Introdução
O objetivo deste trabalho é mostrar a desarmonia dos direitos sucessórios advindos da entidade familiar formada pelo casamento e pela união estável, considerando o artigo 1.790 do Código Civil Brasileiro de 2002, que disciplina os direitos sucessórios dos companheiros na união estável.
O Código Civil de 1916 não previa direitos sucessórios entre os companheiros, sendo tais direitos conquistados com as Leis nº 8.971/94 e 9.278/96.
O atual Código Civil adotou o regime da comunhão parcial de bens para as entidades familiares formadas pela união estável, sem mais a possibilidade de comprovação de inexistência de esforço comum, para não haver a comunicação de bens. O regime de bens adotado pelo Código irá influenciar diretamente na sucessão.
Desenvolvimento
A promulgação da Constituição Federal de 1988 instituiu ao Estado o dever de oferecer proteção à família, advinda do casamento ou da união estável, como institutos equiparados (PALERMO, 2007), sendo que de acordo com Pacheco (1999, apud Palermo, 2007) deve-se compreender que “com o termo cônjuge se designassem os vinculados pelo casamento e pela união estável, reconhecida pela Constituição como instituição familiar, juridicamente válida e eficaz”.
O Código Civil de 2002 trouxe uma evolução ao colocar o cônjuge em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária já que, como preceitua o artigo 1.845, “são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge, preceituando o artigo 1.846 que “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.
Para Palermo (2007), “embora figure na terceira posição na ordem de vocação hereditária, a nova situação da concorrência significa maior participação do cônjuge sobrevivente na herança, ficando evidente a intenção de assegurar-lhe condições dignas e equilíbrio entre os concorrentes”.
Para fins de esclarecimento, o herdeiro necessário é um parente que tem direito a uma quota-parte da herança e não pode ser afastado dela, observando-se que o Código Civil de 2002 trouxe nessa classe os descendentes, os ascendentes e o cônjuge supérstite.
Nos casos de casamento efetuados sob o regime da comunhão total de bens, não haverá essa concorrência, ou seja, o cônjuge sobrevivente não participa da herança, já que sua meação lhe garante sobrevivência e segurança. Não ocorre a concorrência também nos casos de casamento sobre o regime da separação total de bens e, quanto aos casados sob o regime da comunhão parcial de bens, a concorrência só ocorrerá se o falecido deixar bens particulares, se não, não haverá a sucessão ao cônjuge supérstite.
Segundo Palermo (2007), “nos demais regimes, o cônjuge figurará como herdeiro, adquirindo um quinhão igual ao dos descendentes que sucederem por cabeça, não podendo sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com quem concorrer”.
Os doutrinadores divergem entre os entendimentos de que no regime de separação convencional o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário ou não. A grande maioria entende que sim, mas o autor do Projeto do Código Civil de 2002, Miguel Reale (2003), não. Para ele, a obrigação da separação de bens decorre do pacto efetuado pelos nubentes. Se for considerado que o cônjuge casado no regime de separação de bens é herdeiro necessário do de cujus, haverá afronta direta do artigo 1.687, fazendo desaparecer totalmente o regime de separação de bens, pois se instalaria um conflito direto com a disposição do artigo 1.829, do Código Civil, conflito esse inadmissível numa codificação onde está intrínseco o princípio da unidade sistemática.
Ao que parece, a tendência da maioria da doutrina é manter o entendimento diverso ao de Miguel Reale, sendo que para essa maioria, na separação convencional de bens, o cônjuge participa da sucessão, isso se respeitado o espírito de proteção ao cônjuge sobrevivente trazido pelo atual Código Civil.
Essa intenção de proteção ao cônjuge sobrevivente ressaltada pelo Código Civil reflete a vontade presumida do de cujus e esse intuito é comentado por Hironaka (2003, p. 218):
Ademais, a imissão do cônjuge nas classes anteriores à terceira se faz de forma gradativa e proporcional à importância que o legislador empresta aos descendentes e aos ascendentes em relação ao apreço e carinho que o morto presumidamente guardaria para cada qual. Por isso é que a quota do cônjuge vai aumentando dependendo da classe em que se encontre, como adiante se verá.
Não se pode esquecer que, para concorrer com os descendentes, o cônjuge sobrevivente deve preencher os requisitos legais impostos no artigo 1.830 do Código Civil. Assim, no momento da morte do autor da herança deve-se verificar se não estava, o cônjuge sobrevivente, separado do falecido, judicialmente ou de fato há mais de dois anos, sendo que no último caso cabe a prova de que a convivência se tornou impossível sem sua culpa. Deve-se também observar as situações relacionadas aos regimes de bens.
Como ressaltado acima, se o cônjuge sobrevivente concorrer com descendentes, sempre terá direito a um quinhão igual aos que sucederem por cabeça, sendo que sua parte nunca poderá ser inferior à quarta parte da herança se for ascendente dos herdeiros com os quais concorrer.
Todavia, se a concorrência for com descendentes apenas do falecido, a divisão será igualitária entre todos, não tendo o cônjuge sobrevivente o benefício da quota mínima.
Fazendo um parêntese ao tema proposto, interessante colocar uma situação que gera muita polêmica, qual seja, a ocorrência simultânea de descendentes comuns e não comuns, visto que não há previsão legal para tal situação. Prevalece ou não a reserva da quarta parte dos bens a inventariar a favor do cônjuge sobrevivente?
Para Hironaka (2003) a intenção do legislador foi a de privilegiar o cônjuge concorrente com a reserva da quarta parte da herança e, no caso de concorrer o cônjuge supérstite com descendentes exclusivos do falecido, há que se aplicar referida norma de forma paradigmática pelos doutrinadores e pelos aplicadores do direito, a fim de se preservar uma saudável consolidação jurisprudencial futura.
Igual entendimento esposa Caio Mário da Silva Pereira (2004):
Deve-se ponderar, todavia, que a regra que o consagra tem natureza excepcional, merecendo, portanto, interpretação restritiva. Se o art. 1.832 reserva a quota mínima em proveito do cônjuge apenas quando este for ascendente dos herdeiros com que concorrer, segue-se que, concorrendo não somente com seus próprios descendentes, bem assim com descendentes apenas do falecido, o cônjuge não estará na situação peculiar (a que a lei condiciona o deferimento da fração mínima) de ser ascendente dos demais herdeiros (p. 119).
Alguns doutrinadores apresentam entendimento contrário, como Silvio de Salvo Venosa, que entende que “se, porém, concorrer com descendentes comuns e descendentes apenas do de cujus, há que se entender que se aplica a garantia mínima da quarta parte” (VENOSA, 2003, p. 109).
Palermo (2007, p.54) entende que haverá muitas decisões divergentes, sendo que prevalecerá a preferência de cada julgador para a proteção da viúva ou do viúvo, ou a igualdade dos filhos, tendo em vista a confusa disposição do artigo 1.832 do Código Civil. Destaca que preferindo o julgador pela igualdade dos filhos evitará a diminuição do patrimônio dos descendentes exclusivos do falecido, visto que, quando do falecimento do cônjuge sobrevivente, serão seus beneficiários na sucessão seus próprios filhos, com prejuízos óbvios dos filhos do seu cônjuge falecido.
Parece claro a necessidade de haver correções ao estatuído no Código Civil a fim de se evitar prejuízos advindos de decisões dos julgadores, de onde teremos diversas e divergentes jurisprudências.
Deve-se considerar que o direito real de habitação é garantido ao cônjuge sobrevivente independente do regime de bens, desde que seja o único imóvel familiar a inventariar, sendo que não há qualquer restrição pelo atual Código Civil de que o direito real de habitação seja cessado com a constituição de novo matrimônio ou união estável pelo cônjuge supérstite.
Não há previsão no Código Civil de dispositivo próprio tratando da situação do falecido estrangeiro, devendo, nessa hipótese, aplicar o artigo 5º, inciso XXXI, da Constituição Federal e a Lei de Introdução ao Código Civil.
Quando se trata do assunto de concorrência entre ascendentes do falecido, a situação é mais clara, conforme disposições dos artigos 1.829, II e 1.836, do Código Civil, sendo que a concorrência é por cabeça, dispondo o artigo 1.837, que se um dos ascendentes do falecido já tiver morrido, a divisão será em duas partes, ascendente sobrevivente e cônjuge.
A seguir serão abordados os direitos sucessórios dos conviventes, objeto principal deste estudo.
Os direitos sucessórios dos companheiros atingem apenas os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável e em concorrência, ensinado Almeida (2003, p. 69):
Os direitos hereditários dos companheiros foram estabelecidos, em princípio, em concorrência e não com exclusividade. Havendo filhos comuns, tem o companheiro direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho (inciso I). Se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles (inciso II). Se concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a 1/3 da herança (inciso III). E, finalmente, recolherá a totalidade da herança, não havendo parentes sucessíveis (inciso IV).
Verifique-se que o direito de recolher a totalidade da herança parece ocorrer apenas sob os bens adquiridos onerosamente e durante a convivência concubinária. Se existirem bens de outra natureza poder-se-ia imaginar que deveriam eles ser destinados ao Estado.
Embora seja essa a interpretação literal do dispositivo, deve ser ele entendido em consonância com o art. 1.844 do novo Código, o qual estabelece que a herança será devolvida ao Estado apenas no caso de não sobreviver cônjuge, companheiro ou parente algum sucessível.
Melhor, por isso, entender que o art. 1.790 tem dois comandos diversos. Os incisos I, II e III estão ligados ao caput, isto é, tratam da sucessão dos bens adquiridos na constância da convivência dos companheiros, e a título oneroso. O inciso IV determina o recolhimento da totalidade da herança, ou seja, de todos os bens do falecido, pois não haveria quem recolhesse a herança e não poderia ela ser devolvida ao Estado, visto que o art. 1844, que disso trata, fala em inexistência de companheiro (ALMEIDA, 2003).
A disposição quanto aos direitos sucessórios dos conviventes foi colocada fora da regra de sucessões dos casados, já que sua disposição encontra-se no artigo 1.790 do Código Civil.
Hironaka (2003, p. 52) observa que:
não obstante sua importância, parece, todavia, que a regra está topicamente mal colocada. Trata-se de verdadeira regra de vocação hereditária para as hipóteses de união estável, motivo pelo qual deveria estar situada no capítulo referente à ordem de vocação hereditária.
A disposição da ordem de vocação hereditária dos conviventes desagradou aos que entendem que nos dias de hoje é impossível haver qualquer diferenciação entre o cônjuge e o convivente.
A união estável era conhecida primeiramente, antes da Constituição Federal de 1988, como concubinato, que podia ter a denominação de “puro” - paras as uniões douradoras entre homem e mulher que não se casaram e que não eram impedidos para tanto – e “impuro – quando um dos participantes da união, ou ambos, estivesse comprometido ou impedido legalmente de se casar. Tal situação fática teve grande ampliação com a proibição do divórcio.
Grandes evoluções foram surgindo na legislação, tais como as Leis 7.036/1944[1], 4.242/1963[2], 6.015/1973[3], além de Súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF) tratando do assunto, contudo, a proteção do Estado à união estável veio com a Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, que reconheceu a união estável como entidade familiar.
A previsão constitucional não colocou uma pá de cal sobre o assunto, surgindo muitos debates quanto à equiparação da união estável ao casamento, como comenta Cahali (2003):
Muito se debateu à época, e ainda hoje com menor intensidade se discute, sobre o efetivo alcance da norma constitucional sobre os direitos decorrentes da união estável tendo em vista a sua qualificação como entidade familiar ao lado do casamento. A polêmica travada na doutrina e jurisprudência pode ser resumida na aferição da exata exegese do texto constitucional. Teria ou não havido equiparação da união estável ao casamento? (p. 223)
Há vozes resistentes entendendo que o Código Civil traz a vontade do legislador de tratar desigualmente a união estável e o casamento, como ressalta Gomes (2002, p. 15): “Se se outorgassem iguais direitos sucessórios aos conviventes e aos cônjuges sobrevivos, aos poucos, alcançar-se-ia, inevitavelmente, a extinção do matrimônio, que simplesmente sucumbiria em face da celeridade, simplicidade e informalidade das uniões estáveis”.
Mesmo entendimento esposa Leite (2003), para quem o Código defende e alarga a proposta constitucional, ressaltando não ter ocorrido retrocesso, já que visa equiparar a união estável ao casamento, mesmo não tendo o constituinte de 1988 pretendido a igualação das duas situações jurídicas, bastando, para o doutrinador, atender ao teor do parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal de 1988.
Ora, se a lei - ordinária, diga-se - deve facilitar a conversão da união estável em casamento, evidentemente, o parâmetro perseguido pelo constituinte, apesar do reconhecimento de novas formas de conjugabilidade continua sendo o casamento (LEITE, 2003).
A união estável foi inserida no Título III do Livro IV (Do Direito de Família), no Código Civil, sendo reconhecida no artigo 1.723 como entidade familiar.
Trevisan (2004) assentou que:
A união estável, novo nome que ganhou o concubinato, que antes da Constituição Federal não surtia efeitos no âmbito do direito familiar, tampouco no de sucessões, apenas no campo obrigacional, passou a ter o status de entidade familiar. Dessa forma, a família passa a ser um fato natural e o casamento convenção social, não mais se distinguindo a família pela existência do matrimônio, solenidade que deixou de ser o único traço diferencial.
A disposição do legislador ao colocar os direitos sucessórios dos conviventes separado dos direitos sucessórios dos casados, mostra uma afronta ao texto constitucional e à evolução social, demonstrando-se grande discriminação. Os conviventes deveriam, ainda, estar colocados no artigo 1.845 na qualidade de herdeiros necessários, em equiparação ao cônjuge. Essa situação demonstra o desinteresse do legislador por toda a evolução legislativa concedendo direitos aos conviventes, evolução essa que culminou em sua equiparação a entidade familiar, ou seja, ao casamento, sendo inadmissível a não equiparação quanto à ordem de vocação hereditária.
A evolução dos direitos dos conviventes foi lenta, mas considerável, começando com o Decreto-lei 7.036/44, que incluiu a companheira como beneficiária em acidentes de trabalho. A Lei 8.971/94 conferiu aos companheiros o direito à meação dos bens adquiridos com esforço comum; condição de herdeiro, na ausência de descendentes e ascendentes; alimentos; direito de usufruto no caso de morte do companheiro, de um quarto da herança se o falecido tivesse deixado descendentes e metade dela se tivesse deixado ascendentes.
Com a edição da Lei 9.278/96 foram previstos direitos mais amplos aos companheiros, como a meação dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável, presumindo o esforço comum, alimentos, direito de habitação no caso de morte do companheiro, sobre o imóvel que servia de residência do casal.
O novo Código Civil, adotando o conceito de união estável, readequou os assuntos tratados nas leis anteriores, fixando a meação de bens nos mesmos termos da comunhão parcial, a condição de herdeiro e alimentos.
Palermo (2007) ressalta a discussão existente sobre a revogação ou não das Leis 8.971/94 e 9.278/96, já que existem entendimentos de que as mesmas foram revogadas e entendimentos de que foram mantidas.
Em relação à vigência das leis n. 8.971/1994 e 9.278/1996 existe polêmica entre os doutrinadores, entendendo uns que tais leis teriam sido revogadas porque o atual Código Civil teria disciplinado toda a matéria e porque, segundo eles, o art. 2.043 do Código Civil referente às leis especiais ressalvou apenas a vigência das disposições de natureza processual, administrativa e penal, revogando implicitamente as normas de direito civil.
A outra corrente da doutrina, por sua vez, entende que as disposições não colidentes estão mantidas, como por exemplo, o direito real de habitação previsto na Lei n. 9.278/1996 e não previsto no Código Civil de 2002, como sustenta Hironaka (2003).
O Projeto de Lei n. 6.960/2002, de responsabilidade do deputado Ricardo Fiúza, alterando o art. 2.045 do Código Civil, prevê a revogação expressa das Leis n. 8.971/1994 e 9.278/1996. Pelo mesmo Projeto, com a nova redação postulada, há modificação do art. 1.790, parágrafo único, do Código Civil, prevendo o direito real de habitação ao convivente sobrevivente, com a ressalva da não constituição de nova união ou casamento (PALERMO, 2007).
Os doutrinadores entendem que a colocação dos conviventes no artigo 1.790 do Código Civil, e não no artigo 1.829, fere os direitos constitucionais da igualdade e dignidade da pessoa humana.
Na verdade, as disposições sobre os direitos sucessórios dos conviventes deveriam estar dispostas juntamente com as dos cônjuges, sendo que o convivente deveria estar arrolado no artigo 1.845 do Código Civil, como herdeiro necessário.
Diniz (2005, p. 146) afirma que:
A relação matrimonial na seara sucessória prevalece sobre a estabelecida pela união estável, pois o convivente sobrevivente não sendo equiparado constitucionalmente ao cônjuge, não se beneficiará dos mesmos direitos sucessórios outorgados ao cônjuge supérstite, ficando em desvantagem.
Na comparação de Palermo (2007, p. 64), há várias discrepâncias dos direitos dos conviventes com os dos cônjuges, já que concorre apenas nos bens adquiridos na constância da união estável, enquanto que o cônjuge, na concorrência hereditária, participa de toda a herança. O convivente, na concorrência com os descendentes exclusivos do falecido, tem sua participação diminuída à metade, enquanto que o cônjuge concorre por cabeça, conforme as disposições do artigo 1.832 do Código Civil.
A discrepância não termina aí, já que o convivente não tem previsão expressa no Código do direito real de habitação, direito esse concedido ao cônjuge, além da falta de previsão da garantia da quarta parte da herança, como é previsto ao cônjuge, sem contar a previsão do artigo 1.790, III, do Código Civil que determina que o convivente concorre com os colaterais até quarto grau.
E a pior discriminação de todas é não estar prevista no novo Código Civil a qualidade de herdeiro necessário do convivente sobrevivente, direito esse concedido ao cônjuge sobrevivente.
Para Almeida (2003), o inciso II do art. 1.790 deve ser interpretado da forma que o companheiro sempre receba um terço da herança que concorrer com os descendentes do falecido, pois o contrário seria igualar o companheiro ao cônjuge, entidades divergentes por previsão constitucional e, a equiparação seria totalmente inconstitucional.
Hironaka (2003, p. 57-58) apresentou sua revolta ao dispor:
Se a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado; se a união estável é reconhecida como entidade familiar; se estão praticamente equiparadas as famílias matrimonializadas e as famílias que se criaram informalmente, com a convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, a discrepância entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar o sentimento e as aspirações sociais, fere e maltrata, na letra e no espírito, os fundamentos constitucionais.
Serão apontadas a seguir as dúvidas e sugestões da doutrina em face da situação dos conviventes frente aos cônjuges, ante a disposição do artigo 1.790 do Código Civil.
Uma das questões de maior relevância é a não disposição dos direitos sucessórios dos conviventes ao lado dos cônjuges no artigo 1.829, inciso III do Código Civil.
Outro ponto bastante discutido pela doutrina é a falta de inclusão do convivente como herdeiro necessário, sem contar os direitos sucessórios bastante reduzidos dos conviventes frente aos cônjuges e a falta de previsão do direito real de habitação aos mesmos.
Comel e Comel (2005) atestam a constitucionalidade dos dispositivos da união estável introduzidos no atual Código Civil ao relatarem que, mesmo com a disposição do texto constitucional, o legislador ordinário outorgou estatuto próprio à união estável por meio da Lei 9.278/96, dando-lhe uma identificação desassociada do casamento, mesmo prevendo a possibilidade de conversão dessa união estável em casamento (artigo 1.726), sem a indicação de praticidade nesta conversão.
Os autores vêem nessa disposição inócua e nessa omissão a inconstitucionalidade do Código Civil, como também nas disposições dos artigos 1.723 a 1727 que dispõem que a união estável é uma instituição definitiva e acabada. A Constituição Federal quer, obviamente, a transformação da união estável em casamento, e não sua materialização como estado de fato permanente, equiparada ao casamento na forma estabelecida pelo Código. (COMEL; COMEL, 2005).
Gomes (2002) segue o mesmo entendimento e até radicaliza um pouco, pois diz temer a extinção do casamento[4].
Para Palermo (2007), a disposição constitucional que trata do reconhecimento da união estável e da família monoparental apresenta ampla conceituação, sendo inaceitáveis discriminações quanto aos direitos sucessórios como as efetuadas no Código Civil, com as discrepâncias nos dispositivos em que uma hora oferece direito ao companheiro quanto aos bens havidos onerosamente na convivência, em outro momento o rebaixa não lhe dando qualquer direito quanto aos bens particulares do convivente falecido, modificando, também, as proporções a que tem direito das concedidas ao cônjuge na concorrência, com os descendentes e outros parentes sucessíveis.
Se não bastasse, é omisso quanto ao direito real de habitação do convivente sobrevivente, ao contrário da previsão dada ao cônjuge (PALERMO, 2007, p.68).
Oliveira (2005, p. 42) entende que a Constituição Federal deu conceituação ampla ao tratar da entidade familiar:
Tenha-se em mente que a Constituição Federal, ao cuidar do ente familiar e estabelecer proteção jurídica aos seus componentes, deu-lhe uma conceituação ampla, admitindo que se origine não só do casamento civil ou religioso com efeitos civis, mas também da união estável entre homem e mulher; além de fazer menção à família monoparental, constituída por qualquer dos pais e seus descendentes.
Conclui que há afronta ao princípio da isonomia as diferenças no plano sucessório entre a união estável e o casamento. Acrescenta que o mandamento constitucional do respeito à dignidade da pessoa humana acaba sofrendo violação pela não observância do direito de herança quanto ao convivente sobrevivente em função da forma que sua união familiar foi formada, por não advir do casamento. (OLIVEIRA, 2005).
Dantas Júnior (2005, p. 128) ressalta:
Não é despropositado observar que o caput do dispositivo constitucional não faz qualquer diferença entre as espécies de famílias, simplesmente determinando que todas elas sejam protegidas, e por isso não se pode admitir que o intérprete faça tal diferença, escolhendo proteger mais a uma do que outras, dentre as espécies possíveis de organizações familiares.
O autor prossegue seu raciocínio apontando que a determinação constitucional de que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento (CF, art. 226, § 3º) não indica, de forma alguma, hierarquia entre as diversas espécies de famílias, havendo superioridade daquela formada pelo casamento. Não há tal afirmação no texto constitucional, o que a Constituição pretende é facilitar a conversão da união estável em casamento aos que se interessarem, e nada mais. (DANTAS JÚNIOR, 2005).
Gama (2003, p. 46) também defende a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, afirmando que: “é inconstitucional materialmente, porquanto no lugar de dar especial proteção à família fundada no companheirismo (art. 226, caput e § 3º da Constituição Federal), ele retira direitos e vantagens anteriormente existentes em favor dos companheiros”.
O autor prossegue seu raciocínio apontando que:
O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, da sucessão em favor dos companheiros. Tal conclusão decorre da constatação de que, desde o advento das Leis 8.971/94 e 9.278/96, os companheiros e os cônjuges passaram a receber igual tratamento em matéria de Direito das Sucessões: ora, como sucessores na propriedade, ora como titulares de usufruto legal, ora como titulares de direito real de habitação. Desse modo, considerando que, por força de normas infraconstitucionais, desde 1996 existe tratamento igual na sucessão entre cônjuges e na sucessão entre companheiros, deveria ter sido mantido tal tratamento para dar efetividade ao comando constitucional contido no art. 226, caput, da Constituição Federal. (GAMA, 2003, p. 46).
São inúmeras as críticas ao dispositivo legal (art. 1.790 do Código Civil), que totalmente retrograda as limitações de direitos dos que formaram entidade familiar pela união estável. Na verdade a lei deveria abraçá-los com maior vigor, igualando-os aos cônjuges, e não rechaçá-los como se quisessem que tal instituto sumisse do sistema brasileiro, isso não ocorrerá nunca e deve ser cada vez mais abrangido pela nossa legislação.
Dias (2004) brada aos quatro ventos a inconstitucionalidade cometida pelo legislador ao tratar de forma desigual as entidades familiares decorrentes do casamento e da união estável, em total afronta ao princípio da isonomia. Para ela, analisada a legislação anterior que tratava dos direitos sucessórios, tem-se um retrocesso no Código ao não incluir o companheiro no rol dos herdeiros necessários, como o fez com o cônjuge.
Há os defensores da hierarquia do casamento frente à união estável, mas mesmo esses doutrinadores são contrários às disposições do art. 1.790 do Código Civil, entendendo pela sua inconstitucionalidade, pois ora beneficia o cônjuge, ora o companheiro, como explicita Palermo (2007, p. 72) ao relatar que no caso em que os conviventes começaram a viver em comunhão bem jovens, sem nenhum patrimônio por ambos os lados e, mesmo que tenham filhos, o convivente sobrevivente será meeiro do patrimônio adquirido a título oneroso, conforme preceitua o artigo 1.725 do novo Código Civil, e será, ao mesmo tempo, herdeiro da parte pertencente ao falecido.
Ao cônjuge, na mesma situação, não é herdeiro, como se verifica no inciso I do art. 1829 do Código Civil. Verifica-se que a situação do convivente quanto à sucessão, seria melhor do que a destinada ao cônjuge, constatando que a lei ordinária beneficiou a união estável, o que também contraria a Constituição Federal. (PALERMO, 2007)
Venosa (2003, p. 119) também critica a disposição do art. 1.790, CC:
A impressão que o dispositivo transmite é de que o legislador teve rebuços em classificar a companheira ou companheiro como herdeiros, procurando evitar percalços e críticas sociais, não os colocando definitivamente na disciplina da ordem de vocação hereditária. Desse modo, afirma eufemisticamente que o consorte da união estável ‘participará’ da sucessão, como se pudesse haver um meio-termo entre herdeiro e mero ‘participante’ da herança.
Várias são as opiniões de reformas urgentes nas disposições dos direitos sucessórios dos companheiros, com bradas indagações pela sua inconstitucionalidade e exclusão, estando entre eles Aldemiro Rezende Dantas Júnior (2005)[5], Gustavo Ferraz de Campos Monaco (2003)[6] e Inácio de Carvalho Neto (2002).
Dessa forma conclui Palermo (2007, p. 74):
Assim, seria suprimido o art. 1.790 do Código Civil, com a inclusão do companheiro ou convivente, ao lado do cônjuge, na ordem de vocação hereditária apresentada pelo art. 1.829, em seu inciso III. Também seriam alterados os incisos I e II do art. 1.829 do Código Civil, com a inclusão do companheiro ao lado do cônjuge. Na alteração ao art. 1.831, do Código Civil, acrescentar-se-ia o companheiro, na previsão do direito de habitação. O art. 1.832, do Código Civil, seria alterado peara a inclusão do convivente em igualdade ao cônjuge, garantindo-se, ainda, ao convivente igual direito do cônjuge em relação à quarta parte do acervo de bens em concorrência com os herdeiros dos quais for ascendente.
Resta questão não resolvida pelo Código Civil, a da concorrência do convivente supérstite com os filhos do falecido, filhos comuns e exclusivos, tendo Hironaka (2003, p. 60) proposto algumas fórmulas para a solução deste conflito:
- primeira proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos comuns, aplicando-se exclusivamente o inciso I do art. 1.790 do Código Civil;
- segunda proposta: identificação dos descendentes como se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, aplicando-se, neste caso, apenas o inciso II do art. 1.790 do Código Civil;
- terceira proposta: composição dos incisos I e II pela atribuição de uma quota e meia ao convivente;
- quarta proposta: composição dos incisos I e II pela subdivisão proporcional da herança, segundo a quantidade de descendentes de cada grupo.
Alguns doutrinadores entendem pela aplicação exclusiva do inciso I do art. 1.790 do Código Civil, enquadrando a concorrência com filhos comuns na situação híbrida, dentre eles destacam-se Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi (2004), Francisco Cahali (2003)[7] e Caio Mário da Silva Pereira (2004)[8].