O assédio moral nas Forças Armadas

Resumo:


  • O assédio moral é uma prática que visa depreciar a dignidade do funcionário, podendo ser entendido como um atentado contra os direitos humanos, causando danos psicofísicos e refletindo na perda da saúde do trabalhador.

  • Nas Forças Armadas, o assédio moral é um tema delicado devido à estrutura hierarquizada e disciplinada, sendo necessário cuidado na identificação e prevenção desse fenômeno, que pode ser caracterizado por abusos de poder e condutas humilhantes.

  • A responsabilidade civil do Estado pode ser acionada em casos de assédio moral nas Forças Armadas, exigindo a reparação dos danos causados aos militares, com base na Teoria do Risco Administrativo e na competência da Justiça Militar para processar e julgar esses casos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Dignidade. Terror psicológico. Forças Armadas.

           

RESUMO

As arbitrariedades cometidas no intuito de depreciar a dignidade do funcionário, causando-lhe danos, podem ser entendidas como assédio moral, dependendo do contexto. É imprescindível frisar que não é qualquer ato que pode ser considerado como assédio moral, da mesma maneira que não há um número taxativo de hipóteses desencadeadoras desse processo. Assédio moral nas relações de trabalho subordinado ultrapassa as medidas sensatas e aceitáveis no tratamento dispensado ao empregado: é febril, excessivo, discriminatório e degradante atentado contra os direitos humanos. Para, além disso, deturpa o exercício do poder disciplinar. Altera-lhe o destino, desloca-lhe o objetivo. Há nele um abuso da prerrogativa que o direito reconheceu ao empregador. O escopo deste trabalho é mostrar como esse fenômeno pode vir a ocorrer dentro da administração militar à luz de estudos baseados na doutrina, jurisprudência, legislação, entre outros, bem como esclarecer as principais características do assédio moral e os cuidados que o intérprete deve tomar antes de afirmar se houve ou não a caracterização do psicoterror, além de demonstrar quais os direitos do trabalhador que são atingidos e as repercussões que o assédio moral causa.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade. Terror psicológico. Forças Armadas.

INTRODUÇÃO

O assédio moral é, de fato, prática muito antiga que aflige a dignidade do homem, trazendo-lhe diversos transtornos. Contudo, só recentemente que algumas áreas profissionais (psicologia, direito e medicina, entre outras) começaram a estudar o tema e dar-lhe a importância que merece, já que engloba muitos detalhes sutis e complexos.

Esta pesquisa tem a finalidade de mostrar que o assédio moral atinge a dignidade da pessoa humana, perturbando seriamente a integridade psicofísica da vítima, além de poder abalar também a família do assediado e pessoas próximas do mesmo. E isso não só nas relações de trabalho privado, mas também no serviço público e, consequentemente, alcançando os militares. Dessa maneira, serão feitas análises concisas à luz da doutrina, jurisprudência e legislação no intuito de esclarecer o tema.

Posteriormente, examinar-se-á como o assédio moral afeta diretamente os direitos da personalidade além de ser prática inconstitucional. Será feita também uma análise do fenômeno no contexto mundial. Logo após, estudar-se-ão as consequências causadas pelo psicoterror para a vítima, para o empregador e para o Estado, de maneira geral. Adiante, o exame da questão da legislação no estrangeiro e no Brasil. Mais à frente, abordar-se-ão as melhores formas de prevenir e amenizar o problema.

ASSÉDIO MORAL

Embora o assédio moral seja tão antigo quanto o próprio trabalho, só recentemente que estudiosos passaram a se preocupar com a questão, visto que esse fenômeno não pode mais ser encarado com descrédito, principalmente pelas repercussões que causa ou pode vir a causar na atual conjuntura.

Nas palavras de GUEDES, Márcia Novaes, 2005, p. 25, “O terror psicológico é o projeto de destruição individualizada da pessoa no ambiente de trabalho, que guarda estreita proximidade com o genocídio enquanto processo destinado a descartar seres humanos”.

Na definição de FERREIRA, Hádassa Dolores Bonilha, 2004, p.20:

“Assédio moral é um processo composto por atraques repetitivos que se prolongam no tempo, permeado por artifícios psicológicos que atingem a dignidade do trabalhador, consistindo em humilhações verbais, psicológicas, públicas, tais como o isolamento, a não-comunicação ou a comunicação hostil, o que acarreta sofrimento ao trabalhador, refletindo-se na perda da sua saúde física e psicológica”.

Já para LEITE, José Roberto Dias, 2006, p. 15, o assédio moral é o resultado da ação de uma chefia, que no uso de suas prerrogativas, literalmente, tortura o subordinado, seja no campo de trabalho privado ou público.

Assim, conforme se verifica nas diversas definições, não há um conceito comum entre os apreciadores do tema, no entanto, seguem certa linha de raciocínio com o mesmo norte no que se refere ao objeto atingido pelo assédio moral: a integridade (física e/ou psíquica) humana. Dessa maneira, deduz-se que o assédio moral é um conjunto de ilegalidades e abusos que visam atingir a dignidade da pessoa causando-lhe prejuízos psicofísicos. No mínimo duas pessoas participam do processo: o agressor e a vítima, sendo que aquele sempre age de maneira consciente e destinada a inibir esse.

Atos e Comportamentos que Podem Desencadear o Assédio Moral

Fato importante que deve ser destacado é que não é qualquer ato que pode ser considerado como assédio moral, da mesma maneira que não há um número taxativo de hipóteses desencadeadoras desse processo. Segundo HIRIGOYEN, Marie-France, 2005, p. 30, para que o assédio moral exista é necessário que aconteçam dois fenômenos: o abuso de poder e a manipulação perversa. Segundo a autora:

“(...) assédio moral é sempre precedido da dominação psicológica do agressor e da submissão forçada da vítima. O outro é ridicularizado, a priori, por ser o que é, por gênero sexual, alguma deficiência ou por sua posição hierárquica. No assédio moral há uma relação de dominante-dominado, na qual o agressor submete a vítima a perder a identidade e quando isso ocorre numa relação de subordinação, transforma-se em abuso de poder hierárquico”.

Assim, é possível dizer que o poder exercido dentro de ditames legais e legítimos não pode ser encarado como assédio moral, assim como se não for vislumbrada a vontade de assediar do agressor, o ato não deve ser enfrentado como processo vitimizador, isto é, o assediador tem de manifestar seu comportamento arbitrário, ilegal e ilegítimo com a finalidade de atingir a dignidade da vítima.

No tocante à destruição da auto-estima, segue a posição de GUEDES, Márcia Novaes, 2005, p. 30:

O objetivo é atingir o âmago da intimidade da vítima, levá-la a desacreditar de si mesma. Tudo pode começar com brincadeiras de mau gosto, pequenas insinuações malévolas, evoluindo para a difusão de um mal-entendido. Fala-se mal da vítima pelas costas. Quando esta aparece em meio ao grupo, cai em silêncio fúnebre. Para derrubar a imagem social, a vítima é ridicularizada, humilhada e coberta de sarcasmos, até que perca toda autoconfiança. Coloca-se-lhe um apelido ridículo, caçoa-se de uma limitação física, do seu modo de andar, de falar, de vestir-se. São atacadas suas opiniões, a vida privada e a maneira de viver

Com isto, temos que as hipóteses mais habituais de atos de assédio moral, consoante alguns doutrinadores, são: atribuir à vítima problemas psicológicos; zombar de suas deficiências ou aspectos físicos (imitando-a,...); injuriá-la com termos obscenos ou degradantes; falar com a vítima aos gritos; fragilizar, ridicularizar, inferiorizar, humilhar publicamente a vítima; divulgar boatos sobre sua moral; desqualificar e destruir a auto-estima da vítima; entre outras.

 Características do Agressor

Em síntese, pode-se dizer que o assédio moral começa frequentemente pela recusa de uma diferença, sendo que o assediador é incapaz de conviver com essa diferença nascendo, assim, um agressor em potencial.

Conforme SILVA, Jorge Luiz de Oliveira da, 2005, p. 15:

 “O assediador é essencialmente um indivíduo destituído de ética, agindo por impulsos negativos e sem nenhuma nobreza de caráter, revelando seu lado perverso ao verificar sua vítima sucumbir aos poucos diante do desenvolvimento de processo de assédio moral. Uma vez definido que o assediador é um ser humano infeliz, que utiliza o assédio moral para suprir carências da alma, provocadas por experiências traumáticas, preconceitos ou ambições desmedidas, podemos concluir ainda que o assediador é fraco, pois não utilizou as experiências negativas em sua vida como instrumento solidificador de seu caráter, mas sim se deixou corromper e dominar por suas fraquezas e pela prepotência”.

Conclui-se, assim, que as principais características do assediador é que é um ser humano inapto a superar ou, ao menos, suportar as diversidades existentes no convívio social e, freqüentemente, é alguém com certo distúrbio de personalidade que busca descarregar sua negatividade nas pessoas que, de alguma maneira, tornaram-se incômodas em seu meio.

Características da Vítima

Não há uma classificação ideal daqueles que podem vir a serem vítimas de assédio moral. No entanto, existem estudos que mostram que tipos de pessoas são mais suscetíveis ao terror psicológico, como ensina GUEDES, Márcia Novaes, 2005, p. 45:

A vítima do terror psicológico no trabalho não é o empregado desidioso, negligente. Ao contrário, os pesquisadores encontraram como vítimas justamente os empregados com um senso de responsabilidade quase patológico; são pessoas genuínas, de boa-fé, a ponto de serem consideradas ingênuas no sentido de que acreditam nos outros e naquilo que fazem; geralmente são pessoas bem-educadas e possuidoras de valiosas qualidades profissionais e morais.

Com isto, vemos que o assediado é escolhido por despertar no agressor o medo, a inveja, a insegurança, enfim, diferenças que o assediador não suporta nem supera, podendo acontecer com qualquer pessoa pelo simples fato da vítima tornar-se alguém incômodo para o agressor.

Consequências do assédio moral


          Nos dizeres de SILVA, Jorge Luiz de Oliveira da, 2005, p. 30, “o assédio moral é um câncer social, que se alastra por todas as direções, ocasionando perdas substanciais que transcendem à pessoa da vítima, gerando danos significativos à saúde financeira da empresa e do Estado”. O autor considera também que “o assédio moral no ambiente de trabalho é um processo altamente vitimizador, cujas consequências ultrapassam as demarcações éticas aceitáveis em uma sociedade civilizada, onde o trabalho é considerado um dos direitos sagrados atribuídos ao ser humano”. O assédio moral é uma violência devastadora e que atinge não só a vítima, como também o Estado, as empresas e toda a sociedade.

Para melhor esclarecer o reportado, FERREIRA, José Carlos, 2006, p. 45, assim apregoa:

“A violência no local de trabalho pode ser física, moral ou psicológica e, dependendo da gravidade, intensidade e frequência, de efeitos traumatizantes e dramáticos para os trabalhadores e suas famílias, as empresas onde prestam serviços e para a sociedade como um todo”.

Cabe ressaltar que o autor entende como local de trabalho qualquer espaço físico (a própria casa, as ruas e becos patrulhados por policiais, os quartéis, os veículos conduzidos por taxistas, as salas de aula, os presídios, os hospitais,...).

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O ASSÉDIO MORAL E AS FORÇAS ARMADAS

A Constituição, em seu artigo 142, caput, preconiza, que as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

Logo, estão na Carta Suprema os princípios norteadores da vida militar, ou seja, a hierarquia e a disciplina.

A Lei Federal n° 6.880, de 09 de dezembro de 1980, publicada no Diário Oficial da União de 11 de dezembro de 1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, em seu artigo 14 afirma que “A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas”. Tais preceitos são conceituados nos parágrafos desse mesmo artigo, adiante:

§ 1° A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. [...]. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.

§ 2° Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.

Nesse sentido, SILVA, José Afonso da, 2002, p. 50, esclarece que não se confundem hierarquia e disciplina, mas são termos correlatos, no entendimento de que a disciplina pressupõe relação hierárquica, juridicamente falando, a quem tem poder hierárquico.

O Estatuto dos Militares, no seu artigo 14, parágrafo 3°, assevera que “A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformado.

Segundo LOBÃO, Célio, 2004, p. 10, a disciplina militar, sustentáculo maior da hierarquia, constitui um sistema rígido de relacionamento entre os integrantes da organização castrense, com a finalidade precípua de zelar pela manutenção deste segmento hierarquizado da estrutura social do país.

Ressalve-se que a camaradagem está prevista no artigo 3° do Regulamento Disciplinar do Exército-RDE, aprovado pelo Decreto n° 4.346, de 26 de agosto de 2002, publicado no Diário Oficial da União de 27 de agosto de 2002, assim dispondo: “A camaradagem é indispensável à formação e ao convívio da família militar, contribuindo para as melhores relações sociais entre os militares”.

Logo, segundo o autor, o companheirismo seria mais um fundamento da vida militar, ou seja, as bases que regem o militarismo seriam a hierarquia, a disciplina e o companheirismo.

No entanto, como se averiguará, essa indagação não é tão verdadeira na prática e, muitas vezes, sequer há relação de companheirismo, principalmente dos superiores junto aos seus subordinados.

Limites na disciplina militar

Os militares têm por finalidade manter a ordem e a paz social e essas começam, por primeiro, dentro da própria caserna. Quando ocorre alguma anormalidade na vida militar é dever dos próprios integrantes de cada Força, geralmente os superiores hierárquicos, tomarem as medidas adequadas e cabíveis para cada caso. Todavia, existem limites que devem ser respeitados no tocante aos feitos impostos aos subordinados, e quando esses infringem alguma regra, a autoridade competente deve julgá-los com isenção de ânimo, justiça, sem condescendência nem rigor excessivo, conforme preconiza o artigo 35 do Regulamento Disciplinar da Aeronáutica – RDAer (Decreto n° 76.322, de 22 de setembro de 1975).

Assim como mostra ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues, 2005, p. 21, a hierarquia e a disciplina devem ser preservadas por serem princípios essenciais das Corporações Militares, mas os direitos e garantias fundamentais previstos no art. 5° da CF são normas de aplicação imediata (art. 5°, § 1°, da CF), que devem ser asseguradas a todos os cidadãos (civis ou militares, brasileiros ou estrangeiros), sem qualquer distinção, na busca do fortalecimento do Estado de Direito.

Destarte, a sanção administrativa militar é prevista e deve ser imposta àqueles que não se adequam aos preceitos ético-militares cabendo à autoridade observar os limites situados no direito, sob pena de cometer arbítrio. Contudo, antes de punir deve-se priorizar pelo pundonor militar, entendido como “o dever de o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu desempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido” (artigo 6°, II, do Regulamento Disciplinar do Exército -RDE), pois “A autoridade impõe-se pela ascendência, pelo tratamento enérgico, porém justo, com o respeito devido à pessoa humana [...]”. Ademais, “A disciplina será tanto mais eficiente quanto mais ela expressar valores e afeto”.

Assédio moral nas Forças Armadas

De maneira já bem salientada em estudo preliminar, deve-se atentar que não é todo comportamento e atitude que podem ser encarados como assédio moral. Há de se ter o cuidado necessário em cada caso, assim como expõe SILVA, Jorge Luiz de Oliveira da, 2005, p. 43, [...] os militares, categoria peculiar de trabalhadores públicos, não estão imunes à submissão a um processo de assédio moral [...].

 Ao analisar o fenômeno do assédio moral aplicado aos militares, não há dúvida acerca dos cuidados extremos que se deve adotar, tendo em vista a estrutura personalíssima da carreira militar, fundamentada nos pilares constitucionais da hierarquia e disciplina.

Outro detalhe que também merece atenção é no concernente aos tipos de assédio moral. Como já analisado, existem tipos de assédio moral (ascendente, horizontal, misto e vertical descendente), embora essa não seja uma classificação universal e alguns doutrinadores chegam a considerar que só há assédio moral numa relação de subordinação tendo de existir, necessariamente, relação de poder entre os agentes envolvidos no processo. Este trabalho irá se ater apenas ao assédio moral vertical descendente, até mesmo porque no militarismo dificilmente verificar-se-á outra forma do fenômeno. E na vida militar certamente o exemplo de assediador mais encontrado será o do tirano, figura de agressor bem explicado por GUEDES, Márcia Novaes, 2005, p. 55:

“É certamente o pior tipo de agressor moral. Pratica o assédio moral apenas pelo gosto de rebaixar, humilhar e submeter a vítima. Seus métodos são frequentemente muito cruéis. É um ditador que sente prazer em escravizar os outros. Geralmente um tirano sofre fraqueza, mantém distância dos outros pelo autoritarismo. Acusa os outros e impede que estes possam demonstrar os erros dele, agressor, que ele procura tão bem ocultar”.

O assédio moral, assim, é uma das consequências, provavelmente a mais evidente, dos excessos que o empregador comumente pratica. Aliás, pode-se asseverar mais: não se trata unicamente de excesso e, sim, de desvio de poder disciplinar. Constitui, incontestavelmente, abuso de poder.

Crimes militares que podem caracterizar-se como processo de assédio moral
 

No âmbito federal, conforme já demonstrado, não há punição para aqueles que compõem o polo ativo do assédio moral. Logo, os crimes que serão aqui mostrados subsistem por si só. Mas, dependendo das maneiras empregadas pelo agressor, pode-se afirmar se houve assédio moral, desde que as características do mesmo estejam presentes, como expor o militar a situações humilhantes, geralmente repetidas e prolongadas, de modo a causar-lhe sofrimento físico e emocional atingindo diretamente sua honra pessoal (“sentimento de dignidade própria, como o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o militar, perante seus superiores, pares e subordinados” – inciso I do artigo 6° do Regulamento Disciplinar do Exército -RDE). Importante também reforçar que o assediado é escolhido por despertar no agressor diferenças que esse não suporta nem supera, podendo acontecer com qualquer militar pelo simples fato de tornar-se alguém incômodo para o agressor.

Conforme assevera, LOBÃO, Célio, 2004, p. 30, caracteriza como “Crime de abuso de poder, denominado pelo Código de excesso ou abuso de autoridade”. Aponta ainda:

“O excesso objetiva-se com a punição revestida de rigor não autorizado nas normas regulamentares”. E continua: Na primeira modalidade, o ato do superior reveste-se de rigor não autorizado nas normas regulamentares, como deixar o subordinado preso sem água ou alimento, sem agasalho em regiões frias, colocá-lo em prisão sem condições de higiene ou em local inadequado para recolhimento de preso disciplinar, enfim, qualquer outra forma de punir com excesso, com crueldade.

Na segunda, a punição efetiva-se por meio de ato, da palavra escrita ou oral, de manifestação corpórea, gesto, etc., ofensivo ao subordinado, atingindo-o em sua honra comum, [...], e em sua honra especial ou profissional, [...], no caso presente, a de militar”.

Segundo LOUREIRO NETO, José da Silva, 2000, P. 70, o conceito de punir alcança também o de castigo, não previsto nos regulamentos disciplinares, visto que a disciplina exige para seu fundamento moral o respeito recíproco à dignidade dos militares, mesmo quanto ao trato dos inferiores.

O artigo 175, do Código Penal Militar, que trata da “Violência contra Inferior”, assim apregoa:

Art. 175. Praticar violência contra inferior:

Pena – Detenção, de três meses a um ano.

Parágrafo único. Se da violência resulta lesão corporal ou morte é também aplicada à pena do crime contra a pessoa, atendendo-se, quando for o caso, ao disposto no art. 159.

O artigo 467 do Código de Processo Penal Militar - CPPM também traz outras hipóteses de ilegalidade e abuso de poder (cerceamento de liberdade sem as formalidades legais; coação ou constrangimento sem justa causa;...).

Na legislação extravagante são encontrados outros crimes que podem se enquadrar no processo de assédio moral militar, como alguns tipos dispostos na Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965, a qual prevê casos de abuso de autoridade: atentar contra a liberdade de locomoção, a incolumidade física do indivíduo, a honra, submeter pessoa a vexame ou constrangimento não autorizado em lei, dentre outros. E ainda a Lei n° 9.455, de 07 de abril de 1997, que regula o crime de tortura.

Maneiras de Prevenção Contra os Abusos

A Súmula 346 do Supremo Tribunal Federal - STF, aprovada em Sessão Plenária de 13 de dezembro de 1963, apregoa que “A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”. Nessa mesma linha, a Súmula 473, aprovada em Sessão Plenária de 03 de dezembro de 1969, do Excelso Tribunal manifesta:

Destarte, a Administração Militar possui tal discricionariedade e deveria, sempre que fossem verificadas injustiças, retificar suas ações. Entretanto essa correção é algo pouco provável no militarismo, devido ser um ambiente toldador.

O Regulamento Disciplinar do Exército - RDE faz menção apenas ao pedido de reconsideração de ato e ao recurso disciplinar (artigo 52) nos casos de algum subordinado sentir-se ofendido ou injustiçado por ato de superior, sendo esse último recurso utilizado nas hipóteses de indeferimento do primeiro.

O Regulamento Disciplinar para a Marinha (Decreto n° 88.545, de 26 de julho de 1983), em seu artigo 45, dispõe que “Àquele a quem for imposta pena disciplinar será facultado solicitar reconsideração da punição à autoridade que a aplicou, devendo esta apreciar e decidir sobre a mesma dentro de oito dias úteis, contados do recebimento do pedido”. No entanto, tal recurso só pode ser interposto após o militar ter cumprido a punição imposta [!], conforme reza o § 1° do artigo 46 do citado diploma. Vale lembrar que o Regulamento Disciplinar para a Marinha é anterior à Excelsa Carta de 1988.

Já o Regulamento Disciplinar da Aeronáutica - RDAer é o único que faz expressa alusão à Representação, assim indicando em seu artigo 62: “O militar poderá representar contra ato de superior que considere injusto ou infringente das leis ou regulamentos militares [...]”. Nesse caso, o ofendido, antes de representar contra superior, deve observar alguns procedimentos previstos no Regulamento Disciplinar da Aeronáutica - RDAer: sempre que possível, preceder sua representação de pedido de reconsideração do ato que lhe deu motivo; informar formalmente e por escrito o superior que irá ser representado; entre outros.
A Lei n° 4.898, de 09 de dezembro de 1965, que regula o direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal nos casos de abuso de autoridade, também pode ser utilizada como forma de prevenção.

O servidor militar pode utilizar-se, ainda, dos remédios constitucionais do Habeas Corpus e do Mandado de Segurança.

Responsabilidade civil do Estado proveniente do assédio moral nas Forças Armadas

De acordo com CARVALHO FILHO, José dos Santos, 2003, p. 75, para configurar a responsabilidade civil do Estado exige-se o acontecimento de três pressupostos:

1° - a ocorrência do fato administrativo, assim considerando como qualquer forma de conduta, comissiva ou omissiva, legítima ou ilegítima, singular ou coletiva, atribuída ao Poder Público. Ainda que o agente estatal atue fora de suas funções, mas a pretexto de exercê-las, o fato é tido como administrativo, no mínimo pela má escolha do agente (culpa in eligendo) ou pela má fiscalização de sua conduta (culpa in vigilando).

2° - o dano. Não há falar em responsabilidade civil sem que a conduta haja provocado um dano.

3° - o nexo causal (ou relação de causalidade) entre o fato administrativo e o dano. Significa dizer que ao lesado cabe apenas demonstrar que o prejuízo sofrido se originou da conduta estatal, sem qualquer consideração sobre o dolo ou culpa.

O artigo 37, da Constituição brasileira, no seu § 6º, assim preconiza:

Art. 37. ...

§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Assim, percebe-se que o constituinte brasileiro adotou a Teoria do Risco Administrativo, a qual responsabiliza o Estado objetivamente pelos danos ou prejuízos que causa a outrem, devendo reparar esses danos, indenizando-os, independentemente de ter agido com dolo ou culpa.

Nas Forças Armadas, o assédio moral tem como sujeito ativo servidor público federal militar. Neste caso, o estado pode ser responsabilizado pelo danos, sejam de ordem material, sejam de ordem moral, ou ambos, pois possui responsabilidade objetiva conferida por lei.

Assim, sendo comprovados o fato e o dano, cabe ao Estado indenizar a vítima, podendo, todavia, processar o agressor, visando à restituição dos prejuízos que sofrer.

Competência para examinar o assédio moral nas Forças Armadas

De acordo com o artigo 124 da CF/88, compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Portanto, a competência para examinar o assédio moral consumado nas Forças Armadas é da Justiça Militar.

Ademais, compete à Justiça Federal apreciar os atos praticados pela Administração Militar que envolva interesses dos servidores militares federais, já que nesse caso a União atuará no polo passivo da lide.

Segundo infere-se da interpretação do inciso I do artigo 109 da Constituição Federal. Sendo a União parte ré, o autor tem a faculdade de ajuizar sua demanda na seção judiciária onde tiver seu domicílio, ou onde tiver ocorrido o fato que deu origem à causa, ou ainda, no Distrito Federal (parágrafo 2° do artigo 109 da Carta Magna).

Porém, ainda não há sanção a nível federal para aqueles que vierem a compor o polo ativo no assédio moral, apesar de existirem projetos de lei nesse sentido. Assim, apesar do assédio moral castrense ser possível o agressor será indiciado pelos delitos previstos na legislação militar e não pelo assédio moral em si, podendo os crimes militares chegarem a ser considerados como parte de um todo no processo de assédio moral.

CONCLUSÃO

O princípio da dignidade da pessoa humana é o mais importante entre os fundamentais arrolados pela Carta Suprema. Conseqüentemente os direitos da personalidade, sendo o reflexo da dignidade humana, encontram-se entre os bens jurídicos mais valiosos protegidos pelo direito.

O assédio moral atinge diretamente tais direitos pessoalíssimo, isto é, a dignidade humana, reduzindo o agredido a uma condição vil, tanto que há vítimas que chegam a consumar o suicídio devido às pressões sofridas.

Cabe ao Estado, principalmente, adotar as providências para inibir esse câncer social o mais breve possível, não devendo mais tratar o assédio moral com descrédito, pois não é normal e deve ser combatido.

Os militares das Forças Armadas estão submetidos a um sistema altamente hierarquizado e onde deve prevalecer a disciplina. Essa, por sua vez, é exercida por meio de regulamentos e costumes castrenses que condicionam a disciplina consciente em cada militar. Todavia, existe um limite legal e legítimo que deve ser respeitado para que não haja extrapolação do superior hierárquico no momento de exercer seu poder sobre inferiores, seja por meio de ordens proferidas ou por punições impostas.

Diante das considerações acima, a União tem de ser responsabilizada por esses absurdos surreais cometidos, quer pela má escolha de seus agentes (culpa in eligendo), quer pela má fiscalização de suas condutas (culpa in vigilando).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, José César de. Código de Processo Penal Militar Anotado. 2 ed. Editora Juruá, 2010.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

DANTAS, Ivo. Constituição Federal Anotada. 2 ed. Renovar. 2013.

DECRETO nº 88.545 de 26 de julho de 1983.

DECRETO nº 4.346 de 26 de agosto de 2002.

ESTATUTO DOS MILITARES. Lei nº 6.880 de 09 de dezembro de 1980.

FERREIRA, Hádassa Dolores Bonilha. Assédio moral nas relações de trabalho. Campinas: Russell, 2004.

FERREIRA, José Carlos. Violência no local de trabalho: assédio moral. Consulex, Brasília: Junho/Junho, v. 10, n. 227, 2006.

GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. 2.ed. São Paulo: LTr,  2005.

HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Tradução de: Maria Helena Kühner. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

LEITE, José Roberto Dias. Assédio moral. Justilex, Brasília: Maio, v. 5, n. 53, 2006.

LOBÃO, Célio. Direito Penal militar. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.

LOUREIRO NETO, José da Silva. Direito Penal militar. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito Administrativo militar: teoria e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

ROSSETTO, Enio Luiz. Código Penal Miliar Comentado. 17 ed. RT, 2012.

SILVA, Jorge Luiz de Oliveira da. Assédio moral no ambiente de trabalho. Rio de Janeiro:EJ, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.


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Sobre os autores
Yuri da Silva Guimarães

Advogado, Contador, Consultor Imobiliário, Avaliador de Imóveis e Perito e Administrador Judicial, atuante nas Comarcas da Baixada Santista, Interior e São Paulo.

Sonia de Oliveira

Mestranda em Direito, especialista em Direito Criminal, Graduada em Direito Advogada e Orientadora Acadêmica do Grupo Educacional Uninter.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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