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Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica

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01/04/2003 às 00:00
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Introdução

            O atual estágio de desenvolvimento humano enfrenta uma inversão de valores sociais e morais. O errado é tido como certo e o certo como errado, a ponto de se ter como forma pejorativa de tratamento referência a determinada pessoa como "muito certinha", "muito correta", "não tem jogo de cintura". Isto acarreta na perpetração de fraudes as mais variadas, sempre com o intuito do locupletamento pessoal em detrimento de outrem. Os modelos societários de organização empresarial poderão ser utilizados para o alcance de tais objetivos espúrios, quando será necessário o incremento de instrumentos para coibir comportamentos que lesionem direitos de credores confiantes na teoria da aparência. A desconsideração da personalidade jurídica se prestará a tanto, funcionando, ao mesmo tempo, repressiva e preventivamente, para que a paz social seja preservada. Entretanto, não se pretende tomar a exceção pela regra, tampouco a banalização do instituto; é necessária a sua aplicação em larga escala, em virtude do quadro social contemporâneo, mas sempre de forma precisa e fundamentada, observados os requisitos ensejadores.


1. A disregard doctrine

            1.1. Origem

            A fraude não é um fenômeno novo no cenário jurídico-social. Sempre houve a tentativa de se fugir à responsabilidade patrimonial mediante inúmeros artifícios, alcançados pelo instituto da fraude contra credores, disposto no artigo 106 e seguintes do Código Civil, repisado no Novo Código Civil (arts. 158 e seguintes), como demonstra YUSSEF SAID CAHALI em monografia sobre o tema (1).

            A organização mercantil sob a forma de sociedade, para algumas mentes, acaba por incentivar a prática de atos escusos, se prestando a sociedade como ser imaterial servidor de abrigo ao fraudador. Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram mecanismos para descortinar a sociedade, retirando o véu protetor, viabilizando o alcance daqueles que se camuflam.

            A decisão judicial precursora da teoria da desconsideração da personalidade jurídica remonta ao ano de 1809, no caso Bank of United States v. Deveaux (2), quando o juiz Marshall manteve a jurisdição das cortes federais sobre as corporations - a Constituição Americana (art. 3°, seção 2ª) reserva a tais órgãos judiciais as lides entre cidadãos de diferentes Estados. Ao fixar a competência acabou por desconsiderar a personalidade jurídica, sob o fundamento de que não se tratava de sociedade, mas sim de sócios contendores.

            O caso que mais teve repercussão mundial foi o ocorrido na Inglaterra (Salomon v. Salomon & Co.) que, ao contrário do indigitado, não foi o pioneiro, datando, portanto, de 1897. De toda sorte, tal julgado delineou o instituto da desconsideração. Aaron Salomon com mais 6 membros de sua família criou uma company, em que cada sócio era detentor de uma ação, reservando 20.000 ações a si, integralizando-as com o seu estabelecimento comercial, sendo certo que Aaron Salomon já exercia a mercancia, sob a forma de firma individual. Os credores oriundos de negócios realizados pelo comerciante individual Aaron Salomon viram a garantia patrimonial restar abalada em decorrência do esvaziamento de seu patrimônio em prol da company. Com esse quadro, o juízo de primeiro grau declarou a fraude com o alcance dos bens do sócio Aaron Salomon. Ressalte-se, entretanto, que a House of Lords, reconhecendo a diferenciação patrimonial entre a companhia e os sócios, não identificando nenhum vício na sua constituição, reformou a decisão exarada. Como aponta Piero Verrucoli (3), a teoria da desconsideração teve sua difusão contida em virtude do efeito vinculante das decisões da Casa dos Lordes.

            Em razão do berço da teoria (EUA e Inglaterra) alguns termos em língua estrangeira são de comum utilização: disregard of legal entity; piercing the corporate veil e lifting the corporate veil.

            O desenvolvimento da teoria ganhou força no direito norte-americano, chegando ao direito brasileiro pela fala de Rubens Requião (4), em palestra proferida na Universidade Federal do Paraná, baseando o raciocínio na fraude e no abuso de direito.

            O direito positivo reconheceu a disregard doctrine na regra inserta no artigo 28 da Lei 8.078/90; no artigo 18 da Lei 8.884/94; no artigo 4° da Lei 9.605/98 e, mais recentemente, no artigo 50 do Novo Código Civil.

            1.2. Pressuposto

            A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem como pressuposto a consideração da personalidade jurídica, com as respectivas conseqüências advindas da separação do sócio e sociedade, v.g., diferenciação de nome, nacionalidade, domicílio e, principalmente, patrimônio.

            Os dispositivos do Código Comercial (1850) referentes às sociedades davam margem à dúvida sobre a consideração da personalidade jurídica, ao asseverar que dentre os sócios, ao menos um deveria ser comerciante, nos termos dos artigos 311; 315 e 317. Em 1916, o Código Civil dirimiu qualquer controvérsia ao indicar o nascimento da personalidade jurídica (artigo 18), bem como ao asseverar que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros (artigo 20). O mesmo caminho foi percorrido pelo Novo Código Civil, nos artigos 45 (5) e 985 (6).

            As sociedades irregulares ou de fato terão como conseqüência restrições, sendo a mais grave a ausência de limitação da responsabilidade dos sócios (artigo 301, in fine), como acentua José Edwaldo Tavares Borba, exemplificando: "Constitui, portanto, um grande risco participar de sociedade irregular, pois qualquer que seja a sua espécie, ainda que a da sociedade por quotas, a responsabilidade dos sócios será ilimitada. A própria sociedade anônima não escaparia dessa ilimitação de responsabilidade, excetuados, naturalmente, nas companhias abertas, os acionistas de mercado, posto que inteiramente desvinculados da affectio societatis e, por via de conseqüência, do núcleo em que se manifestam as relações sociais." (7).

            Nesse sentido, não terá cabimento a utilização do mecanismo da desconsideração da personalidade jurídica para as sociedades irregulares ou de fato, seja porque, na primeira, a irregularidade já tem por efeito o alcance indiscriminado dos sócios ou porque, na segunda, não houve consideração da personalidade jurídica.

            1.3. Requisitos

            1.3.1. Teoria Menor

            A teoria menor da desconsideração dispensa raciocínio mais acurado para a incidência do instituto, bastando que a diferenciação patrimonial da sociedade e sócio se afigure como obstáculo à satisfação de credores. Todas as vezes que a pessoa jurídica não tiver bens suficientes em seu patrimônio para a satisfação do crédito ou até mesmo em razão de sua iliquidez, os sócios seriam responsabilizados. Em alguns julgados verifica-se até mesmo o alcance de outra pessoa jurídica não-sócia, só pelo fato de ser detentora da mesma marca; v.g., a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por maioria, que o defeito de uma filmadora da marca Panasonic adquirida no exterior deveria ser suportado pela sociedade nacional somente pelo fato de deter o direito ao uso da marca, como se afere do seguinte trecho: "Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos" (8).

            A aplicação da disregard doctrine não pode se resumir a aspecto tão superficial, sob pena de abalo da segurança jurídica necessária ao bom convívio social. As formas de organização societária se apresentam sob diversas espécies para que o empreendedor possa amoldá-las às suas necessidades. Como hipótese para reflexão, vejamos que não se pode conceber que um acionista de uma grande companhia corra o risco de ver a desconsideração decretada alcançando-o, violando toda a evolução impressa pela recente reforma da lei das sociedades anônimas (Lei 10.303/2001), no sentido da captação de recursos populares (poupança popular). Da mesma forma, a insolvência ou falência, pura e simples, não pode se afigurar como requisito para a desconsideração, apesar de registrada no artigo 28 da Lei 8.078/90 (9), devendo estar atrelada ao fato da má administração, senão a insegurança seria tão intensa que um fator econômico externo, como a alta desenfreada do dólar, poderia levar à quebra uma sociedade que sempre cumpriu com as suas obrigações, sem que haja qualquer ingerência sobre a causa, surpreendendo os sócios honestos que, via de conseqüência, restariam arredios à realização de novos investimentos.

            Com efeito, a estabilidade dos investidores (rectius: sócios) é de curial importância para o fortalecimento da economia do país, como observa Luiz Leonardo Cantidiano ao citar parecer do Deputado Antonio Kandir (10), oferecido à Comissão de Finanças e Tributação, quando da tramitação do projeto de lei que culminou na Lei 10.303/2001: "Isto posto, apresenta-se o ensejo para aprimorar as instituições do mercado de capitais, cuja democratização conduzirá a um maior dinamismo do capitalismo no país, vez que trata-se de um mercado através do qual o empresário no Brasil poderá obter capitais a um preço mais acessível, facilitando o processo de mobilização da poupança pública em atividade produtiva. Com o incremento desse mercado, poderemos nutrir sólidas expectativas no desenvolvimento das empresas que atuam no pais, consolidando sua competitividade no cenário interno e externo, que se traduzirá em uma maior oferta de empregos e melhor distribuição de rendas e riquezas."

            O princípio da autonomia patrimonial necessita ser relevado para que se alcance os objetivos de crescimento de um país classificado como "em desenvolvimento", nos moldes da nossa nação.

            1.3.2. Teoria Maior

            A teoria maior se fundamenta em maior apuro e precisão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, baseando-se em requisitos sólidos identificadores da fraude - a utilização da couraça protetora para camuflar atos eivados de fraude pelo sócio com a utilização da sociedade.

            A regra é a consideração da personalidade jurídica, prevalecendo, sobretudo, a diferenciação patrimonial da sociedade e seus sócios, tendo sede, apenas excepcionalmente, o mecanismo pelo qual se ignora o véu societário, diante de situações específicas, como acentua Rolf Serick, em monografia precursora sobre o assunto: "a jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros." (11).

            Rubens Requião trilhou o mesmo raciocínio ao delinear o instituto: "Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos." (12).

            Com efeito, a insuficiência patrimonial, a falência, insolvência ou inadimplência não se apresentam como causas para a desconsideração, como ressaltado no seguinte aresto: "Agravo de instrumento. Contrato firmado com pessoa jurídica. Sociedade por cotas de responsabilidade limitada - para reforma de imóvel, firmado, apenas, pelo representante legal da construtora. Inexistindo, qualquer situação, dentre as previstas no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, não há razão legal para a "desconsideração da personalidade jurídica" da sociedade ré, a autorizar o chamamento dos sócios, cuja responsabilidade - até para fins tributários - está, em princípio, limitada à cota social subscrita." (13).

            A positivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como asseverado, se deu com a Lei 8.078/90, cuja redação foi copiada pela Lei 8.884/94, possibilitando equívocos, pois há alusão expressa à falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, provocada por má administração, dando azo à interpretação literal da incidência. Todavia, os idealizadores das normas que tutelam as relações de consumo, em obra coletiva, explicitam a adoção da regra: "De todo o exposto, o que se verifica é a tendência cada vez mais freqüente, em nosso Direito, de desfazer o mito da intangibilidade dessa ficção conhecida como pessoa jurídica – exacerbada, ultimamente pela personificação das sociedades unipessoais – sempre que for usada para acobertar a fraude à lei ou o abuso das formas jurídicas." (14) Assim, necessária se faz a análise do caso específico com fulcro na existência de má administração, ressaltando que inaptidão para o negócio ou eventual insucesso não a caracterizam, necessitando o intuito deliberado de mal administrar, acabando por recair no abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social, consoante disposto na primeira parte do dispositivo (15).

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            A regra inserta no §5° do art. 28 da Lei 8.078/90 (16) merece comentário, sob pena de cair por terra todo o raciocínio desenvolvido sobre a teoria maior, à medida que parece concretizar a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica. Zelmo Denari aduz que a eficácia do texto legal foi comprometida em razão do veto presidencial ao §1° (17) do indigitado artigo: "Dando fecho aos comentários desta seção, resta comentar que o reconhecimento da valia e eficácia normativa do §5° do art. 28 está condicionado à interpretação que se der às razões de veto opostas pelo presidente da República ao seu §1°. Remetendo-nos aos argumentos de fundo aduzidos no subtítulo "Legitimidade Passiva" (cf. item 4 retro), e admitindo que houve um "equívoco remissivo de redação", pois as razões de veto foram direcionadas ao §5° do art. 28, não se pode deixar de reconhecer o comprometimento da eficácia deste parágrafo, no plano das relações de consumo" (18). Mesmo que não se prevaleçam tais argumentos, outro enfoque afigura-se conclusivo, ao se encarar a regra de que o parágrafo está ligado ao caput, o qual não pode ser modificado pelo apêndice.

            O Novo Código Civil adotará a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em seu artigo 50 (19), cuja proposição original foi inspirada por Rubens Requião (20). Apesar da novel legislação fazer alusão ao abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, não haverá modificação no cenário contemporâneo, sendo o abuso da personalidade jurídica o cerne do instituto, restando clarificado que o desvio de finalidade e a confusão patrimonial são exemplificativos (21), pois o fato de um pai utilizar todos os bens de seu filho e este último também agir da mesma forma em relação ao genitor haverá notável confusão patrimonial, mas não fraude, salvo se tiver por fim a escusa da responsabilidade patrimonial.

            1.4. Efeitos

            A aplicação da disregard doctrine terá por conseqüência o alcance daquele que se utilizou indevidamente da diferenciação patrimonial – o sócio, seja pessoa natural ou jurídica. O descortinamento se dará para o caso concreto e de forma momentânea, isto é, retira-se o véu, alcança-se o patrimônio daquele que perpetrou o ato e, novamente, retorna-se o véu à origem para cumprir com seu objetivo de incentivo aos investimentos. Não se pode asseverar que determinada sociedade teve a sua desconsideração chancelada em processo judicial, com decisão trânsita em julgado, estando, portanto, os sócios ao alvedrio de todas as responsabilidades rubricadas, a partir de então, no passivo societário. Em suma, repise-se, a desconsideração é momentânea e para o caso concreto.

            Não há que se falar em despersonalização, mas sim desconsideração. A despersonalização acarreta no fim da personalidade, o que somente adviria com a extinção da sociedade.

            Rubens Requião indica que: "pretende a doutrina penetrar no âmago da sociedade, superando ou desconsiderando a personalidade jurídica, para atingir e vincular a responsabilidade do sócio", arrematando, adiante: "não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torná-la ineficaz para determinados atos." (22).


2. Formas de efetivação

            As formas de efetivação do instituto têm sido definidas pela doutrina e jurisprudência, quando inúmeras questões foram chanceladas pelo crivo jurisdicional.

            2.1. Desconsideração direta

            Nas hipóteses em que a fraude for de plano aferida haverá a intenção preliminar de se pugnar pela desconsideração para alcance daquele que efetivamente praticou o ato lesivo. Situações existem que a utilização do anteparo protetor é flagrante como, v.g., aluguel de um imóvel em nome da sociedade para ser utilizado como residência de um dos sócios; enfrentado no seguinte acórdão: "Responsabilidade. Civil. Locação. Aluguer. Pagamento. No contrato de locação, o pagamento e a obrigação principal do inquilino, se a avenca foi realizada por pessoa jurídica, fraudulentamente, os bens dos sócios respondem pelo pagamento." (23). Muito comum também o empresário (24) individual se travestir sob a forma de sociedade, apresentando-se no quadro societário com 98% das cotas, sendo os outros 2% de propriedade de um homem de palha (25), como assentou o E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: "Com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica visa-se a coibir o uso irregular da forma societária, geradora da personalidade jurídica, para fins contrários ao direito. "A pessoa da sociedade não se confunde com a do sócio, e isso é um principio jurídico básico, porém, não é uma verdade absoluta, e merece ser desconsiderada quando a "sociedade" é apenas um "alter ego" de seu controlador, em verdade comerciante individual"" (26). Como ato corriqueiro também merece registro o abandono do estabelecimento. Não se pode, a todo evidente, "quando os negócios não estão indo bem, fechar as portas e mudar de ramo", deixando os credores desguarnecidos. A fraude se torna clara quando simplesmente são cerradas as portas, deixando credores ao alvedrio da sorte, por ser de responsabilidade do comerciante (individual ou coletivo, rectius: sociedade) indicar no registro competente o local em que pode ser encontrado (27).Tal prática tem recebido severa resposta jurisdicional: "Recusa, por evidente ocultação, do recebimento do ato citatório para início da execução. A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro registra alguns acórdãos em que se tomou em conta a moderna teoria do Superamento da Personalidade Jurídica, também conhecida como "teoria da penetração", hoje largamente divulgada nos Estados Unidos (disregard of legal entity), para reconhecer a responsabilidade dos sócios de sociedade por quotas de responsabilidade limitada pelas obrigações sociais decorrentes de ato ilícito ou fraudulento. Desconsideração da pessoa jurídica; citação na pessoa dos sócios da sociedade limitada." (28). O abandono do estabelecimento também é destinatário de tratamento legal repressivo no sistema falimentar, considerado como ato que dá ensejo ao requerimento de falência, bem como à propositura de ação revocatória (29).

            Ademais, mesmo assente a possibilidade em se alcançar diretamente o patrimônio do sócio, deixando de lado a couraça protetora, não se afigura aconselhável a propositura de demanda apenas em face deste, sendo mais eficaz a inclusão da sociedade no pólo passivo, sob a forma de litisconsórcio passivo (facultativo). Isto porque ambos ofertarão preliminar de ilegitimidade passiva, a qual somente será apreciada quando da análise do mérito (30), pois o acolhimento de uma delas acarretará no pré-julgamento da outra. De forma incisiva o E. Superior Tribunal de Justiça foi além ao dispor que a presença da sociedade no pólo passivo é imprescindível: "A despersonalização da pessoa jurídica é efeito da ação contra ela proposta; o credor não pode, previamente, despersonalizá-la, endereçando a ação contra os sócios" (31).

            2.2. Desconsideração incidental

            A fraude, pela sua estrutura, se apresenta eivada de mácula, portanto, sendo de difícil percepção inicial. Assim, é provável que somente com a propositura da demanda em face da sociedade, no desenrolar do curso cognitivo processual, se tenha acesso ao concilium fraudis, momento em que se pugnará pela desconsideração da personalidade para a retirada do escudo protetor, alcançando aquele que efetivamente é o autor do ato. Nesse contexto surge a discussão sobre a possibilidade de ser decretada a desconsideração no mesmo processo (incidental) ou então se curial se faz a deflagração de demanda autônoma para tanto.

            A jurisprudência tem chancelado o posicionamento de que a existência do contraditório é indispensável, não obstando a possibilidade da materialização incidental. O E. Superior Tribunal de Justiça decidiu que: "A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que só pode ser decretada após o devido processo legal, o que torna a sua ocorrência em sede liminar, mesmo de forma implícita, passível de anulação." (32). Da mesma forma o E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: "Agravo de Instrumento. Medida cautelar de arresto. Grupo societário. Inclusão do sócio no pólo passivo. Impossibilidade. Na medida cautelar, seja preparatória, seja incidental, não se pode admitir a inclusão do sócio do grupo societário supostamente responsável pelas reparações pleiteadas, sem a prévia desconsideração da personalidade jurídica desta, em processo de cognição plena. Hipótese de arresto de percentagem de renda da sócia, em que se impõe o devido processo legal, que não se confunde com a simples medida cautelar." (33).

            A preservação do contraditório não afasta a possibilidade da decretação incidental da desconsideração; o que não é viável é o pedido de disregard, tendo como conseqüência uma perfunctória decisão judicial determinando a constrição de um bem do sócio. A oitiva daquele sobre qual recai a imputação da fraude e posteriormente o seu alcance, sem olvidar do princípio constitucional da fundamentação das decisões judiciais (34), é de indispensável relevo.

            O Novo Código Civil positiva a teoria em tela, em sua parte geral, na regra inserta no art. 50, restando patente a possibilidade de sua implementação incidental, ao indicar que o pedido pode ser formulado pela parte ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo – só há parte ou atuação do Ministério Público como custos legis quando presente o processo.

            No sentido acima esposado, a 3ª Turma do E. Superior Tribunal de Justiça precisou: "A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o Juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros." (35).

            Na mesma linha, no processo falimentar, quando do decreto de quebra ou até mesmo em decisão futura pode ser implementada a desconsideração, como acentuou a 3ª Turma do E. Superior Tribunal de Justiça: "Provada a existência de fraude, é inteiramente aplicável a Teoria da Desconsideração da Pessoa Jurídica a fim de resguardar os interesses dos credores prejudicados." (36). Também assim assertou a 7ª Câmara Cível do E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: "Falência. Sociedade por cotas. Decretação da indisponibilidade dos bens de ex-sócios. Possibilidade aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade se no curso do processo apurar-se se houve prática de atos violadores de administração, assegurando-se ao ex-sócio o direito de ampla defesa" (37).

            2.3. Desconsideração "inversa"

            A utilização de mecanismos para se furtar à responsabilidade, em virtude do avançado grau de degradação moral do ser humano, tem dado azo à utilização da desconsideração da personalidade jurídica para a tutela de interesses legítimos, invertendo o percurso da sua aplicação original. Em vez do sócio se utilizar da sociedade como escudo protetivo, passa a agir ostensivamente, escondendo seus bens na sociedade, ou seja, o sócio não mais se esconde, mas sim a sociedade é por ele ocultada.

            A terminologia desconsideração "inversa" surge com a possibilidade vislumbrada de se desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade para o alcance de bens da própria sociedade, contudo, em decorrência de atos praticados por terceiros – sócios.

            Situação que tem cotidianamente sido concretizada é a do cônjuge que pretende se separar do outro e se empenha no esvaziamento do patrimônio do casal, transferindo os bens para uma sociedade; quando do advento do desfecho do matrimônio a meação do cônjuge enganado será reduzida a praticamente nada. Nesse desiderato restou decidido: "Separação Judicial. Reconvenção. Desconsideração da personalidade jurídica. Meação. O abuso de confiança na utilização do mandato, com desvio dos bens do patrimônio do casal, representa injúria grave do cônjuge, tornando-o culpado pela separação. Inexistindo prova da exagerada ingestão de bebida alcoólica, improcede a pretensão reconvencional. É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, usada como instrumento de fraude ou abuso à meação do cônjuge promovente da ação, através de ação declaratória, para que estes bens sejam considerados comuns e comunicáveis entre os cônjuges, sendo objeto de partilha. A exclusão da meação da mulher em relação às dividas contraídas unilateralmente pelo varão, só pode ser reconhecida em ação própria, com ciência dos credores." (38). Outro fato ordinário é o da pessoa natural "dividir seu patrimônio" de forma bastante interessante: constitui-se uma sociedade para guarnecer o ativo, ficando o passivo a cargo da própria pessoa (sócio). Os terceiros que contratam com o sócio (pessoa natural) imaginam, pela teoria da aparência – reside em endereço nobre, utiliza automóveis de luxo e nutre hábitos apurados, como o de freqüentar excelentes restaurante, degustando vinhos e charutos de alta qualidade – ser pessoa merecedora de crédito; na verdade, todos os bens aparentemente do sócio são de propriedade de outra pessoa (jurídica) – sociedade. Nesse sentido terá sede a desconsideração para se declarar que o arcabouço jurídico societário serve de escudo aos atos fraudulentos do sócio.

            2.4. Desconsideração indireta

            As transformações econômicas mundiais, com destino à globalização e ao rompimento das fronteiras, influenciam diretamente na estrutura do mercado que se organiza, em grande maioria, sob a forma de sociedades. A conseqüência é a reestruturação dos mecanismos de atuação empresarial. Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, ao comentarem a Lei 6.404/76, já trataram desse quadro ressaltando que: "no seu processo de expansão, a grande empresa levou à criação de constelações de sociedades coligadas, controladoras e controladas, ou grupadas – o que reclama normas específicas que redefinam, no interior desses grupamentos, os direitos das minorias, as responsabilidades dos administradores e as garantias dos credores." (39)

            A desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem está por trás dela não se afigura suficiente, pois haverá outra ou outras integrantes das constelações societárias que também têm por objetivo encobrir algum fraudador. Marçal Justen Filho acentua o alcance do instituto: "É a ignorância, para casos concretos e sem retirar validade de ato jurídico específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a uma ou mais sociedades, a fim evitar um resultado incompatível com a função da pessoa jurídica." (40)

            A jurisprudência tem adotado tal posicionamento: "Hipótese em que o acórdão embargado admitiu a aplicação da doutrina do "disregard of legal entity", para impedir a fraude contra credores, considerando válida penhora sobre bem pertencente a embargante, nos autos de execução proposta contra a outra sociedade do mesmo grupo econômico." (41). No mesmo sentido: "Sendo as empresas mera fachada de seu presidente comum, é de ser aplicado à hipótese a teoria da "disregard", agasalhada em nosso ordenamento, pelo art. 28, da Lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor)." (42).

            A vontade da sociedade controlada, subsidiária integral, coligada, integrante do grupo ou consórcio pode estar maculada pela do controlador efetivo (43), como demostra Daniela Storry Lins: "A nosso ver, tomando em consideração a concepção em que se funda a desconsideração da personalidade jurídica, esta se vincula à existência de controle societário, a partir do momento em que a vontade da empresa muitas vezes identifica-se com a vontade de seu controlador, que pode, assim, aplica-la abusivamente, tornando-se imprescindível estabelecer in casu os exatos limites e efeitos da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica." (44).

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Sobre o autor
Márcio Souza Guimarães

promotor de Justiça no Rio de Janeiro, mestrando em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, professor de Direito Empresarial da Fundação Getúlio Vargas, da Universidade Cândido Mendes, da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento em Direito (CEPAD), coordenador e professor da Associação do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (AMPERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3996. Acesso em: 23 nov. 2024.

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