O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da capital paulista, Fernando Haddad, introduziram um engodo na praça, travestido de carta de boas intenções. Para anular decisão do Supremo Tribunal Federal, que manda estados e municípios pagarem suas dívidas até 2020, redigiram uma proposta de emenda à Constituição que, pela intenção declarada, visa apenas viabilizar a ordem judicial. Mas, na realidade, inviabiliza a decisão e joga os pagamentos para o dia de São Nunca.
É fácil entender. O STF determinou o pagamento da dívida em 5 anos, a partir de janeiro de 2016, em parcelas mensais que correspondam a 1/60 avos do valor total, de forma a quitá-la totalmente até o final de 2020.
Para isso, naturalmente, o desembolso mensal deve ser elevado em relação ao que se pratica hoje. Mas, em vez de aumentar, o projeto apresentado reduz o comprometimento mensal. Possibilita o pagamento, até o final de 2020, pela média dos valores pagos entre 2010 a 2014, período em que os desembolsos foram substancialmente menores. Na prática, o fluxo de recursos cairá entre 30% e 40% em relação ao que hoje é depositado junto aos tribunais para liquidação de precatórios.
Se os valores pagos hoje são insuficientes para cumprir a decisão do STF, como seria possível diminui-los e, ainda assim, quitar a dívida até 2020? Tome-se como exemplo, para ilustrar, o caso do município e do Estado de São Paulo. Juntos, devem 40% do estoque nacional, estimado em R$ 97 bilhões pelo CNJ.
A prefeitura paga cerca de 110 milhões de reais ao mês. Para obedecer o STF, deveria triplicar essa quantia. No entanto, a PEC sugerida permite que se pague menos ainda do que se paga hoje.
O projeto incorpora algumas medidas que podem eventualmente auxiliar no financiamento da diferença dos recursos necessários para o cumprimento do prazo fixado pelo STF, entre elas a autorização para realização de operações de crédito. Mas não há na proposta encaminhada à Câmara nenhuma garantia de que tais financiamentos serão efetivamente levantados e empregados na amortização dos pagamentos mensais já a partir de 2016.
Pelo projeto, a única obrigação que Estados e Municípios teriam, a partir do ano que vem, seria desembolsar, mensalmente e até o final de 2020, a média do que pagaram nos últimos 5 anos, nem um centavo a mais. Não se prevê qualquer sanção caso a obrigação não seja cumprida.
A única razão que tem levado as entidades públicas a pagar precatórios nos últimos 5 anos, é o conjunto de sanções previsto no § 10 do art. 97-ADCT ― especialmente o sequestro de rendas ―, o que levou o STF a mantê-lo como garantia de que os débitos vencidos até 2020 serão, de fato, liquidados nesse prazo mediante amortizações mensais correspondentes ao valor total da dívida, inclusive dotando o CNJ de competência para fiscalizar os pagamentos junto aos tribunais.
Ao retirar as sanções fixadas pela Suprema Corte para garantir a quitação integral das parcelas mensais a partir de 2016, deixando ao exclusivo critério das próprias entidades públicas devedoras a utilização dos mecanismos de financiamento previstos, é bastante óbvio que o projeto outra coisa não pretende senão reeditar um novo calote contra os credores de precatórios, aplicando um verdadeiro bypass na decisão proferida pelo STF.
As condições impostas pelo STF para a liquidação dos débitos judiciais, resultantes do julgamento da modulação da decisão proferida na ADI 4.357, são perfeitamente factíveis, ainda mais considerando a implementação de medidas que não apenas reduzirão a dívida (autorização para compensação de dívidas tributárias com precatórios e realização de acordos com os credores com desconto máximo de 40%), como também propiciarão melhores condições de financiamento. Contudo, é fundamental que a respectiva proposta legislativa mantenha as sanções que, tal como fixadas pelo STF, garantam, já a partir de janeiro de 2016, a satisfação integral do pagamento, sob pena de sequestro da diferença mensal correspondente ao valor necessário à liquidação dos precatórios vencidos até o final do exercício de 2020.
Da forma que foi apresentado, única e exclusivamente para fugir dos critérios estabelecidos pelo STF na modulação da ADI 4.357, sem nenhuma obrigatoriedade na satisfação dos pagamentos integrais, o projeto dos prefeitos e governadores é uma ficção.
Merece o mais veemente repúdio da Ordem dos Advogados do Brasil, pois propiciará, na prática, entre 2016 (ano eleitoral) e 2020, uma substancial redução dos pagamentos mensais de precatórios, resultando, em pouquíssimo tempo, no aumento do estoque da dívida, criando uma situação ainda mais grave do que a atual, em total desarmonia com o julgamento da Suprema Corte.