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Biografias não autorizadas: o interesse público e o interesse do público

12/06/2015 às 09:10
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Uma coisa é o interesse do público, o gosto do público por bisbilhotar, por fofocas e outra coisa é o interesse público. Tudo aquilo que não integra o interesse público, ou seja, o interesse histórico, jornalístico, científico ou cultural, pode-se considerar como de interesse privativo da pessoa humana. Se não houver motivo relevante, a privacidade deve permanecer intacta.

Os fins não justificam os meios! A liberdade sem limites é irresponsável. É importante que isso esteja claro quando se discute a questão em torno da publicação de biografias não autorizadas.

Os princípios constitucionais de liberdade de expressão e reserva da intimidade, da privacidade, estão sabiamente sedimentados no mesmo patamar na Constituição Federal. E assim, devem ser mantidos, em prol do desenvolvimento do ser humano, da nação brasileira. O indivíduo não pode ser visto apenas como um produto das condições históricas. Como se coloca a noção de responsabilidade individual?

O personalismo ético nos parece a concepção que permite a análise cuidadosa de cada conflito, respeitando-se a visão antropocêntrica de nossa Constituição. O intérprete não atende a premissa da hierarquização de princípios. A sua diretriz é solucionar o caso concreto de acordo com a ordem social e o bem de cada indivíduo.

A liberdade de expressão alcançada em nosso país e assegurada a todos, indistintamente, entes jurídicos ou físicos, não é ilimitada. Sabemos disso, e é razoável, é justo, por ser equilibrado.

Os limites de hoje não são os mesmos de ontem. Agora, temos uma Constituição Democrática. Não há que se falar em censura quando uma personalidade reclama por abusos — isso chama-se defesa de seus bens de personalidade. É verdade que há um crivo subjetivo, mas é assim o âmago do ser, subjetivo.

Cada um sabe a dor e a alegria de viver. As memórias pessoais não devem ser julgadas por terceiros, exceto se as mesmas forem indispensáveis para o esclarecimento de fatos de interesse público. A todo ser humano compete o direito ao esquecimento de dores, mazelas da vida privada, fatos constrangedores já superados. A todo ser humano compete o direito à felicidade.

A Constituição Federal resguarda o direito à informação, fatos relevantes ao interesse público, os quais não equivalem a fatos de interesse do público. Quando se reclama por direito à informação, muitos confundem com direito à informação sobre a vida alheia. Não! Não nos cabe reclamar informações sobre a vida privada de terceiros, ainda que figuras públicas. Todos os seres humanos necessitam da proteção de sua liberdade de expressão, e não menos de sua intimidade e vida privada.

Os limites estabelecidos para o resgate histórico da vida das pessoas deveriam advir da razoabilidade, do bom senso e da historiologia. Porém, na Era da Comunicação e das novas tecnologias, os valores morais estão em transformação e, por isso, a relativização da vida privada e da intimidade é hoje aqui discutida.

A liberdade de expressão não se opera na anomia.

Esse mesmo pleito de liberdade incondicional é feito em relação à internet. Preocupante, muito preocupante. A quem interessa a liberdade irrestrita? Em um Estado Democrático de Direito todos somos livres, mas todos devemos seguir as mesmas regras. Quem vai à praia com o marido, o namorado para namorar não deve ter sua privacidade respeitada?

O respeito e a ética seriam valores suficientes para acomodar essas situações, mas isso é antigo, agora estamos em uma nova era. Os direitos da personalidade são contrapesos essenciais nessa nova era. A intimidade das figuras públicas ou das celebridades não pode ser relativizada, a qualquer custo, sob pena de dano ao direito à felicidade, no qual incluem-se os mais simples e banais atos de um ser humano, tais como, andar de mãos dadas, namorar, ir a restaurantes, cinemas, praia.

Por que há tantas dúvidas em relação ao que pertence ao círculo concêntrico da intimidade, da vida privada do que seja realmente uma informação de interesse público? Uma coisa é o interesse do público, o gosto do público por bisbilhotar, por fofocas e outra coisa é o interesse público. Tudo aquilo que não integra o interesse público, ou seja, o interesse histórico, jornalístico, científico ou cultural, pode-se considerar como de interesse privativo da pessoa humana. Se não houver motivo relevante, a privacidade deve permanecer intacta.

A desnecessidade de autorização dos biografados não é um permissivo absoluto, mantém atenuada em face dos direitos da personalidade. Os direitos das personalidades públicas são restritos, contudo existem e devem ser sacrificados o mínimo possível, pois o seu núcleo essencial tem de ser preservado. A autoconsciência do ser humano exige para sua felicidade o reconhecimento da correspondente dignidade alheia. O ser humano não quer apenas viver, mas deseja ser feliz.

Diante da tensão constante entre os valores do indivíduo e os valores da sociedade, Miguel Reale propõe um esforço permanente de composição de maneira que venha a ser reconhecido o que toca a coletividade e o que cabe ao indivíduo em uma ordenação progressivamente capaz de harmonizar as duas forças.

O indivíduo deve ceder ao todo, até e enquanto não seja ferido o valor da pessoa, a plenitude do homem enquanto homem. Miguel Reale alerta que “toda vez que se quiser ultrapassar a esfera da “personalidade” haverá arbítrio.

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Sobre a autora
Ivana Có Galdino Crivelli

Advogada do escritório Có Crivelli Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRIVELLI, Ivana Có Galdino. Biografias não autorizadas: o interesse público e o interesse do público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4363, 12 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39981. Acesso em: 24 abr. 2024.

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