Brilhante é a lição do saudoso e querido professor Vicente Ráo, ao reafirmar a importância dos princípios, "cuja ignorância, quando não induz a erro, leva à criação de rábulas em lugar de juristas" [1].
SUMÁRIO: 1. Introdução. - 2. A licença-prêmio. - 3. Os servidores públicos. - 4. Da interpretação da Constituição. - 5. Da interpretação da lei em consonância com a Constituição. - 6. Da expressão "servidor público". – 7. Da extensão do direito à licença-prêmio. Aplicação do princípio da igualdade. - 8. Breve conclusão.
1. Introdução.
Não obstante tratar-se de "quaestio juris" que vem sendo debatida de longa data, tornou-se imperiosa a elaboração do presente estudo, eis que, recentemente, no julgamento da Apelação Cível n° 118.453-5/0-00, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tendo como relator o eminente Desembargador Roberto Bedaque, entendeu por instaurar incidente de uniformização nº 118.453-01, visando pacificar a jurisprudência deste Tribunal.
2. A licença-prêmio.
Enumera a Lei nº 10.261/68, em seus dispositivos legais, inúmeros direitos de vantagem pecuniária e de ordem geral. O art. 181, em regramento do direito às licenças, prescreve que o funcionário público poderá ser licenciado como prêmio de assiduidade. Sendo que, o art. 209 da referida lei estadual prescreve que "O funcionário terá direito, como prêmio de assiduidade, à licença de 90 (noventa) dias em cada período de 5 (cinco) anos de exercício ininterrupto, em que não haja sofrido qualquer penalidade administrativa".
Pode-se definir licença-prêmio como um direito subjetivo à licença de 90 (noventa) dias àquele servidor público que, durante cada período de 5(cinco) anos de exercício ininterrupto, sem qualquer penalidade administrativa, for assíduo. Cuida-se, assim, de norma jurídica que visa, claramente, premiar o servidor público por sua assiduidade e probidade, não tendo qualquer relação com o regime a que esteja submetido.
3. Os Servidores Públicos (Arts. 39, da CF e 124 e 129 da CESP)
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, servidor público é "todo aquele que mantém com o Poder Público relação de trabalho, de natureza profissional e caráter não eventual, sob vínculo de dependência" [2].
São, portanto, servidores públicos todos aqueles que apresentarem um vínculo trabalhista com o Poder Público, desde que caracterizado pela atuação profissional, dependência e continuidade.
A Constituição Federal, no capítulo que tratava "Dos Servidores Públicos Civis", dispunha no art. 39: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas". Por sua vez, com as alterações introduzidas pelas Emendas Constitucionais nº 18 e 19/98, a Seção II, foi denominada "Dos Servidores Públicos", dispondo o art. 39¸ "in verbis": "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrados por servidores designados pelos respectivos Poderes".
Já a Constituição do Estado de São Paulo, no Capítulo II ("Dos Servidores Públicos do Estado"), Seção I, denominada "Dos Servidores Públicos Civis", prescreve no art. 124 que: "Os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Judiciário terão regime jurídico único e planos de carreira", assegurando o § 1º aos servidores da administração direta "isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder, ou entre servidores dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho".
Assevera, ainda, o art. 129 da Constituição Paulista que "Ao servidor público estadual é assegurado o percebimento do adicional de tempo de serviço, concedido no mínimo por qüinqüênio, e vedada a sua limitação, bem como a sexta-parte dos vencimentos integrais, concedida aos vinte anos de efetivo exercício, que se incorporarão aos vencimentos para todos os efeitos, observando o disposto no art. 115, XVI, desta Constituição".
É com supedâneo nessas premissas constitucionais que se deve interpretar as disposições infraconstitucionais.
4. Da interpretação da Constituição.
Segundo Alexandre de Moraes, a interpretação constitucional, "constitui um ponto especial dentro da interpretação jurídica, em face da supremacia constitucional e do singular papel jurídico e político do texto magno no ordenamento jurídico" [3].
A interpretação das normas constitucionais, não obstante empregar os métodos tradicionais da hermenêutica jurídica, têm princípios hermenêuticos diferentes, uma vez que a Constituição Federal desempenha papel de supremacia, além de ser o celeiro dos axiomas fundamentais da ordem jurídica.
O constitucionalista Luís Roberto Barroso acentua com precisão que "toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado" [4].
Com efeito, trilhando pelo ensinamento desse autor, pode-se afirmar que a interpretação das normas constitucionais sempre deve ter como premissa fundamental o princípio da supremacia da Constituição.
Conforme lição do professor Pinto Ferreira, o princípio da supremacia constitucional "é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político", vindo a complementar que "as regras constitucionais são dotadas de uma superioridade profunda com relação às demais normas jurídicas" [5].
Destarte, as normas constitucionais apresentam uma posição hierárquico-normativa de superioridade com relação às demais normas jurídicas, denominadas de infraconstitucionais, conforme leciona Gomes Canotilho, ao dizer que "A constituição é uma lei de características especiais. Tem um brilho autônomo expresso através da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros actos com valor legislativo presentes na ordem jurídica. Em primeiro lugar, caracteriza-se pela sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras normas do ordenamento jurídico. Ressalvando algumas particularidades do direito comunitário, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: (1) as normas constitucionais constituem uma lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são normas de normas (normae normarum) afirmando-se como uma fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); (3) a superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição" [6].
Portanto, em virtude do princípio da supremacia das normas constitucionais, é inexorável a observância, pelas normas infraconstitucionais, daquilo que está expresso na Constituição.
Por outro lado, deve-se adicionar ao princípio da supremacia da Constituição, como pressuposto à interpretação da Carta Magna, dois princípios hermenêuticos específicos do Direito Constitucional: o princípio da máxima efetividade e o princípio da força normativa.
O princípio da máxima efetividade, na esteira dos ensinamentos do professor Jorge Miranda, pode ser compreendido no sentido de que "todas as normas constitucionais são verdadeiras normas jurídicas e desempenham uma função útil no ordenamento" [7], de modo que "a nenhuma norma pode dar-se uma interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser" [8], ou melhor, "a uma norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê" [9]. Portanto, "a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação" [10], vindo a concluir:"Interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição" [11].
Em suma, de conformidade com Canotilho, pode-se sintetizar o princípio de interpretação constitucional da máxima efetividade na seguinte regra: "a uma norma constitucional deve ser atribuído sentido que maior eficácia lhe dê" [12].
Portanto, ao se interpretarem os dispositivos constitucionais que se referem aos servidores públicos, cumpre ao intérprete extrair do texto um sentido que maior eficácia lhe dê.
De outra parte, deve-se adicionar ao princípio da máxima efetividade, quando da interpretação da Constituição, o princípio da força normativa, que, segundo Canotilho, pode ser compreendido no sentido de que, para a solução dos problemas jurídico-constitucionais,"deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental" [13].
Destarte, ao se interpretar a Constituição deve-se atribuir prevalência aos valores e princípios que o direito constitucional conferiu maior importância. Vale dizer, cumpre atribuir maior força normativa a esses preceitos.
Assim sendo, ao se extrair uma interpretação do termo "servidores públicos" empregado pela Constituição, forçoso é o entendimento que se coadune com o princípio da isonomia, inscrito, em especial, no art. 5º, da Lei Fundamental.
5. Da interpretação da lei em consonância com a Constituição.
Como cediço, diante das lições memoráveis de Hans Kelsen, o sistema jurídico é constituído por uma ordem hierárquico-normativa, em que uma norma promana de outra hierarquicamente superior. Vale dizer, deve-se analisar um ordenamento jurídico tomando como princípio a norma fundamental e, seguindo esse raciocínio, faz-se a dedução das demais normas que vão se posicionando em graus inferiores e deverão conformar-se com as de hierarquia superior [14].
A propósito, em abordagem ímpar acerca do tema, cumpre citar brilhante lição do saudoso e querido professor Vicente Ráo, ao afirmar que "as leis se classificam, hierarquicamente, segundo a maior ou menor extensão de sua eficácia e sua maior ou menor intensidade criadora do direito" [15]. Com efeito, "no grau mais elevado da hierarquia, encontra-se a Constituição, à qual todas as demais normas se devem adaptar" [16], assim, "perante a Constituição, todas as normas restantes constituem o segundo grau da hierarquia" [17].
Bem por isso, segundo o mestre Vicente Ráo, pelo princípio da constitucionalidade, exige-se "a conformidade de todas as normas e atos inferiores, leis, decretos, regulamentos, atos administrativos e atos judiciais, às disposições substanciais ou formais da Constituição" [18].
Em tais condições, ao se tentar interpretar uma lei infraconstitucional, cumpre ao intérprete iniciar seu mister tendo por fundamento as normas superiores, "in casu", a Constituição. Sendo assim, a única interpretação possível de uma norma infraconstitucional é aquela que esteja de conformidade com a vontade da Constituição.
Aliás, trilhando pelo mesmo raciocínio, o eminente professor Jorge Miranda assevera, taxativamente, que "não é a Constituição que deve ser interpretada em conformidade com a lei, mas sim a lei que deve ser interpretada em conformidade com a Constituição" [19], vindo a afirmar em outra oportunidade que, "cada disposição legal não tem somente de ser captada no conjunto das disposições da mesma lei e no conjunto da ordem legislativa; tem outrossim de se considerar no contexto da ordem constitucional" [20].
Equivale a dizer que, diante da posição hierárquico-normativa de superioridade da Constituição com relação às demais normas do ordenamento jurídico, estas buscam sua eficácia no texto constitucional.
Portanto, com supedâneo no princípio da supremacia da Constituição, todos os atos normativos devem estar em conformidade com os ditames estampados no texto constitucional. E, em não se verificando o cumprimento do que dispõe a Constituição, deve o Poder Judiciário, em concreto, garantir a supremacia constitucional.
Bem por isso, o art. 209 da Lei nº 10.261/68 deve ser interpretado e aplicado à luz dos dispositivos constitucionais que tratam do capítulo referente aos servidores públicos.
6. Da expressão "servidor público".
Em análise da Constituição Federal, bem como da Constituição do Estado de São Paulo, conforme dispositivos constitucionais previamente citados, nota-se, facilmente, o emprego da expressão "servidor público" para se referir tanto ao servidor público regido pelo regime estatutário (Lei nº 10.261/68), como àquele disciplinado pela Lei nº 500/74.
Isso porque a expressão "servidor público" é empregada pela Constituição para se referir ao servidor, seja ele disciplinado pela Lei nº 10.261/68, como pela Lei nº 500/74.
Vale dizer, a expressão "servidor público" estampada nas Constituições Federal e Estadual Paulista tem sentido amplo ou genérico, não devendo as normas infraconstitucionais destoar de tal significado.
Compartilhando deste entendimento, o ilustre professor Diógenes Gasparini, sustenta que os servidores públicos são compreendidos por "uma gama de pessoas físicas que se ligam, sob regime de dependência, à Administração Pública direta, indireta, autárquica e fundacional pública, mediante uma relação de trabalho de natureza profissional e perene para lhes prestar serviços" [21]. E, na seqüência, afirma que: "Não importa, então, o regime, estatutário ou celetista, pelo qual se vinculam à Administração direta, autárquica ou fundacional pública... " [22],vindo a acrescentar, mais adiante, "A expressão designa os que prestam serviço sob regime estatutário e os que executam serviço segundo o regime celetista para a União (Executivo, Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas, Estado-Membro (Executivo, Legislativo, Judiciário, Tribunal de Contas), Distrito Federal (Executivo, Legislativo, Judiciário e Tribunal de Contas), Município (Executivo, Legislativo e, onde houver, Tribunal de Contas), autarquia e fundação pública" [23]. Concluindo, peremptoriamente, que: "A expressão é de conteúdo amplo, abrigando, portanto, os titulares de cargo, função ou emprego público" [24].
Trilhando pelo mesmo entendimento esposado, cumpre citar ilustres juristas como Celso Antônio Bandeira de Mello [25], Maria Sylvia Zanella Di Pietro [26], Lucia Valle Figueiredo [27], Odete Medauar [28] e Uadi Lammêgo Bulos [29].
Em tais condições, possível afirmar, com precisão, que a expressão "servidores públicos" empregada tanto na Constituição Federal como na Estadual Paulista, deve ser interpretada de maneira ampla (genérica), abrangendo, portanto, os servidores públicos regidos pela Lei nº 10.261/68, bem como pela Lei nº 500/74, sem distinção.
A propósito, não é por outra razão que o Poder Judiciário vem-se posicionando no sentido de conferir à expressão "servidor público" uma interpretação ampla, compartilhando do entendimento doutrinário.
Em v. acórdão do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tendo como relator o ilustre Desembargador Lourenço Abbá Filho, ficou consignado que "à semelhança da Carta Constitucional Federal, a expressão ‘servidor público’ utilizada na Constituição Estadual tem sentido amplo, e, mantendo o autor regime de trabalho com vínculo assemelhado ao de titular de cargo público, indiscutivelmente, faz ele jus ao benefício da licença-prêmio" [30].
Neste sentido, cumpre citar, ainda, v. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, tendo por relator o eminente Desembargador Lineu Peinado, referendou o direito dos servidores regidos pela Lei nº 500/74 ao gozo de licença-prêmio, sustentando com peculiar clareza, que, "a expressão utilizada pelo legislador constitucional paulista é abrangente, pois ‘servidores’ incluem todos aqueles que prestam serviços à Administração. E se assim é, deve ser interpretada como possibilitando a qualquer classe de servidor a obtenção das vantagens que menciona, não sendo crível que o legislador não soubesse o alcance da expressão que estava utilizando na elaboração da Constituição do Estado, mesmo porque o artigo 124 da mesma Constituição determina que os servidores da Administração Pública direta, das autarquias e das fundações públicas terão regime único" [31].
A propósito, vale ressaltar¸ "ad argumentandum tantum", que as alterações realizadas pelas Emendas Constitucionais 18 e 19/98, em nada modificou o direito à licença-prêmio, como já deixou expresso o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tendo como relator do ilustre Desembargador Oliveira Santos [32].
Enfim, pode-se extrair a inarredável ilação no sentido de que a expressão "servidor público", empregada pelas Constituições Federal e Estadual, deve ser compreendida em sentido amplo (ou genérico), abrangendo, por conseguinte, os servidores públicos do Poder Judiciário Estadual Paulista, sejam eles disciplinados pela Lei nº 10.261/68 ou Lei nº 500/74, sendo forçosa uma interpretação das leis infraconstitucionais de modo que estejam em conformidade com os ditames da Lei Maior.
Se a expressão "servidores públicos" é empregada no texto constitucional em sentido amplo, não pode o intérprete, no exame das normas infraconstitucionais, adotar exegese outra.
7. Da extensão do direito à licença-prêmio. Aplicação do princípio da igualdade.
Em inolvidável lição, já dizia o mestre publicista Pimenta Bueno que a lei "deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania" [33].
No entanto, o Poder Público, olvidando-se da célebre lição de Pimenta Bueno, vem, de maneira direta e frontal, ofendendo o princípio constitucional da isonomia, conforme razões que serão expostas.
O princípio da igualdade é direito fundamental dirigido ao legislador, administrador e julgador, sendo um escudo encontrado pelo povo (poder constituinte) a fim de limitar o Poder Estatal, protegendo-o de distinções arbitrárias, que quedam por afrontar direitos que lhes pertence.
Prescreve o art. 5º, "caput", da Constituição Federal que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".
Para Francisco Campos, a igualdade perante a lei, não está, por acaso ou por arbitrariedade, descrita em primeiro lugar nos direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição, eis que, "dando-lhe o primeiro lugar na enumeração, quis significar expressivamente, embora de maneira tácita, que o princípio da igualdade rege todos os direitos em seguida enumerados" [34].
O princípio da igualdade, portanto, é a premissa fundamental que deve sustentar a atividade legislativa, administrativa e jurisdicional, qualificando-se como um princípio que exerce primazia em relação aos demais.
Celso Antônio Bandeira de Mello, em significativo estudo acerca do princípio da igualdade, extrai alguns critérios, a fim de possibilitar a verificação da afronta ao princípio em comento. De conformidade com entendimento do ilustre professor, pode-se vislumbrar a ofensa ao princípio da igualdade, mediante as seguintes indagações [35]: a) – qual o elemento tomado como fator discriminatório?; b) – existe correlação lógica entre o fator escolhido como critério de discrímen e a disparidade estabelecida?; c) – mesmo que exista correlação lógica do fator escolhido como critério de discrímen e a disparidade estabelecida, tal desigualdade é abarcada pela Constituição?
No caso apreciado, pode-se verificar a ofensa ao princípio da igualdade ao se empregar a segunda e terceira indagação.
De início, há violação ao princípio da igualdade, uma vez que não existe correlação lógica entre o fator escolhido e a desigualdade estabelecida, pois, os servidores regidos pela Lei nº 10.261/68, bem como aqueles regrados pela Lei nº 500/74, apresentam as mesmas obrigações, havendo o discrímen no tocante aos benefícios, em específico, o direito à licença-prêmio.
Aliás, no Capítulo V, intitulado "Dos Deveres, das Proibições e das Responsabilidades", convém citar, especialmente, o que dispõe o art. 33, da Lei nº 500/74, ao prescrever explicitamente que, "além das obrigações que decorrem normalmente da própria função, está o servidor sujeito aos mesmos deveres e às mesmas proibições, assim como ao regime de responsabilidade e às penas disciplinares da repreensão, suspensão e multa vigente para o funcionário público civil do Estado".
Bem por isso, é inegável que existe flagrante ofensa ao princípio da isonomia, porquanto não existe correlação lógica entre o fator adotado como critério do discrímen – ser funcionário público – e a desigualdade de fato estabelecida – direito à licença-prêmio.
Ora, estando os servidores públicos, tanto no regime da Lei nº 10.261/68, como no regime da Lei nº 500/74, sujeitos aos mesmos deveres e às mesmas proibições, assim como ao regime de responsabilidade e às penas disciplinares da repreensão, suspensão e multa, evidencia-se a afronta ao princípio da igualdade, ao ser feita discriminação entre eles. Isso porque não soa lógico e razoável que servidores públicos com os mesmos deveres, possam usufruir de benefícios díspares, sem ofensa ao princípio da isonomia.
De outra parte, nota-se mais uma violação ao princípio da igualdade, tendo em vista que o critério de desigualdade estabelecido pela norma infraconstitucional para conceder o direito à licença-prêmio não é constitucionalmente pertinente. Vale dizer, não existe referendo da Constituição ao critério adotado pelo legislador infraconstitucional como fundamento ao díscrimen estabelecido.
Conforme ilação extraída das normas das Constituições Federal e Estadual Paulista, no que concerne aos "servidores públicos", tal expressão tem sentido amplo ou genérico, não estando adstrita aos servidores públicos regidos pela Lei nº 10.261/68. Vale dizer, sendo tal expressão genérica, engloba, por conseguinte, os servidores disciplinados pela Lei 500/74.
Sendo assim, não pode a legislação infraconstitucional estabelecer distinções entre os servidores públicos, sob pena de ofensa ao princípio da igualdade. Anota o eminente professor Celso Antônio Bandeira de Mello que, na aplicação do princípio da igualdade, "não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais" [36], bem por isso, complementa, "não basta, pois, poder-se estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um conseqüente tratamento diferenciado" [37],vindo a concluir, ser de rigor que, "o vínculo demonstrável seja constitucionalmente pertinente" [38].
Com isso, pode-se afirmar com firmeza que, diante do emprego da expressão "servidor público" pelo texto constitucional, para se referir aos servidores disciplinados pela Lei nº 10.261/68, bem como pela Lei 500/74, não existe vínculo constitucionalmente pertinente que respalde a distinção entre aqueles servidores quanto ao direito à licença-prêmio, havendo, de conseguinte, uma afronta ao princípio da isonomia, previsto no art. 5º, "caput", da Constituição Federal. Com efeito, é forçosa a primazia da Constituição (princípio da supremacia), cabendo ao intérprete dar à legislação infraconstitucional os contornos estabelecidos pela Carta Magna. Isso porque as leis infraconstitucionais devem ser interpretadas de conformidade com a Constituição, conferindo às normas constitucionais o máximo de efetividade e força normativa.
De forma precisa, ensina Francisco Campos, que "lei alguma, nenhum poder, nenhuma autoridade poderá, direta ou indiretamente, de modo manifesto ou sub-reptício, mediante ação ou omissão, derrogar ao princípio da igualdade" [39].
Destarte, é inarredável a conclusão de que, por extensão, os servidores públicos admitidos pela Lei nº 500/74 têm direito à licença-prêmio prevista no art. 209 da Lei 10.261/68.
Essa, aliás, a única solução possível, que dará cumprimento e primazia à Constituição, pois, em consonância com a abalizada doutrina de Francisco Campos, "como o princípio da igualdade perante a lei obriga o legislador e, em seguida a este, a autoridade incumbida de aplicar a lei, no momento de sua aplicação, particularmente quando feita por via judicial, é dever do juiz aplicá-la com a extensão ou a amplitude necessária a tornar efetivo o princípio constitucional da igualdade perante a lei, violado pelo legislador" [40].
Mais adiante, em passagem singular, assevera que "ao Poder Judiciário incumbe aplicar a lei nos termos ou na conformidade da Constituição; cabe-lhe, portanto, em primeiro lugar aplicar a Constituição" [41], além do que a extensão do direito à licença-prêmio, previsto no art. 209 da Lei nº 10.21/68, aos servidores públicos regidos pela Lei nº 500/74, "não constitui um ato de legislação por parte do Poder Judiciário, mas, precisamente, o de aplicar a lei e a Constituição ou de suprir a lacuna ou a omissão da lei, substituindo o seu conteúdo genérico, que a Constituição imputa obrigatoriamente a toda lei, com o lhe vedar o arbítrio de privilegiar determinados casos excluindo do regime das suas disposições casos iguais àqueles, por incidirem, no mesmo grau e na mesma intensidade, sobre uns e sobre outros a razão que inspirou ao legislador o tratamento por ele dispensado aos casos que tentou privilegiar, singularizar, ou discriminar de maneira indevida, ou mediante a dispensa de um mandamento constitucional que não está no seu poder de dispensar, desconhecer ou ignorar" [42].
Desse modo, conclui Francisco Campos que "quando o Poder Judiciário estende um benefício outorgado por lei a determinados indivíduos aos demais que se encontram na mesma situação, não está legislando ou usurpando o exercício do Poder Legislativo; limita-se, ao contrário, a abolir um privilégio inconstitucional, conferindo à lei o conteúdo que a Constituição atribui, com o caráter obrigatório, a todas as leis, ao prescrever, o art. 141,§ 1º (atualmente, art. 5º, "caput", da Constituição Federal de 1988): ‘Todos são iguais perante a lei’" [43].
Bem por isso, o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em julgamento relatado pelo ilustre Desembargador Oliveira Santos, com fundamento no texto constitucional, já afirmou que "não reconhecer a paridade, seria tornar o texto letra morta, ainda que inexistente, por inércia do Legislativo, a lei específica" [44]. Entendimento este também seguido pelo eminente Desembargador Linneu Peinado ao asseverar que: "A ausência de elaboração legislativa ou de providências dos responsáveis pela alta administração do Estado não podem servir de escudo para o descumprimento de normas constitucionais, pois a referida norma constitucional constante do artigo 129 não faz qualquer distinção e não necessita ser regulamentada para ser aplicada" [45].
9. Breve Conclusão.
Diante do exposto, forçoso concluir no sentido da extensão do direito à licença-prêmio, previsto no art. 209 da Lei nº 10.21/68, aos servidores públicos regidos pela Lei nº 500/74, com supedâneo na aplicação dos dispositivos que tratam dos servidores nas Constituições Federal e Estadual, conjuntamente com o princípio da igualdade.
10. Notas
01. -"O Direito e a Vida dos Direitos", 5ª ed. Anotada e atualizada por OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, São Paulo, RT, 1999, p. 48.
02. -"Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta", São Paulo, RT, 1990, p. 9.
03. -"Constituição do Brasil Interpretada e legislação constitucional", S. Paulo, Atlas, 2002, p. 101.
04. -"Interpretação e Aplicação da Constituição", São Paulo, Saraiva, 1996, p. 150.
05. -"Direito Constitucional Moderno", 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 1962, p. 85, v. I.
06. -"Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 3ª ed., Coimbra, Almedina, 1998, p. 1074.
07. -"Manual de Direito Constitucional", 3ª ed., Coimbra, 1996, p. 260, t. II.
08. -Op. Cit. p. 260.
09. -Op. Cit. p. 260.
10. -Op. Cit. p. 260.
11. -Op. Cit. p. 260.
12. -"Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 3 ed., Coimbra, Almedina, 1998, p. 1149.
13. -Op. Cit. p. 1151.
14. -Aliás, ensina Hans Kelsen: "Una pluralidad de normas constituye una unidad, un sistema o orden cuando su validez reposa, en último análisis, sobre una norma única. Esta norma fundamental es la fuente común de validez de todas las normas pertenecientes a un mismo orden y constituye su unidad. Una norma pertenece, pues, a un orden determinado unicamente cuando existe la posibilidad de hacer depender su validez de la norma fundamental que se encuentra en la base de este orden." ("Teoria Pura Del Derecho", 2ª ed., Buenos Aires, EUDEBA, 1960, p. 135.).
15. -"O Direito e a Vida dos Direitos", 5ª ed. Anotada e atualizada por OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, São Paulo, RT, 1999, p. 305.
16. -Op. Cit. p. 305.
17. -Op. Cit. p. 305.
18. -Op. Cit. p. 306.
19. -Op. Cit. p. 261.
20. -Op. Cit. p. 263.
21. -"Direito Administrativo", 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 157.
22. -Op. Cit., p. 158.
23. -Op. Cit., p. 158.
24. -Op. Cit., p. 158.
25. -"Curso de Direito Administrativo", 11ª ed., São Paulo, Malheiros, 1999, p. 179. Neste sentido, ainda: "Regime Constitucional dos Servidores da Administração Direta e Indireta", p. 32.
26. -"Direito Administrativo", 12ª ed., São Paulo, Atlas, 2000, p. 415.
27. -"Curso de Direito Administrativo", 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2000, p. 532.
28. -"Direito Administrativo Moderno", 6ª ed., São Paulo, RT, 2002, p. 322.
29. -"Constituição Federal Anotada", São Paulo, Saraiva, 2000, p. 611.
30. -LEX – JTJ – 246/132.
31. -LEX – JTJ – 199/101.
32. -TJ/SP, Ap. Civ. nº 117.195-5/5, 6ª Câmara de Direito Público, Rel. Desembargador Oliveira Santos, j. 1/07/2002.
33. -"Apud" Celso Antonio Bandeira de Mello. "O conteúdo jurídico do princípio da igualdade", 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 18.
34. -"Direito Constitucional", São Paulo, Freitas Bastos, 1956, p. 12, vol. II.
35. -"Conteúdo jurídico do princípio da igualdade", 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 21.
36. -"Conteúdo jurídico do princípio da igualdade", 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1998, p. 41.
37. -Op. Cit., p. 42.
38. -Op. Cit., p. 42.
39. -Op. Cit. p. 14.
40. -"Direito Administrativo", São Paulo, Freitas Bastos, 1958, p. 190.
41. -Op. Cit. p. 192.
42. -Op. Cit. p. 192.
43. -Op. Cit. p. 192.
44. -TJ/SP, Ap. Civ. nº 117.195-5/5, 6ª Câmara de Direito Público, Rel. Desembargador Oliveira Santos, j. 1/07/2002.
45. -LEX-JTJ – 199/101.