculo de união entre diferentes concepções dos direitos do homem, válidas nas diversas partes do mundo".

DALLARI, tecendo breve comentário a respeito da Declaração Universal, afirma ser expressivo o fato da mesma "proclamar" os direitos fundamentais, o que tornaria evidente que, a partir daquele momento, não haveria o simples reconhecimento ou concessão, mas uma proclamação, significando que sua existência independe de qualquer vontade ou formalidade, sendo que nenhum indivíduo ou entidade tem legitimidade para retirá-los de qualquer ser humano.

Além disso, a Declaração Universal cumpriria três objetivos básicos, quais sejam, conferir certeza, segurança e possibilidade de tais direitos a todos os indivíduos, conforme também consignado nas palavras de DALLARI 8:

"O exame dos artigos da Declaração revela que ela consagrou três objetivos fundamentais: a certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer imposições; a segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais serão respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde grande parte do povo vive em condições sub-humanas."

Tendo sido aprovada na forma de Resolução da Assembléia Geral da ONU, de conformidade com o artigo 10 da Carta 9, a Declaração Universal é entendida por parte da doutrina como simples recomendação da ONU, não possuindo natureza jurídica vinculante 10.

Tal entendimento, correto do ponto de vista formal, não diminui a importância da Declaração Universal, que tem sido o cerne de todo o "Movimento pelos Direitos Humanos" e, por isso mesmo, tem transcendido seus próprios aspectos formais.

Expressiva parte da doutrina afirma que a Declaração Universal configura verdadeiro texto interpretativo da Carta, ou, melhor, "princípio geral de direito internacional", elevado à categoria de jus cogen, pela aplicação conjunta do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, concluindo que dessa forma a Declaração Universal acabaria por ser revestida de efeitos vinculantes 11.

De fato, a Declaração Universal, trazendo dispositivos que protegem interesses supremos do gênero humano nada mais fez que declarar princípios gerais de direito reconhecidos por toda a comunidade internacional, criando uma prática geral aceita como direito consuetudinário com força obrigacional imperativa no seio dessa mesma comunidade.

MAROTTA RANGEL 12, já em 1969, delineava tais premissas ao consignar "a extrema interdependência da Declaração para com as duas outras fontes de Direito Internacional: os princípios gerais de direito, de que ela é, em grande parte, testemunho e porta-voz, e de cuja natureza não pode deixar de participar ...; e os costumes internacionais, de que ela seria instrumento de explicitação."

Já HENKIN 13, ao concluir suas observações a respeito da Declaração, reconheceu seu caráter jurídico, seja como concretização do princípio empenhado no artigo 56 14 da Carta das Nações Unidas, seja como jus cogens, na forma como acima explanado.

Tomaremos aqui a Declaração Universal dos Direitos Humanos como uma obrigação, verdadeiro jus cogens, para os membros da comunidade internacional, que enuncia uma concepção de direitos iguais e inalienáveis comuns a todos os povos e necessariamente aplicáveis por todos os países pertencentes à ONU.

Tais premissas, expostas em relação à Declaração Universal, se revestem de especial impostância ao verificarmos que foi a partir dela e da Carta da ONU que passou a existir e desenvolver-se um sistema internacional de proteção dos direitos humanos, afirmando-se a universalidade e indivisibilidade de tais direitos.

De fato, sob a forte influência da Declaração Universal, virtualmente todo Estado, hoje, tem nominalmente se comprometido com os direitos humanos, em princípio e em conteúdo. Muitos Estados, nas palavras de HENKIN, "tem tomado emprestado da Declaração Universal os seus preceitos, ou incorporado os mesmos em suas constituições por referência".

Essa universalização dos direitos humanos pode ter sido a mais importante contribuição da Declaração Universal. Tal fato se deu, especialmente em função de sua "voluntariedade", ou seja, do caráter de "promoção" que se atribuía à Declaração Universal e que era consistente com os tradicionais meios do sistema de inter-relacionamento dos Estados.

Ademais, o sistema político internacional aceitou os direitos humanos como um valor sistêmico, dando-lhes lugar primordial na agenda política internacional, tratando-os politicamente e levando-os em conta nas relações bilaterais dos Estados.

Verifica-se, então, que a partir da Declaração Universal a preocupação com os direitos humanos deixou de ser uma mera discussão acadêmica, ou relativa a aspectos humanitários, passando a integrar a agenda política internacional, tornando-se um dos parâmetros de inter-relacionamento dos Estados e incorporando-se às legislações internas e às constituições, de forma a claramente demonstrar sua universalização.

Por outro lado, se os direitos humanos tornaram-se um dos parâmetros do inter-relacionamento dos Estados, esses mesmos direitos devem condicionar qualquer ação internacional praticada pela comunidade internacional, ou por um Estado de forma unilateral.

Isso não significa dizer que os direitos humanos, ou sua defesa, servem de desculpa para qualquer tipo de aventura militarista internacional, pelo contrário. A defesa dos direitos humanos se faz, essencialmente, através de missões de paz e do comportamento da comunidade internacional em manter a paz.

Por isso que o procedimento adotado pela ONU, através do Conselho de Segurança, era o mais adequado, uma vez que desarmava o Iraque e minava seu governo totalitário sem expor as populações civis a uma guerra, o que implica em por em risco um dos direitos humanos mais essenciais, ou seja o direito à vida.

Assim, a ação unilateral americana, além de ilegítima e ilegal, nos termos da Carta da ONU, também fere o conceito de universalização dos direitos humanos, além de atentar contra a sua indivisibilidade.

PAULO BONAVIDES 15, ao tratar da universalidade dos direitos humanos, menciona que tal processo se deu em três fases, as quais correspondem, respectivamente, três gerações de direitos fundamentais, a saber:

  • a) direitos de primeira geração: relativos à liberdade (políticos e civis); são direitos oponíveis ao Estado, sendo que seu titular é sempre o indivíduo, sendo por isso considerados como direitos subjetivos públicos puros e entre os quais se inclui, sem dúvida, o direito à vida;

  • b) direitos de segunda geração: relativos à igualdade (econômicos, coletivos e sociais); é o Estado tendo a obrigação de praticar atos que assegurem o gozo de determinados direitos; assim, o titular de tais direitos é sempre a sociedade como um todo, a coletividade;

  • c) direitos de terceira geração: relativos à fraternidade (direito à solidariedade), onde o destinatário é o próprio gênero humano que, uma vez reconhecidos pelas constituições, tratados e convenções internacionais, completariam a universalidade dos direitos fundamentais e entre os quais se encontra o direito à paz, como corolário da fraternidade entre os povos e do direito à vida, discriminado na primeira geração citada.

Levando em consideração as três gerações de direitos fundamentais citadas e com o prescípuo objetivo de assinalar que as violações aos direitos civis e políticos tem um caráter conjuntural, PASTOR RIDRUEJO 16 afirmou que tais gerações de direitos humanos constituem um conjunto compacto, integrado e homogêneo, não só no plano teórico, mas sobretudo no plano prático.

Como bem assevera FLÁVIA PIOVESAN 17, trata-se de afastar-se "a idéia de sucessão ´geracional´ de direitos, na medida que se acolhe a idéia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante e dinâmica interação".

Logo, percebe-se que, universalmente, já não se pode discutir a proteção aos direitos humanos circunscrevendo o espectro de aplicação desses direitos. Os direitos humanos, primordialmente, integram os direitos fundamentais do homem, que por sua vez não se limitam por aspectos específicos dos direitos humanos, vindo a integrar toda uma gama de direitos e situações protegidos internacionalmente por diversos instrumentos dependentes entre si, como, para tomar por exemplo, o direito ao desenvolvimento dos países menos favorecidos ou o direito à paz.

Esse o magistério de CANÇADO TRINDADE 18 que, no mesmo sentido, prega que as diversas categorias de direitos (individuais, sociais e coletivos) devem ser analisadas à luz da "unidade fundamental" dos direitos humanos, ou seja, de uma indivisibilidade que transcende as formulações distintas dos direitos reconhecidos em diversos instrumentos, para encontrar seu ponto de convergência na pessoa humana.

A lógica dessa indivisibilidade, segundo o autor, contribuiu para a construção de um ordenamento jurídico internacional mais integrado, num processo de infiltração dos direitos fundamentais, incorporados nos tratados sobre direitos humanos, no domínio do direito internacional geral, acarretando obrigações de proteção erga omnes, criando-se um sistema internacional de proteção aos direitos humanos.

Desse sistema internacional de proteção dos direitos humanos fazem parte os principais instrumentos legais internacionais patrocinados em sua elaboração e conclusão pela ONU, e em especial a própria Carta da ONU.

Existe, pois, um consenso no sentido de que a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos acaba por determinar uma interdependência dos mesmos, sejam eles considerados de primeira, segunda ou terceira geração, levando também à interdependência dos instrumentos jurídicos internacionais e das ações internacionais levadas a cabo de maneira efetiva, deixando claro que nenhum direito humano é garantido se não houver garantia para todos os direitos humanos.

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O desenvolvimento dessa nova concepção de direitos humanos, com certeza, decorre dos esforços empreendidos pela ONU na construção do sistema protetivo acima citado, como fica claro pela simples verificação de que os pactos e convenções antes mencionados foram, todos, gerado e desenvolvidos a partir dos órgãos e estruturas criadas pela ONU, ademais de serem celebrados e firmados sob os auspícios de tal organização internacional.

Essa a conceituação de nossa época e a diretriz mestra da agenda internacional de direitos humanos para este de século, tanto que expressa na Resolução 32/130 da Assembléia Geral da ONU e reiterada pela Declaração de Viena de 1993 19.

Trata-se da formulação e assentamento, no seio da comunidade internacional e por influência direta dos trabalhos e esforços perpetrados pela ONU, de uma "doutrina de proteção integral" aos direitos humanos, que acaba por refletir-se na elaboração e na adoção das mais recentes convenções internacionais e que, necessariamente, deve-se refletir na atuação prática dos Estados na comunidade internacional em seu interrelacionamento, o que estava sendo promovido pela ONU através da atuação do Conselho de Segurança na crise iraquiana e que foi, ilegitimamente, atropelado pela atuação unilateral norteamericana e britânica.

No estabelecimento dessa "doutrina de proteção integral", cabíveis são as lições de PASTOR RIDRUEJO, as quais já nos referimos anteriormente, nos sentido de que é absolutamente necessária a cooperação entre países mais ricos e desenvolvidos e países mais pobres, de forma a auxiliar-se no desenvolvimento destes últimos, até como forma de preservação da dignidade humana das populações desses mesmos países.


Considerações Finais

Como já afirmamos, deixou-se de discutir os direitos humanos circunscrevendo o espectro de sua aplicação para, de uma forma mais completa e integral, vislumbrá-los como uma enorme gama de direitos e situações que, para sua efetiva proteção, não se encontram isolados, mas dimensionados em diversos e interdependentes instrumentos internacionais e que demandam uma atuação responsável dos Estados en suas relações internacionais.

Os instrumentos internacionais mencionados, em conjunto, determinam o que se costumou chamar de "sistema internacional de proteção" aos direitos humanos, passando-se da proteção em relação à determinadas situações para a proteção do ser humano de forma completa e integral e reconhecendo uma enorme gama de direitos os quais atuam de forma que não exista efetiva proteção sem que se garanta toda a gama de direitos reconhecidos.

Podemos afirmar, então, que a "doutrina da proteção integral" aos direitos humanos, na verdade, se compõe de um sistema, o qual engloba duas vertentes: uma positiva e outra negativa.

Em sua vertente positiva a "proteção integral" é um sistema de concessões às pessoas ou povos potencialmente mais vulneráveis, vistos não como objeto, mas como sujeitos de direitos originários e fundamentais, importando em abrir-se (pelos Estados, a sociedade internacional, em síntese) as concessões necessárias à fruição de tais direitos por tais pessoas ou povos.

Já em sua vertente negativa a "proteção integral" é um sistema de restrições às ações e condutas dos Estados que, de qualquer forma, direta ou indiretamente, representem uma violação contra os direitos dessas mesmas pessoas o povos, reprimindo-se não apenas os abusos diretos (a exploração, a mercancia), mas também qualquer abuso contra as concessões outorgadas pela vertente positiva do sistema.

Essa a doutrina patrocinada pela ONU e que cada Estado Parte aceitou ao ratificar a Carta da ONU, submetendo-se ao compromisso de construir uma ordem legal internacional voltada para a efetivação dessa proteção integral, que consubstancie o pleno e integral desenvolvimento de todos os potenciais dos povos do planeta, de forma a possibilitar o surgimento de uma sociedade internacional mais justa e equânime.

Essa mesma doutrina, somente encontra sua razão de ser e efetividade na atuação real da ONU por meio de seus orgãos, como o Conselho de Segurança, nos casos de crises inernacionais no relacionamente entre os Estados participantes do sistema jurídico internacional.

E essa era a atuação ponderada que estava sendo patrocinada pelo Conselho de Segurança, antes de ser atropelado pela ação unilateral norteamericana, o seja, buscava-se uma solução pacífica que promovia a proteção integral da dignidade do ser humano, representado pelo povo Iraquiano e por todos os povos que confiam no sistema jurídico internacional.

Justamente esse valor, a dignidade do ser humano, constitui o núcleo duro de todo o sistema de proteção internacional dos direitos humanos, que de forma sem precedentes encontrou desenvolvimento através dos trabalhos da ONU, o que por si só justifica a necessidade de defesa incondicional dessa organização internacional, do sistema jurídico internacional, e a expressa condenação das atitudes britânicas e norteamericana no desenrolar da atual crise internacional.

Assim, esperamos, diante dos conceitos aqui referidos, tais como a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, a unidade fundamental das diversas gerações de direitos humanos, o estabecimento da dignidade do ser humano como valor fundamental e a concepção de proteção integral desse mesmo ser humanos, todos eles desenvolvidos, dinamizados e explicitados em tratados internacionais por meio da ONU, ter demonstrado a importância de tal organização internacional para o estabelecimento de um sistema internacional de proteção dos direitos humanos e a necessidade de uma solução internacional para a atual crise do sistema ONU, provavelmente no sentido de congregar-se os países amantes da paz, como o Brasil, em torno da Resolução Unidos pela Paz, de forma a condenar-se definitivamente qualquer ação militar unilateral e preventiva que tenha o suposto objetivo de salvaguardar direitos humanos.

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Sobre o autor
Sérgio Augusto G. Pereira de Souza

procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito Internacional pela USP, doutorando em Estudos Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona (Espanha), autor do livro: "Os Direitos da Criança e os Direitos Humanos", Ed. Sergio Fabris, Porto Alegre, 2001.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Sérgio Augusto G. Pereira. A crise no Iraque e a importância de salvar a ONU para a manutenção do sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -92, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3962. Acesso em: 19 nov. 2024.

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