Função social do contrato

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Resumo:


  • O contrato serve como instrumento para realizar operações econômicas e satisfazer necessidades humanas através da aquisição de bens e serviços.

  • A visão econômica do contrato o aproxima da produção e do consumo, sendo essencial para a circulação de riquezas na sociedade.

  • A autonomia dos contratantes permite pactuar o que consideram melhor, respeitando sempre as normas legais, evitando comportamentos contratuais que possam gerar consequências indesejáveis para as partes ou para a sociedade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O Código Civil de 2002 inovou ao introduzir o princípio da função social do contrato, refletindo a preocupação de que os contratos não afetem apenas as partes envolvidas, mas também a sociedade, dada a natureza prevalente de contratos de adesão e virtuais onde as cláusulas não são discutidas, apenas aceitas.

1. INTRODUÇÃO

A principal função do contrato é servir de instrumento as operações econômicas e veículo de realização da vontade humana para satisfazer suas necessidades por meio de aquisição de bens e serviços.

Em uma visão econômica o contrato é um meio que aproxima a produção do consumo, ou seja, os pólos extremos da relação capitalista. A partir dos ensinamentos de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA (2004, p. 11) vemos que mesmo nos regimes socialistas o contrato era utilizado com uma função social e econômica. Podemos, assim, concluir que o contrato é um instrumento necessário para a relação humana consistente à circulação de riquezas. Em sua acepção jurídica o contrato é um negócio jurídico onde uma ou mais pessoas celebram acordos de vontade, a fim de regulamentar seus interesses.

A maioria das relações humanas é contratual. Contratamos a todo momento, ao acender as luzes, abrir uma torneira, telefonar, usar meios de transporte coletivo, os pãezinhos que vão surtir o café da manhã são adquiridos por meio de um contrato de compra e venda; enfim vivemos em um mundo contratual. Na mesma linha é o pensamento de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA (2004, p. 11) “Qualquer individuo – sem distinção de classe, de padrão econômico, de grau de instrução – contrata. O mundo moderno é o mundo do contrato”.

Os contratantes possuem autonomia para pactuarem o que acharem melhor, respeitando sempre as normas legais, todavia determinados comportamentos humanos traduzidos contratualmente, sem qualquer freio ou limites, geram conseqüências indesejáveis para uma das partes, para ambas ou para a sociedade.

Quando o interesse privado do contratante não necessariamente conflui com o interesse contratual útil da sociedade e havendo colisão entre estes interesses deverá prevalecer o interesse da sociedade sobre os interesses do particular, este fator é chamado também de dirigismo contratual, “o Estado intervém no negócio privado e ainda uma vez amputa no indivíduo aquilo que confere ao social” (CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, 2004, p. 147).

Hoje para melhor compreensão dos contratos em espécie, regulados pelo Código Civil, como relações jurídicas obrigacionais, é necessário um estudo sobre as cláusulas gerais dos contratos contidas nos arts 421 e 422 do estatuto, com emprego em todas as espécies de contratos. Estas cláusulas gerais articulam um direito contratual reestruturado para servir ao principio de socialidade, um dos pilares básicos do direito moderno.

Norteado pela eticidade e socialidade, o Código Civil consignou como cláusula geral em seus dispositivos a função social do contrato o que vem modificando paulatinamente a forma como as pessoas realizam os negócios jurídicos contratuais. Esta foi uma das modificações mais temidas e festejadas trazida pelo novel Código Civil.


2. CONCEITUANDO CONTRATO

Antes de analisarmos os aspectos da função social do contrato, interessante relembrar o conceito de contrato, bem como sua natureza jurídica. O Código Civil de 2002, não conceitua o contrato, apenas define todas as figuras contratuais, mas sem dizer o que é contrato. Devemos entender o contrato como a principal fonte de obrigações e como o principal instituto do direito privado.

No dizer de MARIA HELENA DINIZ (2007, p.14), contrato “é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”.

Entre os clássicos, nos doutos ensinamentos de ORLANDO GOMES (0000, p.000), o contrato é “o negócio jurídico bilateral ou plurilateral, que sujeita as partes à observância de conduta idônea à satisfação dos interesses que a regularam”.

Assim, podemos dizer que o contrato é uma regulamentação entre as partes de um negócio jurídico tendo como requisitos as regras dispostas no art. 104, I, II e III do Código Civil.


3. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E BOA-FÉ OBJETIVA

Muito se fala hoje da boa-fé objetiva e da função social do contrato como os grandes princípios norteadores da nova teoria contratual, sem dúvida a teoria moderna dos contratos finca suas raízes nestes princípios que se encontram nos artigos 421 e 422 do Código Civil. A função social dos contratos no artigo 421 e a boa-fé objetiva no artigo 422. Justamente os dois primeiros artigos que abrem o livro de teoria geral dos contratos.

Neste artigo não pretendemos tratar do principio da boa-fé objetiva, por isso, faremos rapidamente uma distinção entre os dois princípios, para evitar que persistam dúvidas sobre o tema.

Primeiramente deve se deixar claro que a função social do contrato e a boa-fé objetiva são princípios distintos. Nos dizeres de NELSON ROSENVALD (in PELUSO, César [coord]. 2007, p.312] a boa-fé objetiva é endógena e a função social do contrato exógena. Ou seja, o princípio da boa-fé objetiva diz respeito às partes, a boa-fé liga os contratantes, enquanto que a função social do contrato diz respeito a relação dos contratantes com a sociedade, isto é, quais os efeitos que o contrato produz entre os terceiros que não figuram na relação contratual, enquanto que a boa-fé deve diz respeito aos efeitos que o contrato produz entre contratantes.

Este é o mesmo entendimento de JORGE CESA FERREIRA SILVA (2004, p.119), para o doutrinador autonomia privada e a função social do contrato integram normas exógenas, pois “são imperativos do ordenamento para a relação”, já a boa-fé objetiva e o equilíbrio contratual têm uma origem endógena, pois são voltadas a disciplinar as condutas dos contratantes dentro da relação. Ainda nesse sentido temos os doutos ensinamentos de HUMBERTO THEODORO JUNIOR (2004, p. 31) de que “a função social do contrato consiste em abrandar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes). Já o principio da boa-fé objetiva fica restrito ao relacionamento travado entre os próprios sujeitos do negócio jurídico”.


4. EXEGESE DO ARTIGO 421 DO CÓDIGO CIVIL

O artigo 421 do Código Civil, que traz a função social do contrato, é o primeiro artigo do livro da teoria geral dos contratos, e tem a seguinte redação:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Um dos pontos fundamentais, para conferir aos contratos estrutura e finalidade social, é tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a Liberdade de Contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do Contrato, envolvendo os valores primordiais da boa-fé e da probidade.1

CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA (2004, p. 12) leciona que ao ser publicado o projeto do código o artigo estabelecia que “a liberdade de contratar somente pode ser exercida em razão e nos limites da função social do co contrato” O que fez com o autor tecesse diversas criticas a redação original, pois em seu entender com aquela redação seria criado um novo requisito de validade para o contrato e por conseqüência surgiria uma insegurança jurídica, pois o artigo concederia ao juiz , fosse ele reacionário ou socializante, o poder de julgar ao seu critério as relações contratuais.

As criticas do autor foram acolhidas pelos autores do projeto e a redação modificada. Com a nova redação, entende CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA (2004, p. 13), que a função social do contrato passou a servir de limite a autonomia da vontade “quando tal autonomia esteja em confronto com o interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato obrigatório”.

Para parte da doutrina o artigo 421 contém uma imprecisão técnica, vejamos conclusão de CAROLINA XAVIER DA SILVEIRA MOREIRA, em sua tese de mestrado, a este respeito,

O artigo 421 do Código Civil contém uma imprecisão técnica, pois se refere à liberdade de contratar (firmar ou não o contrato) em vez de liberdade contratual (liberdade de dispor sobre o conteúdo contratual). O Projeto de lei 6960/2002 pretende alterar a redação do artigo 421, para que conste liberdade contratual em vez e liberdade de contratar e para que seja suprimida a expressão “em razão”, ficando desta forma a nova redação desse artigo: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Todavia, a supressão do termo “em razão” não se coaduna com o espírito da nova lei e nem tampouco com a Constituição Federal, tendo em vista que a dignidade da pessoa humana e a justiça social alcançaram posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro, não teria qualquer sentido a alteração proposta pelo Deputado Ricardo Fiúza, porque ainda eivada de valores constantes do Código revogado (individualidade e patrimonialismo), incompatíveis com os valores da nova codificação.2

JUDITH MARTINS-COSTA, assim interpreta o artigo 421 do Código Civil

A expressão “em razão da” indica, concomitantemente: a) que a função social do contrato integra, constitutivamente, o modo de exercício do direito subjetivo (liberdade contratual); b) que é o seu fundamento, assim reconhecendo-se que toda e qualquer relação contratual possui, em graus diversos, duas distintas dimensões: uma, intersubjetiva, relacionando as partes entre si); outra, trans-subjetiva, ligando as partes a terceiros determinados ou indeterminados. Assim, a função social não opera apenas como um limite externo, é também um elemento integrativo do campo de função da autonomia privada no domínio da liberdade contratual. A partir dessa concepção percebe-se decorrerem várias eficácias próprias ao art. 421, que podem ser repartidas nos dois grandes grupos acima sinalizados, quais sejam, as eficácias intersubjetivas e eficácias trans-subjetivas.3

Entende GERSON BRANCO (2007, p.225-227) que o artigo 421 do Código Civil dá ao juiz uma faculdade para intervir no contrato, mas limita sua atuação a um interesse social reconhecido em lei, na jurisprudência ou nos costumes, para o autor o “juiz na resolução de problemas concretos, deve buscar os fins contratuais e confronta-los com comportamentos sociais típicos ou com os desvios sociais típicos”, concluindo seu pensamento o autor esclarece que determinados padrões sociais se transformam em normas jurídicas pela formulação de normas no caso concreto a partir da aplicação das cláusulas gerais no caso concreto. Faz o autor uma critica a expressão “em razão” utilizada pelo legislador na redação do artigo 421: “a expressão não subordina a liberdade de contratar à socialidade, apenas condiciona uma à outra (...) formam um todo que é o contrato”. De igual forma entende JUDITH MARTINS-COSTA (2002, p.159-160) afirmando que a “função social do contrato posta no artigo 421 (...) carrega uma função substantiva de elemento integrante do conceito de contrato”.

No entender de JORGE CESA FERREIRA DA SILVA (2004, p. 127) a função social do contrato inclui como elemento de atenção jurídica os terceiros não membros da relação jurídica contratual, mas ainda sendo, um conceito em formação, receia-se que se transforme em um veículo de insegurança das relações contratuais. Para demonstrar a necessidade de serem criados critérios de atuação da função social do contrato nas relações obrigacionais, cita um exemplo ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul, em que o estado concedeu a uma determinada montadora diversos incentivos fiscais para que esta ali se instalasse, parte da sociedade teceu varias criticas no sentido de que o contrato deveria ser assinado porque traria diversos benefícios sociais para o estado, já a outra parte da sociedade dizia que o contrato iria trazer prejuízos sociais para o estado. Assim, ambos tinham certa razão, e utilizavam-se dos mesmos argumentos para apoiar e ou não a assinatura do contrato: as conseqüências sociais dele decorrentes. Finalizando seu raciocínio, o autor, diz que um mesmo critério pode dar ensenjo a opiniões divergentes, o que demonstra a necessidade de se criar um conceito jurídico da função social do contrato.

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5. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

Antes de ingressarmos no estudo da operatividade da função social do contrato, faz-se necessário um estudo do contexto histórico do princípio. O principio da função social do contrato reflete um conjunto de acontecimentos históricos havidos no final do século XIX, entre todas as mudanças é conveniente chamar-se a atenção para a concepção jurídico-política chamada Welfare State 4 . O tema função social do contrato não é novo na doutrina, diversos doutrinadores já trataram sobre o tema, na doutrina pátria Clovis Bevilaqua, autor do Código Civil de 1916, apesar de não tê-la inserido do Código, em sua obra “Direito das obrigações”, inicia a analise do contrato através de sua função social. Ocorre que não se preocuparam em projetar a eficácia deste principio. Com o surgimento do Welfare State, uma serie de preocupações jurídico-sociais foram tomando corpo. Em relação ao direito obrigacional surgiu uma nova concepção de contrato, uma concepção social, que eleva a importância da sociedade na hora de contratar. É possível afirmar sem sombra de dúvida que o advento do Código de Defesa do Consumidor é o ponto culminante dessa nova teoria contratual, mas não é possível deixar de reconhecer que a tendência já existe há algum tempo, inclusive no ordenamento brasileiro. CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA (2004, p. 13) cita como exemplos do intervencionismo estatal os contratos de locação e os contratos de trabalho, que devem seguir uma grande gama de regras impostas pelo Estado, a fim de proteger uma das partes da relação.

O Código Civil de 2002, trouxe a função social do contrato como um dos princípios norteadores das novas relações obrigacionais, exigindo, assim, que a doutrina e a jurisprudência criem um conceito e defina os planos de atuação deste principio.

Mas o que é a função social do contrato? Inicialmente podemos conceituar a função social do contrato como um princípio que visa regular a relação dos contratantes com a sociedade. Deste conceito decorre um questionamento: como o contrato que é uma relação jurídica obrigacional resultante de um acordo de vontades entre duas ou mais pessoas pode atingir a um terceiro estranho a relação obrigacional formada pelos contratantes? Em outras palavras, pode o contrato satisfazer as vontades das partes contratantes e ao mesmo tempo ofender aos interesses sociais?

São estas perguntas que devem ser respondidas para que possamos descobrir o que é o principio da função social e qual a sua aplicabilidade.

Em nossa monografia de pesquisa de iniciação cientifica estabelecemos o seguinte conceito para função social do contrato “função social do contrato é uma cláusula geral de ordem pública, com a finalidade de proteger o instituto do contrato para que este atinja seu fim econômico-social, de circulação de riquezas e manutenção da ordem social, com observância dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade”. 5

O princípio da função social do contrato determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles, pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.

O legislador ao instituir o principio da função social do contrato partiu da premissa de que o contrato não interessa apenas às partes contratantes. A sociedade, ou seja, o meio social em que se pactuam os contratos, influenciam e são influenciados pelas relações contratuais. O ser humano se vivesse sozinho teria uma liberdade ilimitada, poderia apropriar-se do que estivesse ao seu alcance, dispor ou destruir coisas, apenas limitando-se pelo seu querer. No entanto ao fazer a opção pela vida em sociedade, deve haver uma sujeição aos limites desta opção. A vida em sociedade impõe limites ao cidadão. A pessoa no exercício de sua liberdade individual deve harmonizá-la com a liberdade dos demais membros da sociedade, isto é uma implicação da vida em sociedade. As liberdades individual e social devem coexistir harmonicamente. É nestes sentido que devemos entender que “a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato”, com efeito, a autonomia privada exercida através do contrato deve coexistir harmonicamente com os interesses da sociedade. Se assim não fosse, diz JORGE CESA FERREIRA DA SILVA (2004, p. 123) ‘”e adotássemos a idéia da liberdade individual no contrato, como força obrigatória, ele seria fonte geradora de anarquia social”.

Para melhor compreensão desta idéia vamos proceder um exame mais casuístico dos limites que a função social impõe aos contratos. Nos ensinamentos do ilustre mestre NELSON ROSENVALD (in PELUSO, César [coord]. 2007, p.312] no direito brasileiro a função social do contrato pode ser aplicada em três vertentes distintas: na primeira quando o contrato violar interesses metaindividuais, coletivos ou difusos; na segunda é a questão da tutela externa do crédito, ou seja, as relações creditícias atingirem um terceiro estranho ao contrato; e por fim quando um terceiro violar uma relação contratual em andamento, ou seja, em caso de terceiro ofensor ao contrato.

Alguns casos veiculados na mídia ajudam a verificar a aplicação da função social do contrato nas vertentes apresentadas. Para ilustrar a primeira vertente, ou seja, a aplicação da função social do contrato quando há lesão de interesses metaindividuais 6, faremos referência ao programa “No Limite” transmiido pela Rede Globo há alguns anos. Em um dado momento do programa os participantes tinham que se sujeitarem a “provas” que consistiam em ficar em túmulos com larvas, tudo conforme pactuado entre as partes.

Nesta situação, exemplificada no programa “No Limite”, estamos diante de um contrato que é ótimo para as partes, existe boa-fé objetiva entre os contratantes, existe lealdade entre os parceiros, mas é péssimo para a sociedade. O contrato firmado entre os participantes do programa e a Rede Globo apesar de satisfazer os desígnios das partes ofende os interesses coletivos, viola o principio da dignidade da pessoa humana, que é um direito constitucional inviolável e inegociável. Ao entrarem em caixões para serem soterrados com larvas, os participantes foram reduzidos a condições sub-humanas , violando o principio da dignidade da pessoa humana.

Outros exemplos de contratos que se encaixam no exemplo citado, são os contratos firmados entre empresas , que são ótimos para os parceiros, mas lesam interesses ambientais, interesses dos consumidores e ofendem muitas vezes a livre iniciativa, ou seja, contratos que satisfazem interesses individuais mais frustram interesses metaindividuais, frustram interesses difusos ou coletivos.

Na ocorrência desta situação é possível a sociedade através do ordenamento jurídico intervir na relação contratual e nulificar as cláusulas contratuais que violem o princípio da função social do contrato.

A segunda vertente de aplicação da função social do contrato está ligada a tutela externa do crédito, onde um terceiro que não tem relação com o contrato é atingido pela relação contratual. O que não é raro acontecer, podemos exemplificar com um contrato de seguro de automóvel, onde um particular contrata com uma seguradora a indenização de danos causados ao seu bem e a terceiros. Em caso de ocorrência de acidente em que o contratante causa danos a terceiros tem entendido a jurisprudência, em razão do principio da função social do contrato, que pode o terceiro ajuizar ação de indenização diretamente em face da seguradora e deixar fora da relação o causador do dano.

"Recurso especial. Ação de indenização diretamente proposta contra a seguradora. Legitimidade. 1. Pode a vítima em acidente de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora, sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro. 2. Recurso especial não conhecido."

(REsp 228.840/RS; DJ: 04/09/2000: Rel.p/ acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito).

Em julgado de um recurso especial (REsp 444.716/BA) a Ministra do Colendo Superior Tribunal de Justiça Nacy Adrighi entendeu que a visão preconizada neste precedente abraça o princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I, da CF), em que se assenta o princípio da função social do contrato, entendendo que a interpretação do contrato de seguro dentro desta perspectiva social autoriza e recomenda que a indenização prevista para reparar os danos causados pelo segurado a terceiro, seja por este diretamente reclamada da seguradora. Assim, sem se afrontar a liberdade contratual das partes - as quais quiseram estipular uma cobertura para a hipótese de danos a terceiros - maximiza-se a eficácia social do contrato com a simplificação dos meios jurídicos pelos quais o prejudicado pode haver a reparação que lhe é devida. Cumprem-se o princípio constitucional da solidariedade e garante-se a função social do contrato. Com conclui dizendo que acórdão recorrido em sede de recurso especial decidiu de forma harmônica com a jurisprudência do STJ.

Ainda sobre a tutela externa do credito, temos a vitima de um acidente de consumo, chamado por NELSON ROSENVALD (in PELUSO, César [coord]. 2007, p.313], de bystanter, ou seja, a situação em quem alguém adquire um automóvel e ao circular em via pública causa um dano a um terceiro em razão de seu automóvel apresentar um defeito de fábrica. O terceiro nada tem a ver com a relação de consumo, mas foi vitima de um acidente de consumo e em razão do principio da função social do contrato pode acionar o fabricante do veículo em busca de uma reparação do dano. Outra situação é a do comprador de um imóvel que paga suas prestações corretamente a instituição financeira e esta não repassa os créditos a construtora, em razão do principio da função social do contrato, a construtora está obrigada a entregar o imóvel ao comprador, pois este cumpriu suas obrigações, foi vitima do ato de um terceiro, e a construtora deve cobrar deste os valores não repassados a ela, ou deveria desde que cessaram os pagamentos avisar ao comprador para pagar diretamente a ela.

Nesta esteira o Centro de Estudos Judiciários do Conselho Federal de Justiça Federal editou o Enunciado nº 21, in verbis:

Enunciado nº 21 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421. do novo Código Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a tutela externa do crédito;

A terceira vertente de aplicação da função social do contrato no entendimento de NELSON ROSENVALD, é a do terceiro ofensor do contrato, ou seja, da mesma forma que o contrato pode vir a ofender terceiro, este também pode agir de forma que prejudique o contrato, é a sociedade que prejudica o contrato, uma terceira pessoa que gera condutas ilícitas lesivas ao contrato. O caso do cantor Zeca Pagodinho ilustra claramente esta situação, o conhecido caso em que se firmou um contrato publicitário com a agência de publicidade Fischer América para fazer um comercial de TV em favor da cerveja Nova Schin, e em determinado momento rompeu este contrato para firmar nova relação contratual com a agência África, a fim de realizar comercial de TV em favor da marca de cerveja Brahma. Assim, houve uma interferência ilícita de um terceiro na relação contratual entre ele e a primeira cervejaria, esta lesão possibilitaria que a contratante lesada responsabilizasse a outra cervejaria.

Vamos entender melhor. A liberdade de contratar é plena, não existem restrições ao ato de se relacionar, esta é uma regra geral, porém é sabido que os contratos interessam a sociedade, assim, os bons e os maus contratos repercutem socialmente, ambos os gêneros de contratos produzem efeitos sobre a sociedade, portando as partes devem observar a função social do contrato para estabelecerem pactos contratuais.

No caso do cantor Zeca Pagodinho, houve violação ao princípio social do contrato porque o Código Civil ao condicionar a liberdade de contratar à função social do contrato e ao impor aos contratantes o dever de lealdade, derivado da boa-fé, buscou proteger a vida em comunidade, ou seja, proteger o instituto do contrato. O contrato é um meio de circulação de riquezas e está presente na maioria das relações sociais. Ao firmar contrato com a segunda cervejaria, este contrato descumpriu sua função social, pois, para ser firmado teve que haver uma quebra do primeiro contrato, causando assim, prejuízo a um terceiro estranho. O segundo contrato firmado pelo cantor é legal, regulamenta a vontade das partes, mas atinge terceiro estranho a ele, sendo neste ponto violador da função social do contrato.

Estes exemplos tendem a mostrar a aplicação da função social do contrato na busca do efetivo cumprimento dos fins sociais e econômicos do contrato. Assim, enquanto os contratos forem úteis, ou seja, não forem objetos de violação da dignidade humana, no exemplo do “programa No Limite”; imporem o cumprimento dos deveres firmados, como no exemplo do contrato de seguro; e por fim no terceiro exemplo, os terceiros estranhos aos contratos não criarem situações para o seu descumprimento; a liberdade contratual será mantida, e se ocorrer um risco do contrato perder sua utilidade, o que ocorreu nos exemplos expostos, é através da função social do contrato que a utilidade será restabelecida.

O principio da função social do contrato por ter natureza de cláusula geral pode provocar incertezas quanto ao seu limite. Sua credibilidade e efetividade dependem da consolidação da jurisprudência, ou seja, da atuação do juiz na aplicação do principio. Pois, cabe a ele aplicar a cláusula geral, extraindo seu conteúdo, fazendo com que saia da esfera abstrata e seja concretizada. Portando, o juiz através da atividade jurisdicional integra o contrato, deixando sua função tradicional de substituição da vontade das partes. 7

Conforme demonstramos em nossa monografia muitos são os exemplos de aplicação jurisprudencial do principio da função social do contrato, demonstrando a elasticidade da aplicação do principio.

A jurisprudência tem aplicado a função social do contrato em busca da adequação do conteúdo do contrato, invocando-a para modificar o critério de fixação de índices de remuneração de financiamento de contratos bancários relacionados a mútuos e financiamentos, não em proteção ao hipossuficiente da relação contratual, mas sim para preservar o mercado de consumo.

Também a jurisprudência utilizou-se da função social do contrato para estabelecer a utilização adequada do contrato, obrigando as partes litigantes a utilizarem o contrato em adequação a sua função econômica-social.

Muitos precedentes tratam a função social sob o prisma da teoria da imprevisão, são precedentes em que o jurisdicionado recorre ao judiciário em busca da tutela jurisdicional que altere as cláusulas contratuais que tornaram-se inaplicáveis em decorrente de fatos ocorridos após o pacto contratual.

Diversos autores entendem que a função social do contrato tem seu conteúdo preenchido pelos demais princípios contratuais previstos no Código Civil, tais como a lesão, estado de perigo, onerosidade excessiva, simulação e fraude contra credores, sendo estes exemplos de aplicação da função social do contrato. Outros sustentam que sua aplicação não se restringe as hipóteses apresentadas. Por ser a função social do contrato uma cláusula geral, e como tal caracteriza por seu conteúdo vago e aberto, não podemos apresentar um rol de hipóteses taxativas de aplicação do principio. 8

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Sobre o autor
Ricardo Dionísio André da Rocha

Formado em direito pelo Centro Universitário FIEO – UNIFIEO em 2008, com especialização em direito civil e processual civil (2009 – UNIFIEO), também especializado em direito do trabalho e processual do trabalho (2013 – PUC/SP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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