O Projeto de Lei nº. 236/12, que visa a reformar o atual Código Penal, institui a criminalização de pessoas jurídicas de direito privado por atos praticados contra a administração pública e a ordem econômico-financeira. Os delitos cuja autoria poderá ser atribuída às empresas individuais de responsabilidade limitada, sociedades, associações, fundações, organizações religiosas e partidos políticos são corrupção ativa, formação de cartel, contrabando, descaminho, crimes contra a ordem tributária, delitos contra o sistema financeiro, falimentares e de concorrência desleal. Esta responsabilização poderá se dar independentemente da identificação das pessoas físicas que efetivamente cometeram o crime.
As respectivas penas compreendem a perda de bens, a suspensão parcial ou total de atividades, a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais, participar de licitação ou celebrar qualquer outro contrato com a Administração Pública, direta ou indireta. E há uma outra: a pessoa jurídica deverá divulgar a sua própria sentença condenatória, arcando com os custos da publicidade em órgãos de comunicação de grande circulação ou audiência, em inserções na mídia que poderão se estender pelo período de até um mês.
Evidentemente, que a divulgação da sentença certamente exporá, o que é inaceitável, as pessoas físicas envolvidas ou condenadas com a pessoa jurídica, vez que o projeto de lei não restringe a publicidade a um resumo técnico da decisão, mas exige menção aos fatos que ensejaram a condenação, lembrando-nos das sanções infamantes da época da Inquisição e das Ordenações Filipinas.
Se já é questionável (e muito) a responsabilização penal da pessoa jurídica, imagine submetê-la (e, consequentemente, os seus sócios e, até mesmo, os seus funcionários) à humilhação pública, ainda mais que se sabe já serem públicos os processos criminais.
De toda maneira, esta questão da possibilidade da pessoa jurídica vir a delinquir é um tema penal tormentoso em todo o mundo. Os penalistas desde há muito enfrentam esta matéria que remonta à antiga discussão em torno da natureza da pessoa jurídica, é dizer, se se trata de uma mera ficção ou uma realidade.
Basicamente duas teorias enfrentaram o tema: a teoria da ficção, de tradição romanística, foi defendida, dentre outros, por Savigny, Vareilles-Sommières e, de certa forma, pelo próprio Ihering; já a teoria da realidade teve como grande defensor o jurista alemão Otto Gierke, sendo seguido por autores como Von Tuhr e Zitelmann.
Apesar de modernamente preponderar a teoria segundo a qual a pessoa jurídica não se trata de uma mera ficção (como afirmava Savigny), o certo é que também se aceita amplamente que a realidade da pessoa jurídica é inteiramente diversa da realidade da pessoa física. Como ensina o mestre civilista Washington de Barros Monteiro, “a pessoa jurídica tem assim realidade, não a realidade física (peculiar às ciências naturais), mas a realidade jurídica, ideal, a realidade das instituições jurídicas.”[1] A pessoa jurídica, no dizer de Miguel Reale, “não é algo de físico e de tangível como é o homem, pessoa natural.”[2]
Mesmo aqueles que se inclinaram pela teoria da realidade nunca aceitaram a possibilidade da pessoa jurídica delinquir, sendo amplamente aceito o apotegma societas delinquere potest.
De fato, a incapacidade penal da pessoa jurídica salta aos olhos quando se estuda a teoria do delito e os seus postulados, dentre os quais o conceito de ação, a culpabilidade e a personalidade da pena, elementos indissociáveis da responsabilização criminal.
É sabido que nullum crimen sine actione e é evidente que ação é necessariamente uma conduta humana; logo só é possível atribuir a autoria de um crime a quem verdadeiramente pode agir, ou seja, o homem. Neste sentido,
Zaffaroni assevera que “en el derecho penal stricto sensu las personas jurídicas no tienen capacidad de conducta, porque el delito se elabora sobre la base de la conducta humana individual, (...) porque el delito según surge de nuestra ley es una manifestación individual humana.”[3]
Efetivamente a ação, como a define Roxin, é um “comportamento humano relevante no mundo exterior, dominado ou ao menos dominável pela vontade. Efeitos causados por animais ou poderes da natureza não constituem ações em sentido jurídico-penal, o mesmo podendo dizer-se dos atos de uma pessoa jurídica.”[4]
Exatamente por isso, Muñoz Conde ensina que “só a pessoa humana, considerada individualmente, pode ser sujeito de uma ação penalmente relevante.” Para ele, “a capacidade de ação (...) exige a presença de uma vontade, entendida esta como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica, mero ente fictício ao qual o direito atribui capacidade para outros efeitos distintos do penal.”[5]
O mesmo entendimento extrai-se de Cerezo Mir para quem “solo puede ser sujeto activo del delito el ser humano”, razão pela qual “la persona jurídica carece, por ello, de capacidad de acción o de omisión en el sentido del Derecho penal. (...) Al carecer las personas jurídicas de capacidad de acción y de omisión, no es posible aplicarles tampoco medidas de seguridad pertenecientes al Derecho penal. La aplicación de estas medidas exige la realización de una acción u omisión típica e antijurídica.”[6]
Desde Mezger afirma-se que o delito é ação (conduta humana), pois “sólo el hombre y sólo el hacer y omitir del hombre es punible.” Diz ele que “sólo es punible, en princípio, el hombre como ser individual. Societas delinquere non potest. Com ello se muestra el Derecho Penal en notable contraste con el Derecho Civil: al delito de la corporación del Derecho Civil no corresponde outro análogo en el campo penal.”[7]
Afirma Wessels que “o ponto de referência no Direito Penal é a conduta humana ligada às consequências socialmente danosas.” Para este autor, “o homem se diferencia de outras formas de vida pelo fato de que porta em si mesmo uma imagem do mundo estampada por representações de valor e está apto, através de sua potencialidade criadora, à configuração sensível de seu meio.”
Exatamente por isso, “capaz de ação em sentido jurídico-penal é toda pessoa natural independentemente de sua idade ou de seu estado psíquico, portanto também os doentes mentais.” Logo, conclui que “as pessoas jurídicas e associações não são capazes de ação em sentido natural.”[8]
Para Hassemer “o dolo e a culpa são os dois elementos de uma conduta humana, dos quais resulta positivamente a possibilidade de imputação subjetiva.”[9]
O mestre italiano Bettiol, após afirmar que “apenas o homem pode agir no campo penal”, afirma que o “sujeito capaz de ação é apenas o homem, entendido como entidade psico-física, como entidade que pode cumprir uma ação animada por um processo psicológico finalístico, ainda que não passível de reprovação”.
Este grande jurista italiano, apesar de admitir que “a pessoa jurídica torna-se centro de imputação de atos de vontade expressos pelas pessoas físicas”, afirma que “o Direito Penal não atua com fundamento nestes critérios normativos.” Para ele, “o Direito Penal pressupõe que os seus violadores responsáveis sejam seres inteligentes, livres e sensíveis. Mas a pessoa jurídica é um ser abstrato, que não tem inteligência, nem liberdade, nem sensibilidade, se bem que, por privilégio da lei, seja capaz de prover; não é, portanto sujeito possível de delito. Isto significa que pelo crime praticado responderá em nome próprio a pessoa física, não a pessoa jurídica.”[10]
Outro jurista italiano, Giulio Battaglini escreveu que “o delito é a violação de norma de comportamento, suscetível de valoração moral. E essa valoração não pode dizer respeito senão à ação humana, pois somente nesta é que se pode encontrar uma vontade moralmente valorável.”[11]
Gonzalo Rodriguez Mourullo também concorda que “sólo la persona humana puede realizar acciones en sentido jurídico-penal. Acción es únicamente, a estos efectos, el comportamiento dependiente de la voluntad humana”; assim, as pessoas jurídicas são irresponsáveis penalmente, pois “carecen de la voluntad en sentido psicológico que requiere el concepto jurídico-penal de acción.” Diz o jurista espanhol que neste sentido “la capacidad de acción (...) presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[12]
Na doutrina brasileira, prepondera também este entendimento; dentre os autores, destacamos inicialmente o pensamento do Professor René Ariel Dotti:
“O ilícito penal (crime ou contravenção) é fruto exclusivo da conduta humana”, logo “somente a pessoa física pode ser sujeito ativo da infração penal. Apenas o ser humano, nascido de mulher pode ser considerado como autor ou partícipe do crime ou contravenção”; “somente a ação humana, conceituada como a atividade dirigida a um fim, pode ser considerada como suporte causal do delito.”[13]
Há muito, o mestre Aníbal Bruno, depois de afirmar que “sem ação não há crime, e não existe ação quando falta algum dos seus componentes”, complementa que a ação é constituída pelo “comportamento humano”, um “fazer do agente.”[14]
Na mesma linha de pensamento, destacam-se Luiz Régis Prado para quem “falta ao ente coletivo o primeiro elemento do delito: a capacidade de ação ou omissão (típica)”[15]; para Juarez Tavares, “o conceito de conduta está indissoluvelmente ligado às características da vida humana como vida de relação, da qual emergem todos os aspectos da sociabilidade e da individualidade e pela qual o homem se materializa e se realiza, produz, cresce, organiza e adquire, através de repetições e atividades laborais cada vez mais complexas, possibilidade de formular pensamentos abstratos e propor seus respectivos objetivos.”[16]
Segundo Juarez Cirino dos Santos “é possível concluir que a definição capaz de identificar o traço mais específico e, ao mesmo tempo, a característica mais geral da ação humana, parece ser a definição do modelo final de ação”[17]; e João Mestieri: “a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo por ser incapaz de ação (...). Pelos atos delitivos praticados em nome da sociedade respondem os indivíduos diretamente responsáveis pelos fatos incriminados, e não todos os diretores, como já se pretendeu no Direito Penal Econômico brasileiro.”[18]
Para o saudoso Heleno Cláudio Fragoso a “ação é atividade humana conscientemente dirigida a um fim.”[19] Cezar Roberto Bitencourt aduz que “por ser o crime uma ação humana, somente o ser vivo, nascido de mulher, pode ser autor de crime (...). A conduta (ação ou omissão), pedra angular da Teoria do Crime, é produto exclusivo do homem. A capacidade de ação (...) exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter.”[20]
Também é óbvio faltar capacidade de culpabilidade à pessoa jurídica, entendida aquela como um juízo de reprovabilidade, só passível de ser aferido a partir de um comportamento humano. É inadmissível uma pessoa jurídica praticar um fato culpável, pois “la capacidad (...) de culpabilidad (...) presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[21].
Em conferência realizada na Universidade Central da Venezuela, no ano de 1945, Jiménez de Asúa já afirmava que “la culpabilidad es el conocimiento de la significación del hecho”, logo “la persona moral no puede ejecutar ningún hecho con dolo, ni tampoco la pena no tiene la fuerza de intimidar a una persona moral.”[22]
Battaglini, já citado neste trabalho, asseverava que “fora do homem, não se concebe crime: porque somente o homem possui a consciência e a faculdade de querer, exigidas pela responsabilidade moral, em que fundamentalmente se baseia o Direito Penal. E como as pessoas jurídicas só podem realizar atos jurídicos através de seus representantes, para se sustentar sua capacidade para o crime dever-se-ia reconhecer consciência e vontade no sentido supra mencionado, com referência ao ente representado. Mas isso é inadmissível. Assim é que os entes morais são conceitualmente incapazes de delinquir.”[23]
Também para Welzel “toda culpabilidade é culpabilidade de vontade. Somente o que o homem faz com vontade pode ser censurado como culpabilidade. Seus dons e predisposições – tudo o que o homem é em si mesmo – podem ser mais ou menos valiosos (portanto, podem ser também valorizados), mas somente o que disso faz ou como os empregou, em comparação com o que teria podido fazer deles ou como poderia ter empregado, somente isto pode ser computado como ´mérito` ou ser censurado como ´culpabilidade`.”[24]
Para Muñoz Conde “a capacidade (...) de culpabilidade (...) exige a presença de uma vontade, entendida esta como faculdade psíquica da pessoa individual, que não existe na pessoa jurídica, mero ente fictício ao qual o direito atribui capacidade para outros efeitos distintos do penal.”[25]
Também Cezar Bitencourt aduz com propriedade que “a capacidade (...) de culpabilidade exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter.”[26] João Mestieri também afirma que “a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo por ser incapaz (...) de culpabilidade.”[27] Idêntico pensamento extrai-se da obra de Régis Prado: “a pessoa jurídica é incapaz de culpabilidade (...). A culpabilidade penal como juízo de censura pessoal pela realização do injusto típico só pode ser endereçada a um indivíduo (culpabilidade da vontade). Como juízo ético-jurídico de reprovação, ou mesmo de motivação normal pela norma, somente pode ter como objeto a conduta humana livre.”[28]
Aliás, Magalhães Noronha já advertia que a responsabilidade penal da pessoa jurídica seria “inconciliável com a culpabilidade, que é psicológico-normativa, o que impede sua atribuição à pessoa jurídica.”[29]
A propósito, "ser administrador ou sócio de uma empresa não torna uma pessoa responsável por crime ambiental cometido pela companhia. Isso porque a responsabilidade penal ambiental não é objetiva e, sim, subjetiva. Com base nesse entendimento, a 3ª Vara Penal de Barcarena (PA) absolveu quatro diretores de duas acusações de crimes ambientais feitas pelo Ministério Público.As duas ações foram movidas por causa de vazamentos de caulim, um minério usado na produção de papel, cerâmica e tintas que deixa a água esbranquiçada. No primeiro caso, que aconteceu em 2011, a liberação da substância foi motivada por um incêndio provocado por pessoas que até hoje não foram identificadas. Já o segunda vazamento foi em 2012 e liberação da substância deveu-se a uma queda de energia no distrito industrial de Barcarena, onde fica a empresa. O MP apresentou denúncia contra a empresa e os diretores alegando que eles foram omissos e teriam cometeram os crimes dos artigos 54 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) na forma do artigo 13, parágrafo 2º, do Código Penal. O órgão argumentou que, por se tratar de questão ambiental, não seria necessário provar a intenção de prejudicar (animus laedendi) dos réus. Com isso, pediu a condenação deles.Ao julgar o caso, o juiz Roberto Andrés Itzcovich, destacou que a responsabilidade penal ambiental busca reparação ou compensação pelo dano causado. Por entender que isso tem mais relação com a pessoa jurídica, ele negou a responsabilização objetiva dos executivos.De acordo com Itzcovich, não houve conduta dos diretores — nem ativa nem omissiva — que contribuísse para os vazamentos de caulim. E, “sem conduta materialmente típica, crime não há”, afirmou o juiz. Para fortalecer o seu entendimento, ele citou uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (Habeas Corpus 34.957) que isenta administradores de culpa por danos ambientais quando não for possível provar o nexo causal.O fato de as pessoas figurarem como sócios de uma pessoa jurídica "não autoriza a instauração de processo criminal por crime contra o meio-ambiente se não restar minimamente comprovado o vínculo com a conduta criminosa, sob pena de se reconhecer impropriamente a responsabilidade penal objetiva”, diz a ementa do caso. Dessa forma, o juiz absolveu os diretores das acusações feitas pelo MP. No entanto, ele ordenou o prosseguimento do processo com relação à pessoa jurídica da empresa." (Fonte: Livia Scocuglia e Sérgio Rodas - Revista Consultor Jurídico, 9 de dezembro de 2014, 18h41).
A possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica também afronta as teorias da pena, seja quando se fala em prevenção geral ou especial, ou mesmo quando se trata da ressocialização.
Ademais, há o princípio da personalidade da pena, segundo o qual nenhuma pena passará da pessoa do condenado (art. 5.º, XLV da CF), que impede a aplicação de uma pena a um ente coletivo composto por várias pessoas, muitas delas absolutamente alheias à prática do fato criminoso. Seria mesmo a consagração da odiosa responsabilidade penal objetiva, de triste lembrança.
Valemo-nos mais uma vez do ensinamento de Magalhães Noronha, segundo o qual “a especialização e a individualização da pena, como também a finalidade de reajustamento, tudo isso impraticável com a pessoa jurídica, pois requer a existência do elemento biossociológico.”[30]
Aplicar uma sanção penal a uma corporação significa sancionar penalmente todos os seus membros, ferindo de morte o citado princípio constitucionalmente previsto. Neste sentido, Mourullo afirma que “la capacidad (...) de pena presupone la existência de una voluntad en términos psicológico-naturalísticos, que, por definición, es patrimônio exclusivo de las personas individuales.”[31]
Também Bettiol conclui que “a pessoa jurídica não pode sofrer sob a execução de uma pena, assim como sofre a pessoa física que cometeu o delito”[32], assim como Wessels, para quem “as pessoas jurídicas e associações (...) também não podem ser infligidas com pena criminal.”[33]
Para a solução da questão da responsabilidade penal da pessoa jurídica, poderíamos adotar o que o jurista alemão Winfried Hassemer chama de Direito de Intervenção, uma mescla entre o tradicional Direito Penal e o Direito Administrativo; este novo Direito excluiria as sanções tipicamente penais com garantias menores que o Direito Penal tradicional. Segundo ele, “o Direito Penal não serve para resolver os problemas típicos da tutela ambiental”, tendo nesta seara, simplesmente, um “caráter simbólico, cujo verdadeiro préstimo redunda em desobrigar os poderes públicos de perseguirem uma política de proteção do ambiente efetiva”, pelo que sugere “a criação de um novo ramo de direito. Para o efeito, escolhemos a designação de Direito de Intervenção (Interventionsrecht), mas poderemos designá-lo da forma que mais nos aprouver”, cujas principais características seriam: o seu caráter fundamentalmente preventivo, de imputação de responsabilidades coletivas, sanções rigorosas, com impossibilidade de admitir penas de privação de liberdade, atuação global e não casuística, atuação subsidiária do Direito Penal, como, por exemplo, para dar cobertura a determinadas medidas de proteção ambiental e, por fim, a previsão de soluções inovadoras, que garantam a obrigação de minimizar os danos.”[34] Seria, portanto, um Direito sancionador, sem os princípios, regras e postulados do Direito Penal das pessoas físicas. (Grifos no original).
Efetivamente, como afirma Ana Carolina Carlos de Oliveira, “o Direito de Intervenção serve de alternativa para conferir uniformidade ao conjunto sancionador fora do Direito Penal, e também para promover um processo de redução das fronteiras dessa área.” [35]
Aliás, desde há muito que os penalistas propõem a aplicação de medidas administrativas quando se está diante de ilícitos cometidos por intermédio de pessoas jurídicas.
Bettiol, por exemplo, afirmava que a pessoa jurídica poderia “ser passível de medidas diversas da pena, de medidas de caráter administrativo (dissolução da sociedade, sanções pecuniárias, etc., mas, em nenhum caso de penas verdadeiras.”[36]
Também Zaffaroni assevera que as leis “que sancionan a personas jurídicas, (...) no hacen más que conceder facultades administrativas al juez penal, o sea que las sanciones no son penas ni medidas de seguridad, sino consecuencias administrativas de las conductas de los órganos de las personas jurídicas.”[37]
Muñoz Conde defende “medidas civis ou administrativas que possam aplicar-se à pessoa jurídica como tal (dissolução, multa, proibição de exercer determinadas atividades, etc.)”[38], assim como Cerezo Mir ao afirmar que “sólo será posible aplicarles medidas de seguridad de carácter administrativo.”[39]
Questão que se mostra tormentosa no caso brasileiro diz respeito a uma suposta autorização constitucional para a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Com efeito, prescreve o art. 173, § 5.º da Constituição Federal que “a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.” (grifo nosso)
Por este dispositivo fica bem clara a impossibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, ao se afirmar que ela ficará sujeita, tão-somente, a punições compatíveis com a sua natureza, ressalvando a possibilidade de responsabilidade individual (que poderá ser de índole penal) dos seus dirigentes.
Já o art. 225, § 3.º estabelece que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.” (grifo nosso)
Será que neste dispositivo, realmente, a Constituição Federal autorizou a responsabilidade penal da pessoa jurídica? Entendemos que não. Observa-se que a Constituição utilizou dois vocábulos diferentes: conduta, em primeiro lugar, e atividade em segundo lugar. Ora, conduta implica comportamento humano, de uma pessoa física; a atividade é que pode ser atribuída a uma pessoa jurídica. Na sequência refere-se às pessoas físicas em um primeiro momento e, depois, às pessoas jurídicas; por fim, indica sanções penais e depois sanções administrativas.
Com esta redação, fica patente que o legislador constituinte não autorizou atribuir-se sanção penal a pessoas jurídicas, mas apenas sanções administrativas por suas atividades. Às pessoas físicas reservou-se sanção penal, em razão de suas condutas. Resumindo:
1)conduta = pessoa física = sanção penal
2)atividade = pessoa jurídica = sanção administrativa
Neste sentido, trazemos à colação o entendimento de um importante e respeitado constitucionalista brasileiro, J. Cretella Jr. Este autor, comentando o primeiro dos artigos acima transcritos afirma que “o dispositivo é bem claro ao fixar, de início, os dois tipos de responsabilidades, a responsabilidade individual, civil ou criminal, dos dirigentes, pessoas físicas, e a responsabilidade civil, tão-só, da pessoa jurídica.” Para o autor, “não há a menor dúvida, porém, de que a fonte primeira ou remota – o ato gerador, a causa determinante – da responsabilidade, pública ou privada, é sempre, em última análise, o homem. (...) Daí o dizer-se que pessoa e responsabilidade são noções intimamente ligadas. A todo momento a ação (ou a omissão) humana pode empenhar a responsabilidade. ´Agir` ou ´deixar de agir` é traço típico do homem, da pessoa física, que se expande ou se retrai no mundo, influindo estas duas atitudes, ação ou omissão, sobre as relações jurídicas, de modo positivo ou negativo.”[40]
Ainda com Cretella Jr., pode-se afirmar que a responsabilidade penal “abrange uma área muito mais restrita, visto compreender apenas as pessoas físicas, os indivíduos, sabendo-se que as pessoas jurídicas, privadas ou públicas, são inimputáveis”, pois a responsabilidade da empresa “será necessariamente patrimonial, a única compatível com sua natureza de pessoa jurídica, irresponsável penalmente, mas responsável em decorrência dos atos praticados contra a ordem econômica, a ordem financeira e a economia popular.”[41]
Este constitucionalista, valendo-se das lições de Waline, na obra Droit Administratif, 9.ª ed., 1963, p. 786, afirma que “a pessoa jurídica, metafisicamente, não tem vontade; o direito lhe atribui a vontade de uma pessoa física ou de conjunto de pessoas físicas que concordam em representá-la, mas em definitivo sempre uma ou várias pessoas físicas é que cometeram o ato prejudicial imputado à pessoa jurídica.”[42]
Mesmo quando comenta o art. 225, § 3.º da Carta Magna, Cretella Jr. afirma incisivamente que a “Constituição de 1988, em momento algum, aceita o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Por exemplo, o art. 225, § 3.º, colocando, de um lado, a pessoa física, a quem se aplica o termo conduta, de outro lado, a pessoa jurídica, à qual se aplica o vocábulo atividade, cominando aos atos lesivos das primeiras, sanções penais e às atividades das segundas, sanções administrativas e econômicas, independentemente da obrigação de reparação dos danos causados.”[43]
Outro importante constitucionalista brasileiro, Ives Gandra da Silva Martins, após afirmar que “o constituinte não exclui qualquer tipo de pessoa, sendo puníveis tanto as físicas quanto as jurídicas”, adverte que as pessoas jurídicas serão punidas “pecuniariamente, e seus diretores, se tipificada a infração, penalmente.”[44]
Daí entendermos que o art. 3.º da Lei 9.605/98 que prevê a responsabilidade penal da pessoa jurídica não deve ser aplicado, pois, apesar de norma vigente formalmente (porque aprovada pelo Poder Legislativo e promulgada pelo Poder Executivo), é substancialmente inválida, tendo em vista a incompatibilidade material com a Constituição Federal. Relembremos que “não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária (gesetzeskonformen Verfassunsinterpretation). O contrário é que se faz.”[45]
Uma coisa é lei vigente, outra é lei válida.
Vejamos a lição de Miguel Reale: “Validade formal ou vigência é, em suma, uma propriedade que diz respeito à competência dos órgãos e aos processos de produção e reconhecimento do Direito no plano normativo.”[46]
Nem toda lei vigente é válida e só a lei válida e que esteja em vigor deve ser observada pelos cidadãos e operadores de Direito.[47] Como afirma Enrique Bacigalupo, “la validez de los textos y de las interpretaciones de los mismos dependerá de su compatibilidad con principios superiores. De esta manera, la interpretación de la ley penal depende de la interpretación de la Constitución.”[48]
A propósito, Ferrajoli:
“Para que una norma exista o esté en vigor es suficiente que satisfaga las condiciones de validez formal, condiciones que hacen referencia a las formas y los procedimientos de acto normativo, así como a la competência del órgano de que emana. Para que sea válida se necesita por el contrario que satisfaga también las condiciones de validez sustancial, que se refieren a su contenido, o sea, a su significado.” Para o autor, “las condiciones sustanciales de la validez, y de manera especial las de la validez constitucional, consisten normalmente en el respeto de valores – como la igualdad, la libertad, las garantias de los derechos de los ciudadanos.”[49]
Ainda que admitíssemos a constitucionalidade de tal responsabilidade penal, o certo é que esbarraríamos em um obstáculo que me parece intransponível: a Lei 9.605/98 não estabeleceu qualquer regra procedimental ou processual a respeito de um processo criminal em relação a uma pessoa jurídica, o que torna absolutamente impossível a instauração e o desenvolvimento válido de uma ação penal nestes termos.
Evidentemente que o nosso Código de Processo Penal é um diploma dirigido a estabelecer regras para um processo penal cujos acusados são pessoas físicas; todos os seus dispositivos assim foram pensados.
Ora, se as normas penais não podem ser aplicadas diretamente, pois o Direito Penal não é meio de coação direta, evidentemente que seria indispensável estabelecer-se o respectivo procedimento, adequado a esta nova realidade.
Observa-se que em França, ao contrário do Brasil, procurou-se adaptar as regras processuais penais à possibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Naquele país, promulgou-se a Lei 92-1336, de 16 de dezembro de 1992, a chamada Lei de Adaptação, acrescentando ao Code de Procédure Pénale o Título XVIII, sob a seguinte epígrafe: “De la poursuite, de l´instruction et du jugement des infractions commises par les personnes morales.”
O legislador francês neste título tratou de estabelecer as regras atinentes à acusação, instrução e julgamento das pessoas jurídicas. Assim, por exemplo, o art. 706-42 trata da questão relativa à competência; já o art. 706-43 trata de estabelecer que a ação pública é exercida contra o ente moral na pessoa do seu representante legal à l´époque dês poursuites.
O art. 706-44 estabelece que “o representante da pessoa jurídica processada não pode, nessa qualidade, ser objeto de nenhuma medida de coação, a não ser aquela aplicável à testemunha.” O art. 706-45 prevê uma série de obrigações às quais pode le juge d´instruction submeter a pessoa jurídica.
Esta mesma Lei de Adaptação modificou os arts. 555, 557 e 559 do Code de Procédure Pénale. O art. 557, por exemplo, afirma que o domicílio da pessoa moral se entende como sendo o do local de sua sede.
Em nosso País nada disso ocorreu, muito pelo contrário, razão pela qual o Professor René Ariel Dotti afirmou com muita propriedade que “os corifeus e os propagandistas da capacidade criminal das pessoas coletivas ainda não se dedicaram ao trabalho de analisar as consequências desse projeto no quadro do processo penal.”[50]
Vejamos, por exemplo, algumas dificuldades que existem quando se trata de um processo penal cujo acusado é uma pessoa jurídica.
1) A quem serão dirigidos os atos processuais de cientificação: citação, intimação e notificação? Ao Presidente da empresa ou a quaisquer dos seus diretores? Note-se que em França o art. 555 foi modificado para estabelecer expressamente o regramento das citações da pessoa jurídica.
2) Quem será interrogado? Teria ele o direito ao silêncio e o direito de não autoincriminação? Sabe-se que o interrogado tem também o direito indiscutível de não se autoincriminar e o de não fazer prova contra si mesmo, em conformidade com o art. 8.º, 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Já em 1960, o grande Serrano Alves escrevia uma monografia com o título O Direito de Calar (Rio de Janeiro, Editora Fretas Bastos S/A), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Nesta obra, adverte o autor que “há no homem um território indevassável que se chama consciência. Desta, só ele, apenas ele pode dispor. Sua invasão, portanto, ainda que pela autoridade constituída, seja a que pretexto for e por que processo for, é sempre atentado, é sempre ignomínia, é torpe sacrilégio.” (p. 151).
3) E a confissão? Será admissível a confissão pelo interrogando (seja ele quem for) em prejuízo, por exemplo, dos demais sócios da pessoa jurídica? A confissão prejudicará os demais membros da corporação?
4) E a revelia? Será possível a decretação da revelia pela ausência injustificada de quem deveria comparecer para o interrogatório? E os demais membros do ente coletivo ficarão prejudicados? É possível a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, no caso de citação editalícia?
5) E as regras sobre competência? Caso, por exemplo, não seja conhecido o lugar da infração, é possível aplicar-se o art. 72 do Código de Processo Penal? E se uma das pessoas físicas também denunciadas (em coautoria com a pessoa jurídica) tiver prerrogativa de função, aplicar-se-ão as regras de continência (art. 78, III, do Código de Processo Penal c/c o Enunciado 704 do Supremo Tribunal Federal)? A pessoa jurídica seria julgada pelo respectivo Tribunal ou haveria a separação do processo (art. 80, CPP)?
6) Quem teria interesse e legitimidade para recorrer em nome da pessoa jurídica? Apenas aquele que foi interrogado ou qualquer membro do ente coletivo que se sentiu prejudicado com a sentença?
7) Se se tratar de uma infração penal de menor potencial ofensivo, lavra-se o Termo Circunstanciado ou instaura-se o Inquérito Policial? Também nesta hipótese quem poderá em nome da empresa, fazer a composição civil dos danos? E a transação penal?
8) E na suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95) quem poderá aceitar a proposta do Ministério Público?
Evidentemente que são indagações cujas respostas não encontraremos no Código de Processo Penal. Valer-se de outros diplomas legais, como o Código de Processo Civil e mesmo a Consolidação das Leis do Trabalho, parece-nos um exercício hermenêutico de altíssimo risco, tendo em vista a especificidade de cada ramo do Direito.
É preciso atentar para a lição de Rogério Lauria Tucci quando afirma que o estudo do processo penal precisa ser “colocado e conduzido de modo completamente autônomo”; caso contrário, corremos o risco de “civilizar o processo penal”, pois, “já de há muito tempo, o processo penal não é mais a ´Cinderela` do Direito Processual, tal como o cognominou Carnelutti.” Diz ele que já é hora “de visualizar o Direito Processual Penal com ótica própria, conferindo-lhe a dignidade científica que faz por merecer!”[51]
Como uma possível solução, podemos apontar, por analogia, o art. 26 da Lei nº. 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, in verbis: “A pessoa jurídica será representada no processo administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social. § 1o As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens. § 2o A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.”
A respeito destas questões de natureza processual, em conversa informal com o Professor Cristiano Chaves de Farias, civilista baiano de escol[52], foram aventadas algumas questões, a saber:
1) E se o sócio representante da pessoa jurídica confessar, os outros poderão tentar elidir os efeitos da confissão? Entendo que não, pois aquele tinha poderes para confessar em nome da pessoa jurídica, inclusive, escolhido, presume-se, pela maioria dos sócios. Ele sequer teria legitimidade para apelar em caso de condenação, pois o réu é a pessoa jurídica e não um sócio individualmente considerado (art. 577, CPP).
2) Poder-se-ia admitir a desconsideração da personalidade jurídica (Código Civil, art. 50) se o sócio representante da empresa confessar indevidamente ou deixar de aceitar uma transação penal vantajosa para a pessoa jurídica, com base no abuso da personalidade jurídica (disregard doctrine, disregard entity legal ou disregar theory)? Aqui, entendo não ser aplicável o disposto no art. 50 do Código Civil ao processo penal, pois se trata de outra situação jurídica (James Goldschmidt); ademais, faltaria competência ao Juiz do processo criminal para aplicar tal dispositivo. No caso da transação penal, o sócio também não teria legitimidade para apelar (cfr. art. 76, c/c art. 82 da Lei 9.099/95). Já a sentença que homologa a composição civil é irrecorrível (art. 74, Lei 9.099/95), ressalvados, evidentemente, os embargos declaratórios (Barbosa Moreira e Calmon de Passos).
3) Se a empresa estiver em recuperação judicial, quem irá representá-la em juízo para todos os fins anteriormente problematizados neste trabalho? Para mim, neste caso, será o administrador judicial, conforme art. 22 da Lei de Falências.
Concordo com o ilustrado Professor quando lembra “que o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a responsabilização civil do sócio por excesso de poderes na representação de uma pessoa jurídica. Bem por isso, todos esses excessos comentados poderão ser resolvidos civilmente.”
Outrossim, lembra Cristiano Chaves de Farias “a teoria dos atos ultra vires, segundo a qual os atos praticados por um sócio (mesmo com excesso de poder) que despertam a confiança de um terceiro, geram responsabilidade para a empresa. Assim sendo, se houver celebração de transação penal ou composição civil dos danos pelo sócio, mesmo que havendo excesso de poder, a empresa responderá perante o interessado (Ministério Público ou particular), com direito regressivo contra o sócio que exacerbou.”
Já podemos apontar na jurisprudência brasileira algum movimento contra a responsabilização penal da pessoa jurídica, nada obstante ainda ser um movimento incipiente. Assim, podemos citar:
“Habeas Corpus – Pessoa Jurídica – Responsabilização Penal – Ato do representante. O art. 225, § 3.º da Constituição Federal e o art. 3.º da Lei 9.605/98 não autorizam a responsabilização penal da pessoajurídica por ato próprio, mas, tão-somente, por ato de seu representante legal, contratual ou de seu órgão colegiado. Ordem concedida.” (TJRS, HC 70018196808, 4.ª Câm. Crim., j. 08.03.2007, v.u., rel. Des. Gaspar Marques Batista).
Veja-se este trecho do voto:
“(...) A exemplo de outros julgados e rogando máxima vênia aos eminentes colegas da Câmara, persisto na tese da incapacidade da pessoa jurídica para operar ação delituosa, porquanto é o indivíduo o único sujeito ativo possível em Direito Penal. A Lei 9.605/98 traz uma norma de conteúdo anômalo, introduzindo no Direito Penal brasileiro, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, que deve ser condenada, em função da ação delituosa de seu representante. Inclusive, se o representante legal não for condenado, a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente, porque aí não houve o cometimento da infração. Oportuno frisar que, em matéria de coautoria, adotamos a chamada teoria monista, existindo um crime e várias ações. Ocorre que a Lei 9.605/98, lavrada por ambientalistas e não por juristas, não trata de concurso de agentes, porque não há várias ações, mas somente uma – a ação do representante da pessoa jurídica. Também não se pode falar em participação, porque esta é uma ação acessória, secundária, apresentando, usualmente, apenamento menor. Portanto, não há codelinquência entre o representante e a pessoa jurídica, ocorrendo, na verdade, responsabilização penal indireta. Em decorrência do comportamento do representante legal, a pessoa jurídica é responsabilizada penalmente. Assim, o réu, figura do âmbito processual, deve corresponder a autor ou autores da ação delituosa, ou aqueles que concorrem de modo secundário para a realização da conduta ilícita. O art. 3.º da Lei 9.605/98 não contém expressões como ré ou parte no processo criminal, refere apenas que a pessoa jurídica pode ser responsabilizada penalmente. De outra banda, questão pertinente diz respeito ao dolo, porque o fato, para ser típico, além de corresponder a todas as elementares da norma incriminadora, deve ser praticado com dolo, isto é, vontade dirigida à realização da conduta típica. Só é doloso o comportamento do autor da ação, não se concebendo dolos superpostos do representante e da pessoa jurídica representada, uma vez que a vontade do ente coletivo é externada pelo agir de seu representante. Nesse contexto, diante das ponderações supra, estou concedendo a Ordem para trancar a Ação Penal, em face da incapacidade penal ativa da pessoa jurídica. Por tais fundamentos, voto pela concessão do writ.”
“Responsabilidade penal da pessoa jurídica – Inconstitucionalidade do art. 3.º da Lei 9.605/98 – Ocorrência – Mostra-se inconstitucional o art. 3.º da Lei 9.605/98, no que toca à responsabilidade penal da pessoa jurídica. (...)" (TACrimSP, MS 349.440/8, 3.ª Câm., rel. Fábio Gouvêa, RJTACrim 48/3682).
“Crime contra o meio ambiente – Denúncia ofertada contra pessoa jurídica – Ente que não pode ser responsabilizado pela prática de crime – Ausência de vontade própria – Recurso provido. A pessoa jurídica, porque desprovida de vontade própria, sendo mero instrumento de seus sócios ou prepostos, não pode figurar como sujeito ativo de crime, pois a responsabilidade objetiva não está prevista na legislação penal vigente (ReCrim 03.003801-9, j. 01.04.2003, rel. Maurílio Moreira Leite). (...) 1. Preliminarmente, é necessária a análise da possibilidade de aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas. Nos países filiados à cultura romano-germânica vige o princípio societas delinquere non potest, o que significa dizer que é inadmissível responsabilizar-se penalmente as pessoas jurídicas, restando a previsão de sanções administrativas ou civis. De outro lado, nos países anglo-saxões e naqueles que receberam suas influências, vigora o princípio da common law, que admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica. No Brasil, a Constituição de 1988 admitiu a responsabilidade penal da pessoa jurídica quando tratou da responsabilização por delitos contra a ordem econômica (art. 173, § 5.º) e de crimes contra o meio ambiente (225, § 3.º), a seguir transcritos: Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em Lei. (...)§ 5.º A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (...) § 3.º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, Ney de Barros Bello Filho e Flávio Dino de Castro e Costa sustentam que ‘a maioria da doutrina brasileira é assente em afirmar que a Constituição de 1988 introduziu no ordenamento jurídico o princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica, rompendo com o célebre brocardo latino societas delinquere non potest’. Entre os constitucionalistas, José Afonso da Silva reconhece o avanço do texto normativo e comunga com a fixação da responsabilidade dos entes morais todas as vezes que houver agressão, quer à ordem econômica, quer ao meio ambiente. Igualmente, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins concordam em seus Comentários à Constituição do Brasil que o Texto Maior reconheceu a responsabilidade criminal da pessoa jurídica. (..) Igualmente, Sérgio Salomão Shecaira sustenta que, ´não obstante existirem opiniões contrárias – de juristas de nomeada – , a nosso juízo não há dúvida de que a Constituição estabeleceu a responsabilidade penal da pessoa jurídica’ (Crimes e Infrações Administrativas Ambientais, 2.ª ed., Brasília Jurídica, 2001, p. 51). Entre os doutrinadores contrários à responsabilização das pessoas jurídicas, estão René Ariel Dotti e Luiz Vicente Cernicchiaro. Para o primeiro, haveria violação aos princípios da isonomia, personalidade e humanização das sanções, porque, a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação. Além disso, quando a Constituição Federal trata da aplicação da pena, refere-se sempre à conduta humana. Para ele, ‘o texto constitucional deve ser compreendido com a possibilidade tanto da pessoa natural como da pessoa jurídica de responderem civil e administrativamente. Porém, a responsabilidade penal continua sendo de natureza e de caráter estritamente pessoal’ (René Ariel Dotti, Meio Ambiente e Proteção Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, v. 317, p. 200). Luiz Vicente Cernicchiaro, por sua vez, ensina que, face à inexistência de vontade própria, torna-se inviável aplicar os princípios da responsabilidade pessoal e da culpabilidade (norteadores do Direito Penal moderno) às pessoas jurídicas, pois são atributos inerentes às pessoas físicas (vide Direito Penal na Constituição, 3ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995), razão pela qual a pessoa jurídica não pode ser responsabilizada penalmente. Neste sentido, este egrégio Tribunal de Justiça já decidiu: ‘Crime ambiental – Denúncia nos termos do art. 3.º da Lei 9.605/98 rejeitada em relação à pessoa jurídica – Prosseguimento quanto à pessoa física responsável – Recurso da acusação pleiteando o reconhecimento da responsabilidade penal da pessoa jurídica – Ausência de precedentes jurisprudenciais – Orientação doutrinária – Observância dos princípios da pessoalidade da pena e da irresponsabilidade criminal da pessoa jurídica vigentes no ordenamento jurídico pátrio – Recurso desprovido’ (ReCrim 00.004656-6, de Descanso, rel. Juiz Torres Marques, j. 12.09.2000). Também: ‘Apelação criminal – Artigo 54 da Lei 9.605/98 – Denúncia oferecida contra pessoa jurídica – Impossibilidade de a pessoa jurídica figurar no polo passivo da ação penal – Recurso provido para excluí-la da relação processual’ (ApCrim 02.011726-4, de Itajaí, rel. Des. Maurílio Moreira Leite, j. 25.02.2003). E, deste relator: ‘Ação penal – Crime contra o meio ambiente – Rejeição da denúncia – Responsabilidade penal da pessoa jurídica – Impossibilidade – Precedente deste tribunal – Recurso ministerial não provido’ (ReCrim 02.023129-6, de Videira, j. 18.02.2003). Dessarte, de tudo o que aqui ficou dito, portanto, e, data vênia do entendimento contrário do colendo Superior Tribunal de Justiça, conclui-se que o instituto da responsabilidade penal da pessoa jurídica não pode ser introduzido no sistema brasileiro sem que este, especificamente, passe por uma adaptação, pois está solidamente alicerçado em postulados que não o admitem. Isto não significa dizer que as pessoas coletivas não devam sofrer punição pelos atos assim considerados delituosos no exercício de suas atividades. Devem ser punidas, sim, mormente em nosso tempo, onde os novos tipos de criminalidade surgem, onde as vítimas não são, no mais das vezes, determinadas, mas, sim, determináveis. Porém, os meios sancionatórios não devem estar previstos, necessariamente, na esfera penal, pois o Direito Penal atua sempre como ultima ratio, o que não é desejável na solução desses conflitos de massa provocados pelas pessoas coletivas. Para isso, mais eficaz e efetivo seria um Direito Administrativo Sancionador, a par de outras sanções civis cumuláveis, conforme a gravidade do caso. A solução, assim, é a rejeição da denúncia no tocante a C. C. G. Ltda., nos termos do art. 43, inc. III, primeira parte, do Código de Processo Penal.[artigo revogado pela Lei 11.719/2008]” (TJSC, ApCrim 2006.015166-6, rel. Des. Irineu João da Silva).
O Supremo Tribunal Federal irá analisar, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 473045, a responsabilização penal de pessoa jurídica. Esse recurso foi interposto pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MP-SC) contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJ-SC), que manteve o entendimento de que a responsabilização penal da pessoa jurídica não está prevista nos princípios penais extraídos da Constituição Federal. O relator do caso é o ministro Cezar Peluso. O MP-SC denunciou a empresa A.P.V.V. Ltda. e seu proprietário pela suposta prática dos crimes de poluição por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos. A empresa foi denunciada, também, pela realização de obras sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes (arts. 54, § 2.º, V, e 60 da Lei 9.605/98). A Justiça de Videira, município de Santa Catarina, recebeu a denúncia apenas em relação ao proprietário da empresa, rejeitando-a em relação ao autoposto, por entender que a responsabilização penal da pessoa jurídica não está respaldada pelos princípios penais da Constituição Federal. Dessa decisão, o MP recorreu ao TJ, que a manteve. No Recurso Extraordinário, interposto pelo MP-SC, foi apontado descumprimento do art. 225, § 3.º, da Constituição Federal, quando prevê que as condutas prejudiciais ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas. O Ministério Público ressaltou a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica em crime ambiental, com a observância de princípios penais constitucionais assim como do princípio da proteção ao meio ambiente. Fonte: STF.
Comentando uma decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região 8.ª T. – AP 0010064-78.2005.404.7200 j. 21.08.2012 (public. 12.09.2012 Cadastro IBCCRIM 2830 e que admitiu a Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica), Davi de Paiva Costa Tangerino, anotou o seguinte: “Cuida-se de ação penal deflagrada contra P.R.F. e sua empregadora P.P.C. pela alegada prática de pesca de manjubas mediante rede de lance em local proibido (interior da Baía Sul, em Palhoça), em desacordo com a Portaria Sudepe 466/72 (art. 34 da Lei 9.605/1998). Como já contasse com mais de 70 anos o acusado P.R.F. quando da audiência de instrução e julgamento, constatada a prescrição, extinguiu-se a punibilidade do referido delito. Ao cabo da instrução, sobreveio sentença julgando extinta a ação penal, sem resolução do mérito (art. 267, IV, do CPC, por analogia), eis que não se poderia prosseguir na persecução penal, dada a teoria da dupla imputação, apenas contra a pessoa jurídica. Em sede de apelação, o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região cassou a decisão, determinando a confecção de outra, afastado aquele fundamento legal.Segundo o Desembargador Relator, estar-se-ia diante de hard case (invocando Dworkin e Alexy), cuja solução “não prescinde de uma releitura dos fundamentos da responsabilidade penal das pessoas jurídicas e reconstrução da jurisprudência até então dominante a partir da teoria dos sistemas autopoiéticos” (Luhmann) “e dos princípios constitucionais que regem a proteção do ambiente”. Desde logo, fixa ser um pressuposto do acórdão que as sociedades podem cometer delitos, expungido o aforismo societas delinquere non potest. Invoca o mandado constitucional de criminalização dos crimes contra o meio ambiente, de onde decorreria que “ao hermeneuta/aplicador do direito [cabe] criar o sentido na norma que esteja adaptado a esse princípio, e não o contrário, da regra ao princípio”. O sentido adviria da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) (Feldens/Sarlet), de sorte que, reconhecida a dignidade constitucional do meio ambiente, mais do que mero direito subjetivo, não se poderia olvidar da dimensão objetiva como imperativos de tutela, “que exigem igualmente a atuação ativa do Estado, protegendo – e assim fomentando – a realização efetiva dos direitos fundamentais mediante prescrições”. Parte-se, então, à análise dogmático-penal: a culpabilidade, conceito a demandar “releitura compreensiva [...] para acomodar as práticas delitivas perpetradas pelas pessoas jurídicas”. A principal dimensão a revisitar-se seria a de categorias dogmáticas tradicionais, como aquelas “que consideram o homem como único centro de imputação de condutas reprováveis”. Aponta a contribuição Tiedemann (defeito de organização), Hirsch (culpabilidade corporativa), criticando-as por serem modelos de responsabilidade por ato de terceiro (vicariante).Com base em Silvina Bacigalupo sustenta que o sujeito “não é uma questão óbvia, porém requer uma determinação conceitual que depende do ponto de partida hermenêutico e pré-jurídico sem o qual não é possível nenhuma construção dogmática”, concluindo, com Jara-Díez, que aos olhos do Direito tanto pessoas físicas como jurídicas são pessoas jurídicas. Para diferenciá-las quanto à sujeição ao Direito Penal, o autor espanhol sustenta um conceito construtivista de culpabilidade, próprio para sistemas autopoiéticos, um tertium genus entre as teorias organicistas e as de responsabilidade vicária: “o novo marco dos sistemas sociais não se compõe de ações individuais, mas de comunicações imputáveis como ações, de forma que o sujeito tradicional do delito, ‘o indivíduo, é suplantado pelo sistema e suas comunicações com o mundo circundante’” (BACIGALUPO, Silvina. El problema del sujeto del derecho penal: la responsabilidad penal de las personas jurídicas. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais. v.1, n.1, set./dez. 2000. p. 307). A comunicação interna corporis da pessoa jurídica seria um complexo concatenado de decisões (Jara-Díez).De toda sorte, tratar-se-ia de aplicar o funcionalismo normativista, giro conceitual calcado no pensamento de Jakobs, “para o qual, em apertadíssima síntese, ‘o direito penal (como subsistema social) tem a função primordial de proteger a norma (e só indiretamente tutelaria os bens jurídicos mais fundamentais)’ [...]”.Com a devida vênia, o funcionalismo sistêmico, na particular leitura da Jakobs e de seus discípulos (Jara-Díez e Bacigalupo) estão fora de lugar na discussão na dupla imputação.Em primeiro lugar, o questio juris que interessa à resolução do caso é: extinta a punibilidade da pessoa física, pode-se incriminar a jurídica? Longe de ser um hard case, os precedentes pretorianos que firmaram os contornos da responsabilidade penal da pessoa jurídica inseriram a “dupla imputação” como decorrência lógica da impossibilidade de a pessoa jurídica agir por ela mesma. Assim, não se pode acusar (imputar) uma pessoa jurídica sem dizer qual a pessoa física que lhe permitiu agir. O mesmo não vale para a imposição de sanção: tendo sido acusadas pessoa jurídica e pessoa física, respeitou-se o critério de dupla imputação, não se contaminando esse requisito por eventual prescrição.O acórdão, em verdade, faz uma defesa da responsabilidade penal da pessoa jurídica, com argumentos sólidos e importantes. Despiciendos, porém, para a resolução da quaestio. Ao fazê-lo, todavia, abre espaço para que os críticos também se posicionem quanto a esse libelo. Discordo, desde logo, de seu ponto de partida: o Direito Penal não pode ter por missão garantir a validade das normas, conforme consolidada crítica às posições de Jakobs, sob pena de esvaziar-se de garantias o Direito Penal e transformá-lo em puro arbítrio estatal. Da mesma maneira, a atraente aplicação da proporcionalidade ao Direito Penal ignora (ou dá muito pouco importância) a uma variável decisiva: a vedação de Untermassverbot não pode ser confundida com um mandato de incriminação. Não há nenhuma demonstração de qualquer natureza de que um direito fundamental é fomentado ou protegido por meio do Direito Penal. Assim, a sinonímia “proteger” = “incriminar” é uma falácia (confira-se O direito penal ambiental e normas administrativas, de Helena Regina Lobo da Costa, Boletim do IBCCRIM, n. 155, p. 18-19, out. 2005).Registre-se que não se trata de se opor a uma culpabilidade das pessoas jurídicas (confira-se, a propósito, meu A responsabilidade penal da pessoa jurídica para além da velha questão de sua constitucionalidade, Boletim do IBCCRIM, n. 218). Antes, porém, de se desnaturar uma garantia constitucional em nome da incriminação da mera violação à norma, verdadeiro Direito Penal máximo, mister se lembrar de que se entende como Direito Penal democrático a tutela de bens jurídicos fundamentais (fragmentariedade + ultima ratio), com observância da legalidade, da ofensividade, da culpabilidade e da humanidade. Como nomear um Direito Penal eficientista, sem bens jurídicos (norma não é bem) e sem culpabilidade?” (Boletim do IBCCrim, Ano 21, nº. 243 – Fevereiro de 2013 – ISSN – 3661, p. 1630).
Diante do exposto, à luz da doutrina estrangeira e brasileira, concluímos que, efetivamente, não estamos autorizados pela Constituição Federal a processar criminalmente um ente coletivo.
Sem nenhuma dúvida, como nota David Baigún, “son muchas las razones que históricamente se suman en contra de la recepción de la responsabilidad penal de las personas jurídicas; no sólo en el ámbito normativo sino también en el sociológico y político.”[53]
Tampouco se presta o Código de Processo Penal para disciplinar o procedimento da respectiva ação penal e esta lacuna não pode (e não deve) ser suprida por normas estranhas ao objeto do Direito Processual Penal. É chegada a hora de afastarmos (doutrina e jurisprudência pátrias) definitivamente o art. 3.º da Lei dos Crimes Ambientais, responsabilizando criminalmente os indivíduos supostamente autores de delitos ambientais, deixando para a pessoa jurídica apenas sanções extrapenais.
Para René Garraud, jurista da França, berço, na Europa, da responsabilidade penal da pessoa jurídica, “é evidente que não se pode pensar em declarar as universitatis bonoum penalmente responsáveis”, pois “as pessoas morais são bem menos pessoas que meios ou instrumentos de que se servem as pessoas verdadeiras.” Afirma o jurista francês que “a responsabilidade penal ou coletiva do ser moral é uma ficção; o que é verdadeira é a responsabilidade individual de cada um dos seus membros.” Adverte Garraud que “o Direito Criminal não admite ficções porque acima das ficções vivem e agem os indivíduos, e é sobre eles somente que recai a incidência da pena.” Assim, conclui o mestre: “de duas coisas uma com efeito: ou todos os membros da corporação cometem o delito, e todos devem ser atingidos por uma pena distinta e proporcional à culpabilidade de cada um; ou alguns dentre eles somente estão culpados, e se é justo puni-los, seria injusto punir os membros da corporação que ao fato foram estranhos.”[54]
A propósito, vale a pena transcrever, apesar de longo, o artigo de Paulo César Busato e Alex Wilson Duarte Ferreira ("Projeto de Código Penal em Debate - Imputação da pessoa jurídica no projeto do novo CP"), publicado no Boletim - 269 – ABRIL/2015 do INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS:
"O presente artigo trata da tentativa equivocada de delimitação da atribuição da responsabilidade criminal da pessoa jurídica, inserta no art. 41 e seus parágrafos do Projeto do novo Código Penal.Extrai-se do dispositivo legal que restou nebulosa a opção do texto final do projeto sobre a escolha entre autorresponsabilidade ou heterorresponsabilidade.A falta de adoção clara acerca de um dos modelos é insatisfatória, vez que a heterorresponsabilidade, tanto em viés dogmático quanto político-criminal, remete constantemente a soluções injustas. Já a autorresponsabilidade, apesar da necessidade de análise de critérios muito específicos como a ação e a culpabilidade, é reconhecida pela doutrina como a modalidade mais adequada.Não fosse só isso, o caput do art. 41 traz diversas restrições à delimitação da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Dele se evidencia que não são todas as pessoas jurídicas que podem arcar com responsabilidade criminal, apenas as de direito privado e ainda, somente aquelas cujas condutas delitivas sejam praticadas em desfavor da Administração Pública, da ordem econômica, do sistema financeiro e do meio ambiente. E ainda, a punição só incidiria quando a infração se perfectibilizasse em função de decisão de seu representante legal ou contratual, ou do seu órgão colegiado. Por fim, a prática delituosa da pessoa jurídica só seria passível de sanção se verificado que se deu no interesse ou em benefício da sua entidade.O modelo adotado vem na contramão das atuais e importantes transformações por que passa o sistema penal no mundo no tocante à imputação das pessoas jurídicas, notadamente os Códigos Penais dos países organizados conforme o Civil Law, com destaque para o Código Penal francês de 1992 e países como Holanda, Bélgica e Dinamarca, o Código Penal Suíço de 2003, a Islândia e a Noruega.A ausência de efetividade da responsabilização da pessoa jurídica no texto legal ora tratado em virtude das exceções retrorreferidas culmina em desequilíbrio evidente do sistema geral de atribuição de responsabilidade entre as pessoas físicas e jurídicas, configurando mera responsabilização simbólica.A limitação da responsabilidade penal às pessoas jurídicas de direito privado redunda na imediata exclusão de pessoas jurídicas de direito público e na escolha de imputação pela identidade formal da pessoa jurídica. Entretanto, é sabido que, assim como se evidencia quanto à pessoa física e ao funcionário público, se a pessoa jurídica de direito público é capaz de praticar um crime, a empresa pública também o é, questão que poderia ser resolvida mediante a adoção de previsão de delitos especiais ou próprios, como se logrou fazer quanto às pessoas físicas no atual Código Penal.Apesar do entendimento doutrinário parcial referente à possibilidade de eventual dupla vitimização da sociedade com a responsabilização criminal da pessoa jurídica, parece-nos mais adequado efetuar a imputação também ao agente público pelo menos por duas razões de ordem criminológica: muitos dos fatos mais graves perpetrados por pessoas jurídicas envolvem organismos públicos e o castigo a qualquer ente público – mesmo o funcionário pessoa física – provoca um prejuízo, ao menos momentâneo, à coletividade e isso jamais obstou sua penalização.Seria mais lógico e correto, portanto, ter-se adotado previsão de crimes especiais ou próprios atribuíveis às pessoas jurídicas de direito público, principalmente por se tratarem daquelas que deveriam servir de ícones de condutas exemplares.Outrossim, a definição da responsabilidade penal das pessoas jurídicas sob a ótica formal determina a adoção do conceito previsto no Código Civil, abrindo espaço para a atuação ilícita por parte de empresas não dotadas de personalidade jurídica prevista na legislação pátria, como as estrangeiras que aqui atuam, por exemplo, ou ainda as que atuam de maneira informal, fato impeditivo da sua formalização jurídica.Logo, a seletividade da opção legislativa quanto às pessoas jurídicas desagua em evidente Direito Penal de autor.O projeto traz também uma restrição ratione materiae, pois admite a incriminação das pessoas jurídicas por crimes praticados contra a Administração Pública, a ordem econômica, o sistema financeiro e o meio ambiente.Na exposição de motivos do projeto consta que a comissão se utilizou do rol inserto no art. 225, § 3.º e, indiretamente, do art. 173, § 5.º, ambos da Constituição Federal, ao qual acresceram a incriminação referente aos delitos em desfavor da Administração Pública.A menção ao texto constitucional, porém, não se reveste do pretenso embasamento para o rol incluído no projeto e muito menos para referendar o ilusório acréscimo dos delitos praticados contra a Administração Pública. Aliás, acaba por configurar exatamente o contrário, pois restringe a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.Por conseguinte, bastaria às pessoas jurídicas que direcionassem as suas atuações criminosas para a obtenção de resultados diversos dos contidos no texto de lei, ou que suas defesas se valessem de argumento no sentido da não realização da conduta como aflitiva dos bens jurídicos apontados no projeto de reforma, para que se isentasse da correta imputação.E mais, a falta de responsabilização das pessoas jurídicas pelas condutas não previstas na legislação de forma expressa pode redundar na consumação de práticas com consequências ainda mais depreciativas e passíveis de total inviabilidade de imputação das pessoas jurídicas mediante o reconhecimento da consunção, como, por exemplo, em um caso de poluição praticado por pessoa jurídica (art. 54 da Lei 9.605, de 12.02.1998) que resulte em diversas mortes. Neste caso, seria mais vantajoso à pessoa jurídica alegar a ocorrência de homicídios mediante o emprego da poluição como meio de consumação das mortes.Obviamente, nem todos os delitos podem ser praticados pelas pessoas jurídicas. Todavia, é suficiente que o Código mencione a responsabilização destas como sendo os crimes realizados por elas, deixando a conceituação desta realização para os operadores do direito que não o legislador (hermeneutas, intérpretes e juristas).Poder-se-ia também indicar a responsabilidade individual das pessoas jurídicas, independentemente das pessoas físicas que são suas gerentes, dirigentes ou componentes, pela consumação dos crimes compatíveis com a sua natureza e capacidade de realização, igualmente deixando-se o trabalho de delimitação em aberto, abrangendo-se assim as possibilidades atuais e futuras de consumação delitiva.No que tange à necessidade para a responsabilização da pessoa jurídica de que o delito tenha sido praticado “por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado”, esta se mostra desnecessária e pouco acertada.Desnecessária se realmente pretende um sistema de autorresponsabilidade. Neste, a responsabilidade penal da pessoa jurídica existe de forma desvinculada das decisões eventualmente tomadas pelo seu representante legal ou contratual. E este, por sua vez, conta com responsabilidade pessoal independente quanto a qualquer contribuição à prática do crime, o que se aplica também aos representantes do órgão colegiado, que responderão na medida das suas contribuições à consumação delituosa.A previsão se mostra pouco acertada no aspecto dogmático, pois há flagrante distorção da responsabilidade penal no dispositivo legal, se considerarmos que o delito se perfectibiliza pela vontade.Há no projeto a presunção de que a decisão norteadora da vontade da ação realizadora do crime pertence aos sócios ou representantes da pessoa jurídica, redundando no isolamento da hipótese de que esta conta com vontade diferente daqueles. Dessa forma, não seria a vontade da pessoa jurídica que se realizaria e também não é ela que produz fisicamente o resultado.Não havendo, portanto, produção de resultado no aspecto ontológico e nem em relação à expressão da vontade pela pessoa jurídica, vez que não tomou a decisão, ela se torna em mero instrumento do delito. A prática delitiva capaz de gerar a responsabilidade penal na qualidade de autor oriunda do domínio da vontade seria o caso de autoria mediata. Entretanto, seria necessário que se admitisse que a pessoa jurídica utilizada como instrumento não conta com vontade própria, fato que resultaria na inviabilidade de imputação da condição de autor à pessoa jurídica em qualquer modalidade.Logo, extirpar a vontade da pessoa jurídica com a manutenção da ideia de decisão acerca do delito pertencente ao seu representante legal ou contratual significa imputar erroneamente responsabilidade penal objetiva. Contrariamente, se a decisão estampasse a vontade da pessoa jurídica, afastando a das pessoas físicas componentes do colegiado de onde se originou, tornar-se-ia impossível atribuir juridicamente o resultado aos dirigentes.Assim, considerando-se o dispositivo como regulador de uma decisão plasmada em uma ação, seria o caso de atribuição de responsabilidade por fato de outrem, o que realmente conduz a uma violação básica do princípio da culpabilidade.O art. 41 do Projeto restringe ainda mais a responsabilidade penal das pessoas jurídicas ao exigir, para reconhecê-la, que o delito seja praticado em benefício ou no interesse dela.Não se define, precisamente, o que quer dizer o interesse ou benefício da entidade. É um resultado específico derivado do crime perpetrado ou um especial fim de agir exigido para a configuração de cada crime das pessoas jurídicas? Nos dois casos, a exigência não faz sentido.Como resultado específico do delito, trata-se de exigir um exaurimento para o reconhecimento de uma consumação, já que um resultado desvalioso para quaisquer vítimas pode ser produzido sem correspondente benefício para a pessoa jurídica, como, por exemplo, a poluição. Trata-se de uma opção pelo pior, pois justamente o crime que a ninguém beneficia, apenas prejudica a vítima ou as vítimas, não alcançará também a pessoa jurídica, restringindo-se às pessoas físicas.Como um especial fim de agir exigível nos tipos perpetrados por pessoas jurídicas, o propósito de benefício faz menos sentido ainda, pois passaria a dever ser demonstrado caso a caso, criando uma limitação de ordem subjetiva para a definição do autor e não do fato!Naturalmente, isso conduz a uma distinção da imputação conforme o autor, vale dizer, a um direito penal de autor, permitindo a incrível situação em uma hipotética situação de concurso de pessoas físicas e jurídicas, que o mesmo fato criminoso existiu para as primeiras e não existiu para as segundas!O § 1 .o do art. 41 propõe a absoluta independência entre a responsabilização de pessoas físicas que atuam em concurso com a pessoa jurídica, pretendendo fazer crer que se adota um modelo de autorresponsabilidade.A opção seria louvável e correta, afinal, a heterorresponsabilidade, que sempre contou com certa acolhida em nossa jurisprudência, derivada de um inesgotável ranço finalista, consiste em clara violação do princípio de culpabilidade, onde se atribui a alguém culpa alheia.Por outro lado, a ilusão oferecida pelo § 1.o logo se desvanece, pois, cotejada a disposição com o texto do caput, fica evidenciada uma contradição: neste se afirma a dependência da responsabilidade da pessoa jurídica de uma decisão de seu representante, dirigente ou órgão colegiado e naquele que as responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas são independentes. Ora, resulta óbvio que se a decisão que se plasma na realização criminosa é dos dirigentes, dela depende a responsabilidade das pessoas jurídicas, pelo que, não há independência e, se há independência, não se pode condicionar a realização do crime por pessoa jurídica à decisão de quem quer que seja.Para compatibilizar as disposições é necessário admitir que a decisão dos representantes não foi a realizada concretamente no fato. O problema é que, assim, a decisão referida passa à condição de cogitatio ou, quando muito , ato preparatório, em ambos os casos, completamente impune e, portanto, dispensável e perde sentido o texto do caput.Na verdade, o que se percebe é que o projeto vende uma ideia de autorresponsabilidade que, no fundo, não propõe e parece sequer saber como fazê-lo.Outra questão é a referência a que as pessoas físicas podem ser autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato praticado pelas pessoas jurídicas.Ora, se for uma situação de coautoria, de uma divisão de tarefas em domínio funcional do fato ou se a pessoa física é um partícipe da conduta realizada pela pessoa jurídica, não há qualquer problema, mas com relação às formas de participação de pessoa jurídica parece-nos que a instigação e especialmente a indução resultam extremamente problemáticas.Finalmente, cumpre referir ao § 3.o do art. 41.O início do texto repete de forma literal o art. 38, que regula o concurso de pessoas e, com isso, torna-se completamente inútil e redundante. O final do texto aponta para um elenco de pessoas, a saber, o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário, colocando-os todos em uma inusitada e equivocada posição de garantidor . Cria-se uma presunção de responsabilidade em razão do cargo, porque determina que qualquer destas pessoas que tome conhecimento de uma conduta criminosa de outrem esteja obrigada a impedi-la, se tem condições de atuar para evitá-la.Se o crime é cometido por outra pessoa – não se especifica sequer se estamos falando de pessoa jurídica ou física – as pessoas em questão se convertem automaticamente em garantes da evitação do resultado, desde que tenham condições de agir nesse sentido.O texto simplesmente converte as pessoas indicadas em partícipes obrigatórios do fato de outrem, independentemente de qualquer vínculo subjetivo, em nova violação do princípio de culpabilidade.O equívoco está em tratar do tema aqui no plano específico da responsabilidade de pessoas jurídicas. É mais que óbvio que, sistematicamente, a questão da responsabilidade como garante – em comissão por omissão – deve estar ajustada às regras gerais do Código.Enfim, parece claro que o projeto pretende inaugurar a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, mas o desenho adotado pelo texto aponta para defeitos gravíssimos: restringe onde não deveria restringir a responsabilidade das pessoas jurídicas, distende onde não deveria distender, criando responsabilidades por fatos de outrem, discrimina segundo critérios de um direito penal de autor que, ao final, segue privilegiando justamente o que se propõe castigar: as condutas delitivas das corporações.Sobre o castigo, aliás, seria necessário também uma crítica às previsões do projeto, a qual reservamos para uma próxima ocasião."
Por fim, transcrevemos uma parábola feita por Eugenio Raúl Zaffaroni, em conferência realizada no Brasil, no Guarujá, no dia 16 de setembro de 2001:
“O açougueiro era um homem que tinha uma loja de carnes, com facas, facões e todas essas coisas necessárias para o seu comércio. Um certo dia, alguém fez uma brincadeira e pôs vários cartazes de outras empresas na porta do açougue, onde se lia: ´Banco do Brasil`, ´Agência de Viagens`, ´Consultório Médico`, ´Farmácia`. O açougueiro, então, começou a ser visitado por outros fregueses que lhe pediam pacotes turísticos para a Nova Zelândia, queriam depositar dinheiro em uma conta, queixavam-se de dor de estômago, etc. O açougueiro, sensatamente, respondia: ´Não sei, sou um simples açougueiro. Você tem que ir para um outro lugar, consultar outras pessoas`. E os fregueses, então, se enojavam: ´Como é que você está oferecendo um serviço, têm cartazes em sua loja que oferecem algo e depois não presta o serviço oferecido?`. Então, o açougueiro começou a enlouquecer e a pensar que realmente ele era capaz de vender pacotes para a Nova Zelândia, fazer o trabalho de um bancário, resolver problemas de estômago, etc. E, mais tarde, tornando-se ainda mais louco,e começou a fazer todas aquelas coisas que ele não podia e não tinha capacidade para fazer, e os clientes acabavam com buracos no estômago, outros perdendo todas as suas economias, etc. Mas, se os fregueses também ficassem loucos e passassem novamente a procurá-lo e a repetir as mesmas coisas, o açougueiro acabaria realmente convencido que tinha a responsabilidade de resolver tudo.” Concluiu, então, o Mestre portenho e Juiz da Suprema Corte Argentina: “Bem, eu acho que isto aconteceu e continua acontecendo com o penalista. Colocam-nos responsabilidade em tudo.” (Tradução livre).[55]