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Multas "astreintes":

um instituto controvertido

Leia nesta página:

Sumário: 1. Introdução; 2. Histórico; 3. Natureza Jurídica do Instituto; 4. Particularidades, Controvérsias e Conclusões; 5. Referências Bibliográficas.


1.Introdução:

Cabe, neste intróito, apenas antecipar que o presente trabalho visa lançar de maneira sintética alguns fundamentos, a natureza jurídica, as controvérsias e a casuística sob os quais se consubstancia o instituto das denominadas multas astreintes no Brasil.

As bases jurídicas utilizadas foram os Códigos Civil de 1916, Processual Civil, e do Consumidor brasileiros, além de algumas legislações esparsas como, por exemplo, a Lei de Arbitragem, o Decreto-lei nº 58/37 (que regulamenta o compromisso de compra e venda de imóveis loteados), o Decreto nº 22.626/33 (que reprime a usura) e a Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Normalmente as multas astreintes decorrem ou derivam de uma obrigação (de fazer, de não-fazer, ou de dar [1]). Ou seja, há prévia existência de um vínculo jurídico que confere ao credor (sujeito ativo) o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumprimento de determinada prestação. Corresponde, por isso, a uma relação que é derivada de uma outra (anterior) de natureza pessoal, de crédito e débito, de caráter transitório (extingue-se pelo cumprimento), cujo objeto consiste numa prestação economicamente aferível.

A obrigação principal emana de várias fontes e deve ser cumprida livre e espontaneamente. Quando tal não ocorre e sobrevem o inadimplemento, surge a responsabilidade. Não se confundem, portanto, obrigação e responsabilidade. Esta só surge se o devedor não cumpre espontaneamente a primeira. A responsabilidade é, pois, corolário jurídico-patrimonial do descumprimento de uma relação obrigacional.

Nas linhas a seguir, pretendeu-se, reitere-se, fazer um breve panorama deste espécime de multa e de sua aplicação, particularmente no Brasil, seguindo-se com o seu difícil enquadramento acerca de sua natureza jurídica (ontologia). Buscou-se, ainda, apresentar alguns dos paradigmas que vinculam e legitimam sua utilização no direito pátrio, apresentando, por fim, alguns defeitos ou contradições que se agregam ao instituto em análise.


2.Histórico:

Etimologicamente, de acordo com De Plácido e Silva [2], a origem do termo multa vem do latim ‘mulcta’ ou ‘multa’ e, no seu sentido originário, significa multiplicação, aumento, implicando uma pena pecuniária. Numa ótica mais ampla ou dilatada pode ser vista como uma sanção imposta à pessoa, por infringência à regra ou ao princípio de lei ou ao contrato em virtude do qual fica obrigado a pagar uma certa importância em dinheiro.

Segundo a natureza do ato ou fato jurídico motivador, a multa toma várias denominações: compensativa, moratória, cominatória, fiscal, penal ou penitencial.

Expliquemos cada uma de per si:

I) As multas compensativas correspondem àquelas que são estipuladas em caso de total inadimplemento de obrigação. Servindo-se elas como espécie substitutiva da obrigação pactuada e não cumprida;

II) Já a multa moratória destina-se a garantir o cumprimento de alguma cláusula contratual específica ou, simplesmente, evitar a mora;

III) A pena cominatória ou a título de astreintes é caracterizada pelo meio coativo do cumprimento de comando legal, contrato ou ordem judicial, propondo-se, pois, a defender os contratos celebrados e a proporcionar segurança à ordem jurídica;

IV) As multas fiscais são imposições pecuniárias devidas pela pessoa por decisão de autoridade do fisco, em face de infração às regras de direito tributário;

V) As multas penais são obrigações de pagar soma de dinheiro, quando derivada de imposição de pena criminal;

VI) As multas penitenciais ou arras são estabelecidas para punir aquele que desiste da celebração de contrato, tendo previsão no art. 1.095 do Código Civil.

O Superior Tribunal de Justiça no REsp 217.267/SP Relator: Ministro José Arnaldo da Fonseca – analisou, particularmente, a questão da multa penitencial no sentido de que "consiste em penalidade imposta pelo contrato no caso de descumprimento da obrigação, não podendo ser cumulada com a indenização pelos prejuízos, porque tem caráter alternativo a juízo do credor. Na prática, a multa substitui a indenização. Diferencia-se, pois, da multa moratória que é estipulada na hipótese de mora ou retardamento no cumprimento da obrigação, podendo, assim, ser cumulada."

No que concerne pontualmente às penas cominatórias (multas diárias), objeto de nosso estudo, consoante depreende-se do próprio vocábulo qualificador "astreintes", numa acepção de pressão ou constrangimento, é proveniente da criação pretoriana francesa. Possuem a função de obrigar o devedor a prestar a obrigação pactuada sem invadir direitos essenciais. Mas também de evitar o descumprimento e a subseqüente faculdade em princípio inexistente ao devedor de escolher resolvê-la através de perdas e danos, sobretudo em se tratando de obrigação personalíssima, afora questões procedimentais protelatórias vinculadas.

As ‘astreintes’ não têm qualquer relação direta, pois, com simples recomposição ou com atraso no adimplemento de obrigação. E, destaque-se, fortalecem-se de modo significativo no processo judicial com o intuito de garantir o cumprimento obrigacional, revestindo-se, destarte, de uma dimensão marcadamente pública, evitando-se atos atentatórios à dignidade dos contratos e da própria justiça. No direito comparado, por sinal, encontramos além das ‘astreintes’, v.g, no direito inglês, a existência de uma variável semelhante, conquanto mais primitiva, a ‘contempt of court ‘.

Para o festejado civilista Louis Josserand apud Dilvanir José da Costa [3], acerca do art. 1.142 do Código Civil francês, que dispõe, "em termos amplos e aparentemente absolutos", que "toda obrigação de fazer ou de não-fazer se resolve em perdas e danos, em caso de inexecução por parte do devedor", traduz uma conclusão inaceitável, frustrante e que deve ser retificada. Não poderia depender da inércia ou da má vontade do devedor a troca do objeto da dívida, acentua ele. Acabar-se-ia com a força obrigatória das convenções. O art. 1.142 não faz mais do que reproduzir o velho adágio: "nemo potest cogi ad factum praecise", prossegue o mestre. Acrescenta que Pothier já fazia uma distinção por demais tradicional, segundo a qual a regra só se aplica no tocante às obrigações que têm por objeto algum ato corporal do devedor, a cuja prática não poderia este ser constrangido sem que se atentasse contra sua pessoa e sua liberdade. E continua figurando a hipótese de uma obrigação cuja execução específica implique a intervenção do próprio devedor, como no exemplo clássico do pintor famoso que se obrigou a pintar um quadro. E indaga: é então absolutamente correto que o credor não possa, de modo nenhum, impor ao devedor a execução específica de seu compromisso e que a obrigação se resolva em perdas e danos, ante a resistência deste último? Certamente não, responde. E passa a referir-se a um procedimento com a dupla vantagem de não violentar a pessoa física do devedor e de conduzir a um resultado concreto: o sistema das astreintes.

Verificamos que as multas diárias punem as violações a deveres, mas com a característica determinante de conduzir ao cumprimento de outras normas. Sendo assim, as astreintes são uma espécie de multa anômala, uma vez que não decorrem da prática de um ato ilícito em sentido estrito, prestando-se, pois, a induzir ou a obrigar ao cumprimento de uma norma ou a uma conduta.

Esta espécie de multa tem validade tanto no direito público quanto no direito privado em face de que tanto a lei como o contrato podem estabelecer obrigações com esta natureza de induzir ao cumprimento de preceito ou observância de conduta. Promove-se com ela um reforço à dignidade do juízo e da ordem pública. Manifestos neste sentido são, ilustrativamente, o §3º do art. 213 da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), embora divergindo da orientação do STF no RE-94966/81 RJ, em que se veda a retroação da ‘astreinte’ à data anterior ao trânsito em julgado da sentença que a cominou.

Sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro tenciona atingir os mesmos interesses propugnados pela jurisprudência francesa que, dentre outros, evoca obediência ao pactuado ou, melhor ainda, à ordem pública lato sensu.

Para Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery [4] a multa diária deve ser imposta de ofício ou a requerimento da parte (CPC art. 287; art. 461). Seu valor deve ser significativamente alto, justamente porque possui natureza inibitória. O juiz não deve ficar receoso, pensando no pagamento. O objetivo das astreintes não é o de obrigar o réu ao pagamento da multa, mas compeli-lo a cumprir a obrigação específica. A multa portanto é inibitória. E deve ser alta para que o devedor desista de seu intento de não cumprir a obrigação imposta.

"Não há um teto para a multa pecuniária. Se é verdade que a limitação existia no estatuto processual civil anterior, frente ao que dispõe atualmente o art. 644 do CPC, não há mais porque um teto ou limitação para cominação em apreço. E nem poderia ser de outra forma, já que se limitada no tempo a dita multa, em dado momento a sentença prolatada pelo juiz tornar-se-ia ineficaz; e se tornaria inútil tudo quanto se realizara no processo que a fixou" (Ac. do 1º Gr.de Câms. Do TJSP de 31.10.89, nos Embs. Nº 62.801-1 Rel. Dês. Luis de Azevedo; RJTJSP 123/320).


3.Natureza Jurídica do Instituto:

A perquirição da essência consubstanciadora (ou material) imiscuída nas multas astreintes parece-nos uma opção controversa por vários motivos. Primeiramente, porque a própria doutrina mostra-se-nos dispersa nesta questão. Assim também a jurisprudência. Fatores de ordem extra-jurídico (escassez e excessiva alopoiese [5] do direito brasileiro) aglomeram-se, criando incompatibilidades e antinomias. Em segundo lugar, reconhecemos que a ontologia do instituto encontra no seu próprio cerne constitutivo uma forte aproximação com vários outros institutos similares, complicando o caso e causando inseguranças para expor uma posição definitiva ou meramente taxativa, o que desmereceria outros importantes prismas de reflexão relacionados ao instituto em análise.

Há respeitável entendimento doutrinário, exemplificativamente, de que teriam as multas, como um todo, natureza meramente reparatória, ou seja, teria a função de reparar eventual lesão ou dano. Acrescentamos a esse entendimento, que a função da penalidade não é única. Em verdade, as multas têm caráter essencialmente punitivo, mas também: repressivo – para que não seja compensador o descumprimento da norma; retributivo – para que haja o exemplo da punição, desestimulando condutas ilícitas; ressociabilizador – determinando que a multa seja graduada em percentual que não leve à inadimplência crônica.

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Concessa venia é imperioso externar que possivelmente o principal propósito das multas diárias seja reflexo, ou seja, propõe-se na realidade a desestimular o devedor ao não cumprimento de determinação judicial. Possui uma nítida índole de responsabilidade decorrente de um inadimplemento eventual.

Haverá, com razão, quem reconheça em vários tipos de multas (além da própria astreinte) caráter reflexivo e, portanto, de responsabilidade. Depreende-se que as multas podem ser vistas genericamente como efeito ou conseqüência de obrigação descumprida, noutros termos, como responsabilidade.

Por outro lado, em se analisando o caso sob aspecto diverso, não se nos parece menos razoável entendê-las como verdadeiras obrigações. Seriam obrigações fruto de outras obrigações anteriores. Possuiriam, portanto, natureza jurídica de uma verdadeira obrigação e não de uma responsabilidade. Note-se nas astreintes a existência de elementos subjetivos, objetivos e vínculatório conformando-se numa típica obrigação. Esta última opção, inclusive, parece evidenciar melhor certas características das multas diárias como, por exemplo, seu caráter de autonomia e desvinculação.

Para uma corrente doutrinário-jurisprudencial, aparentemente menos corajosa, as multas astreintes são vistas como verdadeiras cláusulas penais. Nesta hipótese há evidente desnaturação dos propósitos originais de implantação e mesmo ideológicos do instituto, o que confunde e homogeneiza institutos, malgrado parecidos, intrinsecamente diversos. Seu intuito, porém, é pragmático e converge sua preocupação com a concretização e execução das astreintes, evitando-se a desmoralização no momento de execução. Noutras palavras, busca viabilizar desde a cognição, de maneira equânime, multas não cumpridas, ainda que com isto frustre ou transmude as astreintes a outro tipo de multa ou composição. Neste entendimento sua fixação é aplicada, por analogia, com o CC art. 920.

"O objetivo buscado pelo legislador, ao prever a pena pecuniária no art. 644, CPC, foi coagir o devedor a cumprir a obrigação específica. Tal coação, no entanto, sem embargo de equiparar-se às astreintes do direito francês, pode servir de justificativa para o enriquecimento sem causa, que o direito repugna. É da índole do sistema processual que, inviabilizada a execução específica, esta se converte em execução por quantia certa, respondendo o devedor por perdas e danos, razão pela qual aplicáveis os princípios que norteiam os arts. 920 e 924 do C. Civil". (Ac. Da 4º T. do STJ, de 17.03.92, no R.Esp. nº13.416-0- RJ, Rel. Min Sávio de Figueiredo; Lex-JSTJ, 37/177).

Hugo de Brito Machado [6], verbis gratia, preleciona a questão, a nosso ver acertadamente, estabelecendo a diferença entre as naturezas econômica e jurídica das multas e dos tributos:

" Do ponto de vista econômico a multa é despesa. Ninguém ousa afirmar o contrário. Com o pagamento da multa o patrimônio da pessoa jurídica fica diminuído do valor correspondente. Por isto não há como se possa escriturar tal pagamento de outro modo. Há de ser mesmo escriturado como despesa.

Do ponto de vista jurídico a multa é sanção pelo cometimento de ato ilícito. A ilicitude é seu pressuposto essencial. Aliás, a distinção entre o tributo e a multa reside precisamente nisto; na hipótese de incidência da norma de tributação não pode figurar a ilicitude, enquanto na hipótese de incidência da norma sancionatória ou punitiva a ilicitude é essencial."

Sendo assim, ainda que reconhecendo sujeição de críticas, podemos definir a multa diária (astreintes) como penalidades pecuniárias imposta àquele que descumpriu dever jurídico imposto legal ou contratualmente, possuindo no contexto econômico natureza de despesa; no jurídico, natureza de sanção.

Neste diapasão, o Ministro Moreira Alves, relator do RE 94.966-6, DJ 26/03/82 (RT 560/255) decidiu que "a pena pecuniária, a título de astreintes, não tem o caráter de indenização pelo inadimplemento da obrigação de fazer ou não fazer, mas o de meio coativo de cumprimento da sentença, como resulta do expresso na parte final do art. 287 do CPC, conseqüentemente, não pode essa pena retroagir à data anterior ao do trânsito em julgado da sentença que a cominou".


4.Particularidades, Controvérsias e Conclusões:

A idéia que temos então, como conclusão, é de que as sanções diárias devem ser previamente assentidas e somente podem ser instituídas e aplicadas nos termos das leis. É axiomático a obediência à principiologia de legalidade. Neste pormenor, as multas diárias encontram guarida expressa no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo no CPC, no CDC, além da legislação esparsa.

Salientamos que há dificuldades para o Estado exercer a sua função jurisdicional e delimitar a aplicação das sanções, tanto no âmbito administrativo, quanto no penal. Sendo assim, ampliando nossa discussão, apontamos no sentido compulsório de que as penalidades, inclusive as administrativas, conquanto aplicadas pelo Poder Executivo, devem estar estipuladas prévia e necessariamente em lei.

Assim, no recente racionamento de energia elétrica, tivemos no Brasil, com a imposição de multas generalizadas ao povo, coibindo o consumo de energia (justamente através das astreintes) um aspecto singular: a necessidade premente e circunstancial de controlar o consumo através de medidas provisórias, a nosso ver, em princípio, adequadas seja administrativa, seja juridicamente. No entanto, no caso em pauta, vivenciou-se, concomitantemente, uma total ausência de legitimidade, fundamento axiológico de validade e eficácia das normas jurídicas. Tal contexto era fato de evidente responsabilização objetiva de gestores públicos, porquanto desviaram, ou no mínimo, negligenciaram recursos de manutenção e incremento do sistema elétrico nacional.

Deste modo, o consumo de energia, por si só, nunca representou prática de conduta ilícita, mas, houve previsão de que seu consumo acima de certos limites fora desacato às normas públicas, fato que ensejara a aplicação de penalidade, in casu, multa cuja natureza jurídica era cominatória ou astreintes.

A ilicitude não advém do consumo, mas do não atendimento à redução deste. Sendo assim, por exemplo, consumir energia, acima de um limite, pôde ensejar a imposição de multa, que teve como objetivo induzir a um fazer (reduzir o consumo) ou a um a não-fazer (não elevar o consumo).

Em termos estritos de direito a questão revelou-se interessantíssima. As multas astreintes foram impostas com essência e caráter de retributividade, induzindo, pois, a observância de um determinado modo de agir, em nome do interesse público. A limitação dos valores punitivos (que em tese seriam ilimitados e de índole discricionária do administrador público) foi estabelecida como uma espécie de mea culpa de fraqueza e reconhecimento do poder judiciário da ilegitimidade do fato gerador (provocador) do "apagão". Demonstrou-se, infelizmente, a falta de independência e de compromisso tanto do Poder Judiciário, como do próprio Ministério Público, na obtenção dos ressarcimentos e responsabilizações cabíveis.

No Brasil, conforme já se apresentou, por um lado, percebe-se a índole de persuasão das astreintes que objetivam compelir a execução obrigacional; de outro, ou seja, na sua aplicação, nota-se sua contradição. Fundamentemos: em princípio não há limitação para a fixação de multa, e sua imposição deve ser de valor elevado, para que iniba o devedor com intenção de descumprir a obrigação e sensibilizá-lo de que é muito mais vantajoso cumpri-la do que pagar a respectiva pena pecuniária.

Neste ponto de vista, a ‘ilimitação’ da multa nada tem a ver com o enriquecimento ilícito do credor, porque não se trata de contraprestação de obrigação, nem tem caráter reparatório. Possui sim um emblemático interesse de consecução de obrigações pactuadas e/ou determinadas legal e judicialmente, preservando e valorizando, destarte, a estabilidade, a eficácia e o caráter cogente do ordenamento jurídico.

"A lei processual civil não estabeleceu limites à fixação de pena pecuniária por dia de atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Impossibilidade de aplicação analógica do art. 920 do CC". (Ac. Da 3ª. T. do STJ, de 23.09.91, no R. Esp. nº 8.065-SP, Rel. Min. Cláudio Santos; DJU, 23.09.91, p.13.080)

No entretanto, parcela significativa da doutrina e da própria jurisprudência entendem que ela não pode ultrapassar o valor da causa, porque isto poderia implicar enriquecimento injusto do credor. Trata-se de uma mitigação contraditória. Lança-se-nos como uma espécie de "multa aparência" ou "multa susto" que visa fazer com que o devedor não descumpra o acordado ou preceituado. Mas, paradoxalmente, incorpora-se um contrapeso de difícil explicação: o entendimento de uma multa além do valor da causa como concretizador de enriquecimento sem causa. Admitindo-se, retroativamente, vinculação ou dependência da multa à obrigação dita principal. Em similitude à multa moratória (limite de 10% do valor da causa de acordo com o Dec. Lei n. 58/37 e o Decreto n. 22.626/33 que combate a usura. O próprio Código de Defesa do Consumidor limita a cláusula penal moratória a 2% em contratos sob sua égide).

Deixando transparecer assim, que na inviabilização da execução específica esta se converteria automaticamente em perdas e danos, convertendo as astreintes, desafortunadamente, em autêntica simulação.

Por vezes, obrigações serão submetidas às astreintes mas, mesmo assim, não serão cumpridas – e, por conseguinte, já consumadas, ou seja, obrigações que conformam verdadeiros títulos de crédito – tornar-se-ão astronômicas, forçando o magistrado, no caso concreto, a viabilizá-las, impondo cláusulas como a "rebus sic stantibus", ou propondo acordos entre as partes quase que ‘compulsoriamente’, ou ainda, diminuindo ex officio o quantum debetur, a fim de evitar o pretenso enriquecimento sem causa; contradizendo a liquidez e executoriedade da dívida, a independência e o extremismo próprios deste tipo de sanção, em grave detrimento à credibilidade e à segurança jurídico-institucional.

Desta sorte, visando evitar tal infortúnio vexatório, deve o juiz, sempre, sopesar os valores a serem indicados às multas cominatórias tendo em mente dois princípios: o de intimidar o devedor ao cumprimento da obrigação (e da própria ordem judicial emanada) sem divorciar-se de sua viabilidade executiva posterior, para que numa eventual desobediência, evitem injustiças, constrangimentos e anarquizações (sentimento de descrédito e impotência do credor e do magistrado diante de um sistema inoperante).

"A multa na obrigação de fazer se destina a coagir o devedor da obrigação ao seu cumprimento, certo que a stipulatio poenae não se reveste de caráter aere perennius, transmudando-se em fonte inesgotável de ganho sem justa causa, tanto mais quando não tem natureza reparatória" (RT 685/200).

"A pena imposta tem por objetivo um desideratum: coagir o obrigado a cumprir o preceito, não tendo fim em si mesma; ora, se se mostra inviável esta concretização, não há porque persistir na cominação. Como proclamavam os antigos romanos, que em brocardos latinos refletiam o esplendor de sua genialidade no campo jurídico: "ad impossabilia nemo tenetur" (RT 685/201)

Em decorrência dos diversos enfoques sob os quais podem ser interpretadas a natureza jurídica das sanções diárias, assim como das circunstâncias políticas, sociais e econômicas que influenciam ou contaminam intensa e assistematicamente o ordenamento jurídico nacional, corrompendo o instituto e mesmo a sua própria credibilidade; afora questões de âmbito prático-financeiro, percebemos, como corolário, uma doutrina e uma jurisprudência vacilantes.

A execução nos Juizados Especiais Cíveis, fora o comentário antes delineado (cf. nota 1), promove mais uma majoração à aplicação das multas astreintes: sua utilização nas obrigações de dar. A Lei nº 9.099, de 26.9.95, que disciplinou os Juizados Especiais Cíveis, destinados a conciliar, processar, julgar e executar as causas cíveis de menor complexidade, sob os critérios da informalidade e celeridade, inspirando-se nos arts. 644 e 645 do CPC, ampliou, portanto, a aplicação do regime das astreintes. Estendeu-as às obrigações de dar e entregar, in litteris:

"Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:

Omissis (...)

V - nos casos de obrigação de entregar, de fazer, ou de não-fazer, o Juiz, na sentença ou na fase de execução, cominará multa diária, arbitrada de acordo com as condições econômicas do devedor, para a hipótese de inadimplemento. Não cumprida a obrigação, o credor poderá requerer a elevação da multa ou a transformação da condenação em perdas e danos, que o Juiz de imediato arbitrará, seguindo-se a execução por quantia certa, incluída a multa vencida de obrigação de dar, quando evidenciada a malícia do devedor na execução do julgado;

VI - na obrigação de fazer, o Juiz pode determinar o cumprimento por outrem, fixado o valor que o devedor deve depositar para as despesas, sob pena de multa diária."

A obrigação de dar ou entregar tem por interesse uma coisa, que pode ser objeto de execução direta, específica, ou através da própria coisa, que é subtraída do devedor, à força ou não, mas, sem ofensa à sua pessoa, liberdade ou dignidade.

O mesmo não ocorre com a obrigação de fazer ou de não-fazer, que não podem ser exigidas mediante coação física sobre o devedor e, por isso, incidem na regra "nemo cogi ad factum", resolvendo-se em perdas e danos ou execução indireta. Mas, como apontamos, a jurisprudência francesa inovou, instituindo um meio de coação moral (não física) sobre o devedor, através das astreintes ou penas diárias, a fim de vencer a resistência dos inadimplentes.

O instituto das ‘astreintes’ difundiu-se sobremodo no direito comparado: além da França, a Itália e a Alemanha são exemplos representativos bem sucedidos de aplicação deste mecanismo. Aliás, o próprio direito processual brasileiro anterior já admitia esse regime para a execução das obrigações de fazer e não-fazer, tanto que instituiu um procedimento especial para abrigar tais pretensões: ação cominatória, art. 302, XII do CPC/39. E, com base nesse dispositivo, foi elaborada a Súmula nº 500 do STF, segundo a qual "não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar." E não cabe porque a obrigação de dar pode ser exigida ‘manu militari’ sem ofensa à pessoa do devedor (pela subtração da coisa e entrega ao credor).

O novo Código Processual, entretanto, suprimiu o procedimento especial cominatório, mas não excluiu o procedimento ordinário ou sumário para a execução das obrigações de fazer e não-fazer, com suporte nos arts. 287, 461, 644 e 645, conforme declinado.

Deve-se explicitar que a Lei de Defesa do Consumidor concede tutela específica, inclusive liminar, para execução das obrigações de fazer e não-fazer, inclusive pela cominação de multa diária ex officio e outras medidas drásticas de compulsão (Lei nº 8.078/90, art. 84). Este sistema veio a ser transplantado para o art. 461 do CPC pela Lei nº 8.952, de 13.12.94.

Sabe-se que nos Juizados Especiais, o processo orienta-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade etc (cf. art. 2º da Lei nº 9.099/95); por outro lado, a execução específica para entrega de coisa concretiza-se com o ‘mandado de busca e apreensão da coisa móvel’ ou de ‘imissão na posse do imóvel’, (cf. art. 625 do CPC), exigindo procedimentos burocráticos incompatíveis com o novo rito especial de pequenas causas. Donde a opção pela auto-execução, através da coação moral mediante cominação de multa diária pela inobservância do preceito, seja de dar, fazer ou não-fazer. Neste âmbito uma parte relutante da doutrina entende as ‘astreintes’ limitadas ao máximo valor de alçada, ou seja, 40 salários mínimos. Mas podemos refutar esse limite sob, pelo menos, dois aspectos:

a)Pragmático, pois sua limitação seria um convite à inadimplência;

b)Legal. O inciso II do § 1º do artigo 3º da Lei 9.099/95 impõe o limite de quarenta salários mínimos aos títulos extrajudiciais. Mas o inciso I do mesmo dispositivo não impõe qualquer limite aos títulos judiciais; silêncio intencionalmente dirigido à ilimitação. Mostra-se-nos, em princípio, a melhor interpretação (lógica e sistemática) que se pode fazer do § 1º em questão.

Hoje o valor ‘indefinido’ e ‘ilimitado’ das multas diárias são previstas, p.e, no Enunciado nº 12.2, do III Encontro de Juízes dos Juizados Especiais do Estado do Rio de Janeiro, publicado no D.O., Parte III, em 16.11.99, através do Aviso nº 56, que dispõe: "A multa cominatória, cabível apenas nas ações e execuções que versem sobre o descumprimento de obrigação de fazer, não fazer e entrega de coisa certa, não sofre limitação de qualquer espécie em seu valor total, devendo ser estabelecida em valor fixo e diário, contado o prazo inicial a partir do descumprimento do preceito cominatório".

Nesta direção orientam-se as turmas recursais dos Juizados Especiais fluminenses, a exemplo das ementas a seguir:

"Eis que a multa cominatória fixada para obrigar o devedor a cumprir obrigação de fazer infungível tem natureza jurídica diferente da cláusula penal e da multa moratória, que encontram seus limites fixados na lei... O juiz somente poderá rever o valor da cominação se, e somente se, em face da cláusula "rebus sic stantibus", alterarem-se de modo significativo e imprevisível as condições do pacto. Do contrário, é de ser mantido o valor da multa, que só chegou a patamares elevados, em função da inércia habitual da empresa (1999.700.004893-2, juíza-rel. Teresa Cristina Gaulia)".

" Omissis (...) A multa cominatória não está limitada ao teto insculpido no inciso I do art. 3º da Lei 9.099/95, posto que tal entendimento viria a beneficiar a inércia e a omissão do devedor da obrigação de fazer, obrigação de fazer esta que no caso presente é infungível, só podendo ser cumprida pela própria ré. A multa cominatória tem função de fazer cumprir a ordem judicial, que cairia no vazio caso a mesma fosse reduzida, como pretendeu a r. Sentença (1999.700.005849-4, julgado em 09/12/1999)".

Cabe esclarecer, por fim, que diante de obrigações personalíssimas nas quais só o devedor pode cumprir; não interessa a ninguém sua conversão em perdas e danos, opção facultada exclusivamente aos credores, pelos artigos 633 e 461, parágrafo 1º, do CPC. Há mesmo que se impor pesadas multas, para compelir os devedores a cumprirem no vencimento as obrigações que lhes ordenarem a Justiça, evitando-se o desleixo e o descrédito institucional.

Surge, agora, outra inovação (na realidade, um alongamento): o preceito cominatório ou regime das astreintes, também cabíveis para a execução das obrigações de dar, entregar ou restituir, não somente circunscritas aos Juizados Especiais, mas a todo o Judiciário. E a razão é de ordem prática: a efetividade processual. É uma resposta tecnojurídica, isto é, uma mudança (ou evolução) das técnicas de direito positivo, em função das transformações sociais e da massificação das relações jurídicas vivenciadas na atualidade.

Uma opção que se nos apresenta útil e não propugna por maiores mudanças ou investimentos e que permitiria uma significativa melhora na qualidade e na concretização das decisões é o de, por um lado, dar-se, reconhecidamente, ao Poder Judiciário a competência in concretum para avaliar, sopesar e aplicar as normas, os princípios e os valores envolvidos. Exigindo-se-lhe, em contrapartida, maior harmonia entre a imposição da multa cognitiva e a austeridade na sua aplicação (execução), evitando sua ridicularização. O caráter imperativo das astreintes é latente, porém não pode servir para provocar transformações radicais, mormente se motivada (ou ao menos explicada) a desobediência. De outro lado, não vemos como permitir e continuar no emprego de um instituto simulado.

É justo para os casos de notório equívoco ou vacilação inexplicável por parte da magistratura, p.e., na consecução do instituto das astreintes e que venham a provocar danos desnecessários às partes ou a terceiros, que se demandaria automática responsabilização (civil) por parte do Estado aos lesados, vinculando-se, de algum modo, os responsáveis - ainda que magistrados – regressivamente – recompondo-se assim, se fosse o caso, o Estado pela incoerência, a desídia e/ou a discrepância absurdas cometidas por seus agentes contra terceiros. Note-se, ademais, que não estamos adentrando na esfera de fundamentação ou convencimento do juiz, mas sim, de estabilidade dos processos judiciais. Com este sistema entendemos poder, ao menos, minimizar decisões extremadas: tanto exorbitantes quanto ínfimas, garantindo, assim, efetividade e segurança à demanda (processual e materialmente falando) e, ainda, aos próprios institutos jurídicos em estudo.

Enfim, a transferência e, por conseqüência, a total responsabilização do Judiciário nas imposições e execuções de casos reais a serem submetidos às denominadas multas diárias (astreintes) parece-nos um meio viabilizador de evolução do direito positivo. Haverão os tribunais de se munir de ponderações normativo-valorativas, sempre e rigorosamente motivadas, devendo trazer segurança e sentido a um instituto por demais flutuante no País, e que vem provocando descrédito e antinomias para o ordenamento, para as instituições e, principalmente, para as gentes brasileiras.


Notas

01. É recomendado dizer que para alguns doutrinadores não seria possível a aplicação de multas ‘astreintes’ nas obrigações de dar, haja vista, o ditame específico do CPC, v.g., nos arts.461 e 644 referindo-se pontualmente às obrigações de ‘fazer’ ou ‘não-fazer’. Ademais, o próprio STF no seu Enunc. 500 externa, in verbis: "Não cabe a ação cominatória para compelir-se o réu a cumprir obrigação de dar".

No nosso entender, entretanto, seria possível para determinados (e específicos) casos a aplicação (ao menos indireta) destas multas para tutela de situações que incorporem obrigações de dar. Sem maiores delongas, citaríamos apenas uma obrigação facultativa que possua numa de suas hipóteses de escolha para cumprimento uma obrigação de ‘dar’ ou ‘não-dar’. Maior relevância ainda neste entendimento ocorre agora, após as novas alterações pelas quais vem perpassando toda legislação, particularmente, o CPC.

02. Silva, De Plácido e. Vocabulário Jurídico Vol. III, p.218.

03. COSTA, Dilvanir José da. A Execução das Obrigações de Dar, Fazer e Não-Fazer no Direito Brasileiro e no Direito Comparado.

04. Nery Júnior, Nelson e Nery e Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado, p.530 ss; p. 671 ss e p.850 ss.

05. Neves, Marcelo. Do pluralismo jurídico à miscelânea social: o problema da falta de identidade da(s) esferas de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina, Anuário de Mestrado em Direito. p. 319-321.

06. Machado, Hugo de Brito. As multas e o imposto de renda, in Revista Jurídica, ano XXXI, vol. 105,1984, p.54


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NERY JR, Nelson e Rosa Maria Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado, 3ª edição, Revista dos Tribunais, São Paulo: 1997.

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Sobre o autor
Luciano Marinho de B. E. Souza Filho

professor do Via Lux (Recife), pós-graduando em Direito pela UFPE, ex-aluno de Engenharia de Infra-Estrutura Aeronáutica pelo ITA/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA FILHO, Luciano Marinho B. .. Multas "astreintes":: um instituto controvertido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4070. Acesso em: 23 nov. 2024.

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