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Lei de responsabilidade fiscal e democratização da gestão pública

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01/05/2003 às 00:00
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4 - Considerações Finais

Seja qual for a motivação subjacente ao projeto que deu origem à LRF, tem o povo brasileiro instrumento legal que pode favorecer transformações salutares nas formas de planejamento, execução e gestão de recursos, obrigatoriamente voltada para o interesse público e passível de controle sistemático.

Diante de tanto descaso e até mesmo desonestidade no emprego das receitas e na ausência de políticas sociais conseqüentes, sempre justificadas pela falta de recursos públicos, a despeito da pesada carga tributária, não resta dúvida da relevância de uma legislação para regulamentar e disciplinar o assunto. Por outro lado, é mais do que tempo de atribuir responsabilidades inclusive penais, àqueles governantes que não cumprem com suas obrigações. Afinal, o mandato não confere aos gestores públicos o privilégio da impunidade ou a prerrogativa de isenção de controle e prestação de contas à sociedade.

Sob essa perspectiva de análise, não há como negar que carecíamos de instrumentos definidores de princípios, regras e sanções, norteadores das responsabilidades do poder executivo, no estabelecimento da política fiscal e correspondente gestão do orçamento da União, dos Estados e dos Municípios.

Por isso, a despeito da persistência de pontos polêmicos, os quais certamente serão equacionados, a Lei Complementar 101/2000 veio preencher lacuna quanto a medidas punitivas contra o mau administrador público, que doravante poderá deparar-se com sérios problemas e ser chamado à responsabilidade por seus atos. A partir da vigência da LRF, o desequilíbrio orçamentário, o nepotismo, o clientelismo, que resultam em gasto excessivo com pessoal, as operações irresponsáveis de crédito, o descuido com o patrimônio público, tudo passa a ser fiscalizado e passível de sanção.

Acreditamos que, através da efetiva aplicação dos quatro pilares em que se apóia a LRF, a saber: o planejamento, a transparência, o controle e a responsabilidade, disporemos dos sustentáculos para a administração responsável e fundamentada em princípios éticos.

Em suma, a lei é rigorosa; impõe-se, agora, que os responsáveis por sua efetividade, com destaque aos Tribunais de Contas, Ministério Público e Judiciário sejam implacáveis no controle, fiscalização, apuração, acusação e julgamento, respectivamente, dos dados que lhe chegarem às mãos. Assim procedendo, a LRF pode vir a ser um instrumento para construir um novo modelo de gestão pública nacional; em caso contrário, pode vir a ser mais um episódio de inapetência para a mudança e modernização administrativa e transformação social.

Além disso, temos consciência de que a lei, embora condição necessária, não é, por si, suficiente para garantir mudança de mentalidade e, em conseqüência, os propósitos de uma administração responsável.

Na condição de operadores jurídicos e cidadãos, cabe-nos exercer nosso direito e dever cívico de atuar no sentido de que tal diploma legal encontre efetividade, participando sempre, buscando informações, difundindo-as à população e denunciando distorções... Assim procedendo, estaremos contribuindo significativamente para garantir seriedade e responsabilidade no planejamento e acompanhamento da aplicação dos recursos, além de transparência e eficiência na gestão dos recursos, tendo em vista o interesse público, particularmente dos segmentos particularmente marginalizados de nossa sociedade.

Para concluir, buscamos respaldo nas sábias palavras de Machado & Figueiredo (2001, p. A-3), quando, discutindo conflitos oriundos da aplicação da lei em exame, ressaltam:

O Executivo e o Legislativo têm o dever constitucional de discutir seriamente o Orçamento e as incongruências da Lei de Responsabilidade Fiscal. (...) No Estado de Direito, nada pode ser mais odioso do que a denegação da justiça. Não há indenização que repare a injustiça de um direito sonegado, suprimido. (...) Não há responsabilidade fiscal que justifique a intolerância e a irrazoabilidade e o temor reverencial ao positivismo cego dos valores da cidadania.


NOTAS

01. Responsabilidade fiscal diz respeito ao cumprimento de normas ou obrigações cometidas aos agentes públicos, com vistas à manutenção regular das atividades por eles exercitadas no campo da gestão patrimonial. Envolve a ação tributária, conjugada com os esforços no campo financeiro, em busca do equilíbrio orçamentário decorrente da programação de governo.

De acordo com Pereira Junior (in: Cruz, 2001, p. 173), não se extraia do rótulo "responsabilidade fiscal" a idéia de que se estaria a criar nova espécie de responsabilidade, na clássica acepção jurídica de obrigação secundária, derivada da inexecução de obrigação principal. A LRF veio estabelecer não uma nova espécie de responsabilidade, mas estatuir condições, termos e requisitos para o regular exercício da gestão financeira e patrimonial do Poder Público, cujo eventual descumprimento atrairá, em processo administrativo regular, juízos de reprovação a ilícito administrativo, com possíveis repercussões nos campos da responsabilização civil do Estado e da responsabilização penal pessoal do gestor. A violação dos procedimentos previstos na LRF ensejará, portanto, apuração nas três conhecidas esferas de responsabilidade, a iniciar-se pela administrativa, qualificando-se o objeto pelo fato de constituir ilícito contra a gestão pública.

02. As finanças públicas não são conceituadas pelo legislador, no âmbito da citada Lei. Motta (2000, p. 31) define finanças públicas como: "o conjunto de atividades realizadas pela Administração pública, direta e indireta, dos três poderes, de todas as unidades federadas e da União, com o objetivo de definir as riquezas do Estado, arrecadar receitas estabelecendo a aplicação e realização das despesas, bem como gerir o patrimônio público.

Esse conceito não se distancia muito, no aspecto da matéria versada, daquele proposto por de Plácido e Silva, Pedro Nunes ou Ives Gandra Martins e Celso Ribeiro Bastos. A diferença passa a existir em relação a: - inclusão de pessoas jurídicas de direito privado vinculadas a esfera; e - abrangência dos demais poderes, além do Executivo."

03. Pelicioli (2000, p. 109) ao fazer breve histórico do tema, diz que a lei de Responsabilidade na Gestão Fiscal sofreu inspiração de experiência e formulação estrangeiras como as da Nova Zelândia, da União Européia via Tratado de Maastricht e dos EUA. Mas, como seria de esperar, foi adaptada às nossas peculiaridades, inclusive, para abarcar todas as esferas e níveis de governo. Na América Latina, os pioneiros na aplicação da LRF são a Argentina e agora o Brasil.

04. Este programa foi lançado em outubro de 1998. Seus objetivos privilegiam o combate ao déficit e a redução da dívida pública.

05. Zilbovicus (2001) salienta que endividamento não é necessariamente sinônimo de irresponsabilidade fiscal; o que se pretende é compromisso social na aplicação responsável dos recursos públicos.

06. O controle (fiscalização) é uma tarefa árdua que necessita de apoio para que funcione corretamente. Muitos países hoje possuem órgãos de controle, com a missão de fiscalizar a boa gestão financeira. Em algumas nações, temos órgãos colegiados (tribunais de contas), em outras de forma impessoal (controladorias). No Brasil, os Tribunais de Contas possuem papel de fundamental importância para o controle da Administração Pública; seu destaque adquire relevo proporcional ao avanço das instituições democráticas. Quanto ao nosso Tribunal de Contas, há quem diga (Rigolin (2000, p. 29) que o tribunal seria um quinto poder, sendo o executivo, judiciário, legislativo e o Ministério Público os outros quatro. Mas, o que importa saber é que, de acordo com Castro (2000, p.11) os Tribunais de Contas são órgãos de controle externo, encarregados da fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial da Administração Pública, desvinculados da estrutura de qualquer Poder e independentes da entidade fiscalizada. Para o autor não se pode confundir, a função do Tribunal de Contas, que é auxiliar do Poder Legislativo, com a natureza do órgão. Cumpre registrar igualmente divergência doutrinária a respeito do art. 71 da Constituição Federal, pois alguns estudiosos dizem que o tribunal de contas teria, além da atribuição de fiscalizar, a função de informar e julgar certos atos.

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07. Segundo Fernandes (2001, 87), é necessário certo arrojo dos administradores públicos e agentes de controle em geral, para impor a alteração das ações programadas a partir de dados verificados pois, sem influenciar o processo decisório, o controle perde a finalidade. Dessa forma, quando a sociedade ou os órgãos de controle envidam esforços permanentes na verificação, análise e recomendação, conseguem fazer uma norma ter efetividade.

08. Entende-se por responsável é a pessoa que deve suportar a conseqüência de sua ação antijurídica, típica e punível.

09. Esta Lei é de autoria do Poder Executivo Federal. O projeto que lhe deu origem (621/99 – Câmara dos Deputados) foi aprovado em ambas as Casas Legislativas sem sofrer qualquer alteração.

10. Todos os novos tipos penais previstos na Lei 10.028/00 dizem respeito ao âmbito de uma criminalidade muito especial, em que ganha protagonismo o agente político que exerce função executiva: em nível federal, estadual ou municipal no caso das alterações promovidos no CP; em nível municipal no concernente ao Decreto-lei 201/67.


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Sobre o autor
André Saddy

acadêmico de Direito na Universidade Estácio de Sá, conciliador de Juizado Especial Criminal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SADDY, André. Lei de responsabilidade fiscal e democratização da gestão pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4006. Acesso em: 18 abr. 2024.

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